ANGOLA, CONGO, BENGUELA, CABINDA... RIO GRANDE BANTO, SÉC. XIX

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ANGOLA, CONGO, BENGUELA, CABINDA... RIO GRANDE BANTO, SÉC. XIX Jovani de Souza Scherer 1 Parafraseando Jan Vansina, é possível dizer que o título desta comunicação poderia muito bem ser ancestrais esquecidos no lugar dos etnômios Angola, Congo, Benguela, Cabinda. Afinal, eles são os ancestrais esquecidos por excelência na genealogia das culturas na diáspora do Novo Mundo, pois a magnitude e ubiquidade de suas contribuições até agora têm sido minimizadas ou negligenciadas a ponto de se tornarem quase invisíveis 2. A crítica de Vansina atingiu-me, mas não tanto quanto a frase desferida por Linda Heywood: O interesse geral e o conhecimento da história e do impacto cultural dos centroafricanos na diáspora Atlântica está muito aquém do dedicado à África Ocidental.(Heywood, 2008, p.18) Acontece que durante a pesquisa realizada no mestrado dediquei-me a questões relativas ao importante papel desempenhado por africanos na busca e conquista da liberdade na região de Rio Grande, cidade portuária localizada no extremo sul do Brasil. Esta investigação demonstrou que o papel exercido pelos africanos ocidentais foi, sem dúvida, de grande destaque pois estes apesar de não alcançar maioria entre a população africana escravizada, mantiveram índices de alforria que quase dobravam sua presença entre a escravaria, quase monopolizando o mercado da liberdade formal em meados do século XIX 3. Então o nosso interesse traduziu-se em mais uma pesquisa enfatizando os africanos ocidentais. Após o fim da redação da dissertação poderia ser dito que o conhecimento da história e o impacto cultural dos centro-africanos ficou muito aquém do dedicado à África Ocidental, ao menos em Rio Grande. A presente comunicação é uma tentativa (inical) de tentar equilibrar esta balança, centrando a análise nos casos de africanos de origem banto, sobretudo nos procedentes da África Central Atlântica. ****** 1 Mestre em História (UNISINOS), professor da rede municipal de Porto Alegre: jovanscherer@yahoo.com.br 2 VANSINA, Jan. In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. Prefácio, p.7. 3 SCHERER, Jovani. Experiências de busca da liberdade: alforria e comunidade africana em Rio Grande, século XIX. Dissertação de Mestrado, UNISINOS, 2008. 1

De acordo com Heywood, as contribuições centro-africanas à cultura da diáspora poderia ser menos dramática e visível do que as de grupos yorubás e fons africanos ocidentais os quais pareceriam mais exóticos aos olhos dos observadores, recebendo mais atenção por isto. Isto se daria porque a região Central da África, ao contrário da Ocidenal, era marcada por uma forte homogeneidade do ponto de vista linguístico e cultural (Slenes, 1991-1992). Além disso era notória a contínua presença europeia e afro-europeia na região do reino de Angola e Benguela, acarretando o desenvolvimento ali de culturas mistas sem paralelos entre os povos africanos ocidentais. Este fenônemo pode ter sido fundamental para a crioulização da cultura portuguesa em Angola. Isto significa que as relações e influências mútuas não se construíram somente através da mistura biológica, aparente em pesquisas demográficas, mas também na esfera cultural, na qual merece destaque a utilização do umbundo e quimbundo e não do português como línguas francas em Angola e Benguela. Por exemplo, nas regiões principais da colônia [...], uma população africana livre e escravizada maior que a de brancos vivia nas casa e vilas que portugueses e afro-lusitanos possuíam e participavam da cultura crioula. Os milhares de africanos livres e escravizados, que eram obrigados por seus superiores a trabalhar como carregadores para o exército e comerciantes, também participavam da cultura afro-lusitana. Muitos dos escravizados (ladinos) haviam nascido nas residências de portugueses e afro-lusitanos. Falavam português, eram cristãos, viviam e trabalhavam em casas e fazendas juntamente com seus senhores e senhoras 4 O que pretendo dizer com estas citações e referências ao trabalho de Heywood é que ao enfocar a história dos centro-africanos é preciso dialogar com a ideia de crioulização mistura cultural e demográfica ainda em terras africanas, e qual a importância destas experiências para os indivíduos que cruzaram o Atlântico vindo desta região e aportando no extremo sul do Império brasileiro. Vinicius de Oliveira, em trabalho sobre São Leopoldo, fez análise refinada sobre a vida do africano Manoel Congo, o qual foi vítima de um dos últimos navios negreiros a aportarem nas praias do Rio Grande do Sul, em 1852. Este africano, durante interrogatório à polícia, revelou que era meio ladino, e por esta razão já saberia desde a África da ilegalidade de seu cativeiro naquele ano, referindo-se provavelmente ao que propunha a lei Eusébio de Queiróz de 1850, ou até mesmo a lei de 1831 que já tornara ilegal o cativeiro de africanos no Brasil. 5 Ladino segundo Oliveira era o 4 HEYWOOD De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas crioulas no século XVIII. In: (org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 105-106. Sublinhados meus. 5 Manoel Congo consegui escapar no desembarque, no entanto foi pilhado por um homem chamado Agostinho Porém sendo muito maltratado por ele e sabendo que era livre, o que já em sua terra lhe diziam porque ele era meio ladino, resolve fugir rumo à Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre para se apresentar como africano livre às autoridades competentes (2006,p.39-40) 2

