INTER-RELAÇÕES ENTRE VESTUÁRIO E ARQUITETURA: O CASO DOS CALONS DO ESTADO DE SÃO PAULO



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11º Colóquio de Moda 8ª Edição Internacional 2º Congresso Brasileiro de Iniciação Científica em Design e Moda 2015 INTER-RELAÇÕES ENTRE VESTUÁRIO E ARQUITETURA: O CASO DOS CALONS DO ESTADO DE SÃO PAULO Interrelationship between clothing and architecture: Case study with Calons of São Paulo State Araújo, João Gabriel F. B. de; Arquiteto e Urbanista; Universidade de São Paulo, araujojg@usp.br¹ Barbosa, Lara Leite; Doutora; Universidade de São Paulo, barbosall@usp.br² Resumo Este artigo apresenta os resultados iniciais de uma pesquisa de mestrado em design e arquitetura. Iremos expor os materiais e dados coletados até o momento, em especial com relação aos ciganos Calons de São Paulo. A pesquisa tem como objetivo geral estudar as inter-relações entre corpo, roupa e arquitetura que se estabelecem através das habitações e trajes nômades. Palavras Chave: ciganos calons, vestuário cigano, arquitetura nômade. Abstract This article presents the initial results of the master s degree in design and architecture; we will expose the materials and data collected until now, particularly with regard to Calons of São Paulo State. The research aims to study the interrelationships between body, clothes and architecture that are established through the nomadic housing and nomadic costumes. Keywords: calons, romani clothing, nomadic architecture. Introdução O presente artigo apresenta os resultados iniciais de uma pesquisa de mestrado em design e arquitetura iniciada em 2014 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, realizada com o apoio da FAPESP³ e da CAPES. A pesquisa tem como objetivo geral estudar as inter-relações entre corpo, roupa e arquitetura que se estabelecem através de suportes efêmeros como as habitações e trajes nômades. São objetivos específicos da pesquisa: conhecer o processo de produção do espaço da ¹ Possui graduação em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e atualmente é aluno da pós-graduação mestrado em design e arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). ² Arquiteta e urbanista pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo. Mestre em tecnologia do ambiente construído pela mesma escola. Doutora em design e arquitetura pela FAU-USP. Atualmente é professora do departamento de projeto da FAU-USP e coordenadora do grupo NOAH Núcleo Habitat sem Fronteiras. ³ Processo nº 2014/12826-3, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES.

habitação em uma sociedade nômade; conhecer o processo de concepção, confecção, uso e descarte dos vestuários; perceber a importância da arquitetura e da indumentária para a identidade e estética dessas sociedades e por fim procurar similaridades construtivas e visuais entre as vestes e as casas pesquisadas. Para tal nossos objetos de estudo são os corpos, as roupas e as casas nômades. Iremos expor os materiais e dados coletados até o momento, referentes à revisão bibliográfica, à seleção dos estudos de caso fazendo uma análise dos conteúdos expostos e, também, pretendemos direcionar a pesquisa para suas próximas etapas. A seleção dos estudos de caso foi baseada na identificação dos grupos nômades em que não apenas as habitações, mas em especial os vestuários e ornamentos são de grande importância na construção de sua identidade e na quantidade e qualidade do material disponível para a pesquisa. Foram selecionados os Calons (grupo cuja arquitetura e vestuário serão tratados neste artigo), os Inuítes (nação indígena que habita as regiões árticas do Canadá, Alasca e Groelândia), os Samburu (povo seminômade do centro-norte do Quênia) e os Tuaregues (seminômades do deserto do Saara). Uma Origem Têxtil e Nômade para a Arquitetura Na busca de conexões entre vestuário e arquitetura recorremos ao arquiteto alemão Gottfried Semper que via a casca do edifício como uma espécie de roupa, fazendo associações entre as palavras wand (parede) e gewand (vestuário). Semper em O Estilo publicado em 1863 propõe uma origem têxtil da arquitetura quando afirma que ela teria evoluído das roupas e das tendas, ou habitações móveis, dos primeiros povos nômades. No que tange a produção arquitetônica contemporânea, os arquitetos Cedric Price (apud BARBOSA, 2012, p. 221) e Toyo Ito (1999) arriscam dizer que devemos projetar edifícios cada vez mais flexíveis aptos a constantes transformações e efêmeros que durem somente enquanto utilizados. Flexibilidade e efemeridade são algumas das características presentes nas arquiteturas nômades que se viabilizam pela necessidade constante de adaptação, mutação e mobilidade, nas quais o fator tempo é incorporado e 2

manipulado. Poderíamos pensar que toda arquitetura é efêmera, algumas irão durar muitos anos e gerações enquanto outras estão sujeitas a um espaço de tempo mais limitado, como é o caso das casas nômades. Essas são arquiteturas conscientes de sua efemeridade. Sobre os vestuários nômades podemos observar que Lara Barbosa, em sua pesquisa sobre nomadismo e sustentabilidade, aponta que as roupas podem funcionar como uma extensão das casas dos povos nômades oferecendo proteção. A extensão da preocupação projetual até as vestimentas abre possibilidades de resolução de problemas por intermédio das roupas (BARBOSA, 2012, p.76). Se tomarmos o caso da sociedade Inuíte, por exemplo, fica evidente como as roupas são fundamentais para a sua sobrevivência nas regiões árticas. No decorrer da revisão bibliográfica percebemos a dedicação de muitas sociedades nômades na produção de suas vestes e na ornamentação de seus corpos com pinturas corporais, tatuagens, escarificações, penteados, joias e adornos. O trabalho empregado na produção da indumentária é muitas vezes maior do que aquele aplicado na produção arquitetônica, o que resulta num corpo nômade muito bem ornamentado e rico em detalhes. Isso pode estar relacionado ao fato de que as roupas e adornos podem ser levados no próprio corpo durante os deslocamentos, seu transporte é muito mais simples do que o da arquitetura. Acreditamos, assim, na importância da pesquisa sobre arquitetura e vestuário nômade e apresentamos os dados coletados, até então, referentes aos ciganos Calons do Estado de São Paulo. Os Ciganos Calons A escolha dos Ciganos Calons como um dos grupos para os estudos de caso se deu a partir da identificação de grupos nômades no Brasil, o que possibilitaria a realização de uma pesquisa de campo. A partir das leituras iniciais (FERRARI, 2010; SANT ANA, 1983 e SANTOS, 2002) e do curso CIGANOS: ESPAÇO, EDUCAÇÃO E CULTURA ministrado por Maria de Lourdes Pereira Fonseca, Ermínia Silva, Cláudio Iovanovitchi, Márcia Yáspara Guelpa, Igor Shimura, Gilmar Barbosa e Elez Bislim; realizado entre os dias 19 e 23 de maio de 2015 no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo 3

foi possível conhecer um pouco da origem do povo cigano e de sua história no território brasileiro. Compreendemos que eles não representam uma etnia homogênea e que nos diversos territórios por onde passaram, e que porventura se fixaram, apresentam características culturais, sociais, físicas e econômicas bem diferentes. No Brasil se estabeleceram três grupos principais: os Rom, os Sinti e os Calons; sendo esses últimos os primeiros ciganos a chegar no País já no século XVI e representando hoje os mais numerosos (SANT ANA, 1983 e SANTOS, 2002). Os Calons apresentam até hoje, em maior ou menor grau, um comportamento nômade, mantendo o costume de montar acampamentos (ou pousos como eles chamam) onde habitam em barracas. Além disso, as Calins são ciganas que mantêm o uso da indumentária característica como veremos a seguir. Neste artigo tratamos da arquitetura e indumentária dos Calons, em especial daqueles que vivem na grande São Paulo, a partir das pesquisas de Ferrari (2010), Santos (2002), Sant ana (1983), de uma visita a um acampamento Calon na cidade de Itaquaquecetuba realizada no dia 23 de maio de 2015 e do catálogo da exposição Casas do Brasil (2012) organizado pelo Museu da Casa Brasileira. Arquitetura e Espacialidade nos Acampamentos O nomadismo no grupo Calon se manifesta, em especial, associado à questões sociais e econômicas. Uma família pode deixar um acampamento devido às brigas ou desentendimentos com outros ciganos, na ocasião do falecimento de um parente próximo, após um casamento ou quando começam a ter dificuldade para exercer suas atividades comerciais no local como a venda de carros usados, eletrônicos ou qualquer coisa que julguem lucrativa no momento. Quando os Calons deixam um acampamento eles já partem com destino certo para um novo pouso de ciganos aparentados ou conhecidos. É muito comum que aconteçam movimentações pendulares, um grupo pode se deslocar até outra cidade ou até mesmo estado e permanecer durante alguns dias nas festas de casamento ou para expressar apoio aos familiares que estejam passando por momentos difíceis. 4