termo utilizado pela sociedade escravista lusitana para designar aqueles escravos africanos já falantes da língua portuguesa e adaptados à vida em cativerio ou ao universo cultural luso. (2006, p.39) O processo de crioulização mistura, adaptação à cultura europeia ocorrida na África possibilitaria aos escravizados ao menos lutar por direitos já estabelecidos por lei no Brasil, afinal esses homens e mulheres entrariam em contato com informações correntes do circuito do tráfico atlântico ao tornarem-se ladinos ainda em território africano. Contudo, é bom lembrar que durante os anos de tráfico africano ilegal - 1831 e 1850 - o Brasil passou a receber um volume substancialmente superior de cativos e nem por isso a proporção de africanos livres na população deve ter acompanhoado este crescimento. Isto significa que o caso de Manoel Congo nos possibilita questionar sobre esta experiência, mas sem torná-la uma regra para os africanos que foram escravizados e trazidos para o Brasil nos últimos anos de tráfico ilegal. Em Rio Grande ainda não encontramos casos que nos auxiliem a compreender de maneira clara a forma como este processo afetou os centro-africanos. Apenas alguns documentos fazem referência a estas relações, mas de forma muito incipiente. O preto forro Francisco Rodrigues Barbosa faleceu no ano de 1825 na cidade portuária sulina. Casado com Tereza da Cunha (da Costa Leste), não tinha filhos e ignorava o nome dos pais. Seu inventário afirmava que havia sido batizado no Porto de Benguela. Não é possível saber a partir deste documento quando, ou há quanto tempo havia sido batizado Francisco no continente africano. Seria interessante saber o grau de envolvimento deste com a religião católica: se já conhecia alguns ritos, se praticava algum... ou se tivera sido batizado somente antes de partir para o seu destino no Brasil, recebendo o nome lusitano Francisco. 6 Sabemos porém, através da bibliografia, que boa parte dos centro-africanos traziam um experiência muito particular de catolicismo (Reginaldo, 2005, p.148) e que o sincretismo religioso, ou a africanização da cultura portuguesa, não se dava somente nas regiões de vassalagem tradicional, mas também em áreas isentas das atividades missionárias regulares e de alianças políticas com europeus, assim estas populações estavam livres para adotar elementos da cultura portuguesa que não alterassem radicalmente seus próprios valores (Heywood, 2008, p.119) Estas influência do catolicismo europeu na região não deve, pois, ser supervalorizada. Em 1839, do lado brasileiro do Atlântico, mais precisamente na região de nosso estudo - Rio Grande -, 6 APERS, Vara da Famáilia Sucessão e Provedoria, Inventário nº250ª maço 11 ano 1825. 3