Os pousos se localizam em áreas periféricas, mas ao mesmo tempo em locais de fácil acesso ao centro das cidades (FERRARI, 2010 e SANTOS, 2002). Normalmente são terrenos próximos às linhas de trem, que podem ser ocupados, alugados ou próprios. No caso especifico do acampamento Calon visitado, a estimativa é de que existem ciganos no local há mais de vinte anos. A infraestrutura de água e luz também é um fator relevante na escolha dos pousos, no caso dos terrenos ocupados são realizados gatos (ligações clandestinas) nas redes públicas e no caso do aluguel de terrenos muitas vezes esses já contam com instalações regulares. Nesses casos é comum que os ciganos deixem o terreno sem pagar as contas referentes ao período que permaneceram. Santos (2002) nota mais dois fatores importantes na escolha dos terrenos: evitam-se áreas próximas de cemitérios e de rios poluídos, no entanto o acampamento visitado se estabeleceu nas proximidades de um curso de água que atualmente está bastante poluído. Figura 1: Os Calons contratam um caminhão para transportar os seus pertences na ocasião da mudança de acampamento (FERRARI, 2010, p. 110) A organização das barracas nos pousos reflete as relações entre os ciganos, o status e a origem das famílias. Se dois núcleos familiares se desentenderam é provável que as suas barracas fiquem distantes uma da outra; a tenda da família do chefe costuma ocupar um lugar de destaque, sendo uma das maiores e famílias provenientes de um mesmo Estado tendem a formar subgrupos dentro de um acampamento. Fatores como o tamanho das famílias, sua condição financeira e o luto influenciam diretamente nas dimensões e ornamentações das barracas, que 5

podem variar de 20m² a 80m² (CASAS DO BRASIL, 2012). No acampamento de Itaquaquecetuba uma das barracas mais simples pertencia a uma viúva que morava com seu filho ainda criança. A montagem das barracas é um trabalho tipicamente masculino, dura em torno de um dia e pode ocupar dois ou mais homens (CASAS DO BRASIL, 2012), as mulheres por sua vez ficam encarregadas da limpeza e arrumação dos móveis e utensílios domésticos. Na maioria dos casos elas são organizadas de modo a criar uma área livre central onde a vida comum e pública acontece, um espaço de constante interação social. A coletividade é um fator de extrema importância para a comunidade Calon (FERRARI, 2010). Do exterior das barracas se tem uma apreensão quase que total de seu interior, o que facilita o controle da vida dos membros de um acampamento. É possível estar sempre a par do que acontece ali e em outros pousos, pois essa rede de informações se beneficiou bastante com o uso das novas plataformas de comunicação como o WhatsApp. No entanto, é um equívoco pensar que não existe espaço privado, ele existe e é demarcado por barreiras não visíveis. Apesar de se ter uma visualização quase total do espaço privado a partir do exterior só se deve entrar numa barraca quando convidado. Figura 2: Barraca em pouso Calon de Itapecerica da Serra, 2007 (FERRARI, 2010, p. 248) A arquitetura das barracas é composta basicamente por ripas de madeira e cordas, que formam a estrutura, e por lonas, tecidos (cortinas) e plásticos que funcionam como mecanismos de vedação. É comum que todas 6