um outro Manoel, também identificado como de nação Congo, ao receber sua alforria recebeu além da designação de sua nação de procedência uma identificação, digamos, incomum nestes breves documentos: Caiala. O preto Manoel Pereira identificado como Caiala, que é o inquice de Iemanjá nos terreiros conguenses, recebeu a sua carta de liberdade da senhora Genoveva Pereira da Silva em dois de setembro de 1839 7. O motivo da carta foi em retribuição aos bons serviços prestados, texto bastante comum nas alforrias, contudo não deixa de chamar atenção o fato do africano receber Iemanjá, o que possibiliataria a ele realizar serviços diferenciados (espirituais?) à sua proprietária. (APERS, Rio Grande, Registros Diversos, Livro 12, p. 88). Os Bantos de Rio Grande e a crioulização/ladinização Ao estudar os bantos os centro-africanos neste caso - precisamos levar em conta que na região além do já destacado peso da cultura africana na dinâmica crioula, o hibridismo cultural angolano não estava restrito apenas a costa mas também a regiões do interior as quais ficariam muitas sob influência cultural de Benguela e Luanda. (Ferreira, 2006, p.34) De acordo com Parés a crioulização pode ter duas compreensões: por um lado, o processo de crioulização cultural (isto é, o processo de transformação a que estiveram sujeitas as culturas africanas no Brasil) e, por outro, o processo de crioulização demográfica, ou seja, o crescimento da população crioula (crioulo aqui entendido como indivíduo negro de ascendência africana nascido no Brasil). Essa diferença é analiticamente importante, porque embora ambos os processos estejam inter-relacionados eles não são paralelos, nem o primeiro é resultado do segundo. As oscilações da demografia crioula e os padrões das uniões entre crioulos e africanos [...] condicionaram as possibilidades de transmissão dos referentes culturais e lingüísticos africanos e constituíram aspectos críticos do complexo processo de mudança cultural chamado crioulização 8 Procedemos a análise de listas de escravos em inventários post-mortem e cartas de alforria com o objetivo de encontrar dados referentes à população escravizada e alforriada em perspectiva, possibilitando uma aproximação sobre como os grupos conhecidos como bantos centro-africanos - alcançavam a carta de liberdade em termos relativos a sua presença na população africana em cativeiro vivendo no município de Rio Grande. 7 Inquice segundo Nei Lopes: Cada uma das divindades dos cultos de origem banta, correspondentes aos orixás iorubanos. O termo é aportuguesamento do quicongo nkisi, força sobrenatural e, por extensão, o receptáculo ou objeto em que se fixa a energia de um espírito ou de um morto. No Brasil, passou a significar o próprio espírito e ser usado, nos cultos bantos, como sinônimo de orixá (2004, p. 342). 8 Parés, 2005, p. 87-88. Grifos meus. 4

Entre 1825 e 1865 a população de centro-atlânticos escravizados foi de 60,47% do total de africanos, enquanto sua presença entre os alforriados era de 41,67%. No entanto esta relação nem sempre foi assim, antes da proibição do tráfico atlântico de 1831, as proporções eram de 82,25% dos escravos listados, enquanto somavam 84,21% dos alforriados. A diferença negativa no jogo da alforria com as demais regiões foi construída sobretudo nos períodos de 1831-1850 e 1851-1865. No primeiro, os bantos constituíam 66,7% dos cativos enquanto alcançavam 41,40% das alforrias. Após a lei Eusébio de Queiróz eram 47,65% dos cativos e conquistaram somente 20% das alforrias destinadas aos africanos. 9 Tabela 1 Proporção das regiões da África entre ESCRAVOS africanos em três momentos Região da África 1810 1830 1831 1850 1851 1865 Total n % n % n % n % Ocidental 12 11,21 71 22,05 143 42,06 226 29,39 Central Atlântica 88 82,25 215 66,77 162 47,65 465 60,47 Oriental 7 06,54 36 11,18 35 10,29 78 10,14 Total 107 100 322 100 340 100 769 100 Fonte: APERS, RG, Inventários post-mortem, 1825-1865. Tabela 2 Proporção das regiões da África entre africanos ALFORRIADOS em três momentos Região da África 1810 1830 1831 1850 1851 1865 Total n % n % n % n % Ocidental 9 15,79 89 56,69 85 77,27 183 56,48 Central Atlântica 48 84,21 65 41,40 22 20,00 135 41,67 Oriental - - 3 01,91 3 02,73 6 01,85 Total 57 100 157 100 110 100 324 100 Fonte: APERS, RG, Livros Notariais, 1812-1865. Entre as nações centro-africanas as que mais se destacavam eram as grandes designações Angola, Congo, Benguela e Cabinda. Menos frequentes, mas significativos, eram os chamados de Monjolo, Rebolo e Cassange. (anexo I) É difícil apontar uma razão para a diminuição da presença dos centro-africanos entre a população alforriada após 1831 que não passe pela mudança no perfil demográfico dos africanos 9 As Tabelas 1 e 2 foram copiadas de Scherer, 2008. 5