tenham fechamentos laterais e nos fundos e que a frente seja aberta, podendo apresentar cortinas decoradas com rendas e/ou lantejoulas, que são fechadas durante a noite. É na frente, em uma das extremidades, que se monta a cozinha, no preparo das refeições as mulheres devem respeitar uma série de normas, por isso é importante que estejam ao alcance do olhar do outro. Vestindo-se Calon A indumentária é um fator importante na construção da identidade e na representação dos ciganos. O vestuário feminino, por exemplo, está presente de forma marcante no imaginário popular, porém constatamos, através da revisão bibliográfica e do depoimento de pesquisadores no curso CIGANOS: ESPAÇO, EDUCAÇÃO E CULTURA, que nem todos os Calons do Brasil mantêm os mesmos costumes relacionados ao vestuário. Existem casos nos quais as Calins não mais utilizam os vestidos tradicionais, a não ser em ocasiões especiais como festas e casamentos. As mulheres podem usar tanto roupas que elas compram prontas quanto vestidos feitos sob medida, a escolha de cada veste vai depender da ocasião e da mensagem que se pretende transmitir. Ferrari (2010) observa que mesmo usando essas roupas, as Calins não as utilizam da mesma forma como as gadjins como são chamadas as não-ciganas pois customizam as peças com franjas, decotes, bordados e apliques. Sendo assim o corpo é suporte de diferenciação, no qual a roupa as tatuagens específicas e os dentes de ouro cumprem um papel fundamental (FERRARI, 2010, p.148). Os vestidos são feitos em levas por costureiras, mas são as próprias Calins que compram os tecidos e escolhem os modelos, nos quais podemos identificar três partes principais: a saia rodada em várias camadas com o comprimento variando sempre abaixo dos joelhos, a região do ventre bem ajustada ao corpo e uma blusa na parte superior. Com cores fortes e contrastantes eles são ornamentados com laços, fitas, rendas, lantejoulas e babados. As mulheres usam sandálias ou tamancos sendo comum encontrar várias com rosas de tecido enfeitando os cabelos normalmente presos. Ferrari descreve o vestido cigano e expõe a sua relação com as atividades realizadas pelas mulheres: 7

[...] A blusa do vestido é em geral feita com mangas franzidas, corte abaixo do seio e cintura marcada. São costurados encaixes de renda na extremidade das mangas, no corte abaixo do seio e na cintura. A saia do vestido é montada com cortes de tecido, franzidos e costurados com encaixes de renda e fita, cuja largura aumeta sucessivamente de modo a torna-la rodada. Sob a saia, usam uma espécie de anágua de tecido sedoso e sintético, tipo lingerie, normalmente de cores claras. Fitas e rendas enfeitam o vestido, que deve cobrir a canela.... Além da aparência, a saia tem funcionalidade. O fato de ela ser em camadas permite que a camada exterior, de babados, visível, seja manipulada servindo a múltiplos propósitos, como secar as mãos, limpar o próprio rosto ou o de uma criança, sem que o corpo da mulher fique exposto. (FERRARI, 2010, p. 150) Ferrari (2010) caracteriza o estilo dos homens Calons como country ou sertanejo. As roupas são compradas prontas e o traje é composto por calça jeans; cinto de couro com grandes fivelas metálicas; camisa social lisa em cores fortes ou estampada, nas quais é comum aparecerem motivos relacionados ao universo country como cavalos; botas de couro; chapéu e cordões de ouro no pescoço. Figura 3: Família de ciganos Calon, Itapecerica da Serra (Foto: Luciana Sampaio, 2008) As crianças são mais livres no que diz respeito aos códigos do vestuário, é só a partir da puberdade que as meninas começam a usar, obrigatoriamente, saias compridas (FERRARI, 2010 e SANT ANA, 1983), no entanto muitas garotas têm apresentado certo desinteresse e resistência no uso dos vestuários tradicionais. Carmen Calin do acampamento de Itaquaquecetuba 8

conta que sua filha de onze anos não quer usar os vestidos ciganos, só quer usar short e que por isso o seu marido pretendia tirar a filha da escola. Reconhecemos dois momentos importantes na vida Calon que afetam diretamente o modo de vestir e também as casas dos ciganos: o casamento e o luto. A noiva durante a cerimônia e a festa deve ostentar toda a riqueza da família através da sua indumentária: vestido, brincos, pulseiras, cordões e dentes de ouro. Enquanto no período de luto, que pode durar até um ano, evita-se vestir roupas muito enfeitadas e coloridas, dá-se preferência para os vestidos mais velhos e as roupas gadje que foram customizadas (FERRARI, 2010). Considerações Finais: As Inter-Relações entre Arquitetura e Vestuário Com a pesquisa realizada até então confirmamos algumas inter-relações entre arquitetura e vestuário no caso dos Calons, neste artigo podemos destacas três delas. A primeira diz respeito à oposição entre sociedade cigana e sociedade gadje, que marca tanto a organização da espacialidade Calon, quando os acampamentos negam o espaço da cidade, quanto a escolha da indumentária que funciona como mecanismo de diferenciação. Supomos que ao longo dos anos o vestuário masculino tenha passado por transformações e apropriações até chegar ao estilo country encontrado nos acampamentos. Um dos fatores que pode ter contribuído nesse processo é o fato de que os Calons tem muito mais contato com os gadjes do que as Calins. Essas quando se relacionam com os não-ciganos, na leitura da sorte por exemplo, precisam ser identificadas enquanto ciganas. Já os homens podem realizar suas atividades comerciais sem necessariamente serem reconhecidos enquanto Calons. Outra inter-relação relevante se refere aos desdobramentos provocamos pelo casamento e luto nas roupas e no cenário dos acampamentos. No casamento a regra é ostentar tanto na indumentária quanto na decoração das barracas enquanto o luto determina um momento de simplicidade e sobriedade. A viúva do acampamento de Itaquaquecetuba não pintava os cabelos e nem colocava roupa enfeitada nas palavras de Carmen. 9

Por fim ressaltamos a lógica do engano, na qual é sinônimo de honra para um cigano tirar proveito da relação com o gadje. Percebemos essa intenção quando os Calons não pagam as contas de água e luz dos terrenos alugados e nas múltiplas identidades que podem ser apresentadas pelas mulheres ciganas. Uma Calin irá guardar os seus melhores vestidos e joias para serem exibidos dentro do mundo cigano, se saem para o centro da cidade para ler a sorte, por exemplo, as mulheres usarão uma indumentária que as identifique como ciganas, mas certamente não estarão com os seus melhores trajes. Daremos continuidade ao estudo, identificando outras inter-relações entre arquitetura e vestuário nômade e pretendemos acompanhar o processo de desmontagem, transporte e remontagem das barracas além de conhecer melhor o processo de concepção, confecção, uso e descarte dos vestuários através de conversas com as Calins e entrevistas com as costureiras responsáveis pelos vestidos. Referências BARBOSA, Lara Leite. Design sem Fronteiras: A Relação entre o Nomadismo e a Sustentabilidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo / Fapesp, 2012. Casas do Brasil, 2012: barraca cigana / fotografias Luciana Sampaio; textos Florencia Ferrari. São Paulo: Museu da Casa Brasileira, 2012. (Colação Casas do Brasil; v.4) FERRARI, Florencia. O MUNDO PASSA: uma etnografia dos Calon e suas relações com os brasileiros. 2010. 380 f. Tese (Doutorado) - Curso de Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde- 02082010-191204/publico/FlorenciaFerrari_2010.pdf>. Acesso em: 15 out. 2014. ITO, Toyo. Arquitectura de Límites Difusos. Barcelona; Gustavo Gili, 1999. SANT ANA, Maria de Lourdes B. Os ciganos: aspectos da organização social de um grupo cigano em Campinas. São Paulo, FFLCH/USP. 1983. (Antropologia; v.4) SANTOS, Virgínia Rita dos. ESPACIALIDADE E TERRITORIALIDADE DOS GRUPOS CIGANOS NA CIDADE DE SÃO PAULO. 2002. Dissertação (Mestrado) Departamento de Geografia, Universidade de São Paulo, 2002. 10