escravizados em Rio Grande. Uma das explicações que encontrei para esta variação está vinculada à reconstrução por parte de africanos ocidentais (Minas e Nagôs) de uma comunidade baseada no parentesco étnico, a qual formou nichos ocupacionais que garantiam ganhos pecuniários fundamentais para a compra da liberdade 10. É certo que na década de 1830 o impacto do crescimento da entrada de africanos ocidentais passou a influenciar na aquisição da alforria, contudo não explica a queda centro-africana em termos proporcioanais entre os alforriados. Se ainda não conseguimos formular esta explicação, podemos buscar melhor compreender os centro-africanos através da análise de como se alforriavam e compará-los com outros grupos. Traçando esta comparação entre os tipos de alforria e a origem dos cativos é possível vizualizar um caminho interessante para a compreensão da experiência centro-africana em busca da alforria na região de Rio Grande Tabela 3 Origem e Sexo pelo tipo de alforria Tipos Crioulos Centro-africanos Africanos Ocidentais H M H M H M n % n % % n % % n % Pagas 19 30,16 101 60,12 Cond 18 28,57 31 18,45 Soc 24 38,10 35 20,83 Desc 2 03,17 1 00,60 Sub 63 100 168 100 Total 189 135 183 fonte: APERS, Livros Notariais de Rio Grande 1812-1865. Abreviatura dos tipos de alforria Pagas; Condicionais; Sem oobrigação ou condição; e Desconhecidas. Modelo baseado em MOREIRA e TASSONI (2007). Os africanos ocidentais compravam a grande maioria de suas alforrias. As mulheres 76,84% e os homens 81,81% das que foram registradas em cartório. Ao serem comparados aos africanos da área Centralatlântica do continente, fica evidente o quanto a organização dos grupos étnicos era fundamental no mercado da liberdade. Enquanto mulheres e homens da África Ocidental chegavam a patamares muito altos de pagamento pela liberdade, eles e elas da região Central-atlântica chegavam, respectivamente, a 10 Scherer, Jovani. Op. Cit. 6

comprar 34,48% e 53,25% das alforrias que lhes eram entregues. 11 A diferença entre o padrão de alforria entre ocidentais e centro-africanos não é o que mais chama atenção, mas sim a semelhança entre os bantos e os crioulos. As centro-africanas pagavam por 53,25% enquanto as crioulas por 60,12% do total das alforrias destinadas ao sexo feminino. Receberam condições nas cartas em 15,58% e 18,45% e, não constaram obrigações em 29,87% e 20,83%, respectivamente. Nesta última tipologia as africanas ocidentais não ficavam muito longe das crioulas, obtinham 17,9%. Mas no quadro geral nota-se que as alforrias são distribuídas de forma semelhante entre crioulas e centro-africanas. O mesmo ocorre em relação aos homens. A diferença principal entre homens e mulheres está nas alforrias pagas: crioulos e centro-africanos encontravam grande dificuldade em pagar por sua liberadade. Os últimos compravam-nas em 34,48% dos casos, enquanto os nascidos no Brasil chegavam a modestos 30,16% em comparação aos 81,81% dos ocidentais, os maiores compradores. Em relação às alforrias condicionais, e sem obrigações, os crioulos e centro-africanos não eram tão semelhantes, na verdade as proporções se invertem. Os crioulos, se não compravam muitas alforrias, conseguiam a maior parte delas sem obrigação alguma: em 38,1% dos casos, e ficavam condicionados em 28,57%. Na proporção contrária, os centro-africanos recebiam alguma obrigação nas cartas em 36,51%, e em 27,59% delas as recebiam sem ônus algum. Esta semelhança de comportamento entre crioulos e centro-africanos já foi percebida na Bahia. Segundo João Reis crioulos e angolanos parecem ter desenvolvido estratégias assemelhadas de sobrevivência e resistência à escravidão. Extrapolando os angolanos para os centro-africanos, o argumento é interessante: Talvez porque os angolanos estivessem aqui desde o início da colonização, por terem sido pais e mães dos primeiros crioulos e pardos; se outros continuavam chegar de Angola, os aqui presentes introduziam-nos às maneiras e malícias da terra do branco, facilitando pela experiência e adaptação dos novos. Quando, no século XIX, os africanos ocidentais começaram a chegar em massa, já havia uma longa tradição angolana de interação com o meio brasileiro e seus habitantes, entre os quais os crioulos 12 Os argumentos de Reis são muito reveladores para pensarmos as experiências dos bantos em Rio Grande. O Rio Grande do Sul é uma área de colonização recente comparada com as regiões 11 Os provenientes da região oriental da África não constam na tabela por terem uma participação muito pequena nas alforrias, com apenas seis cartas. 12 REIS, João. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. edição revista e ampliada São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p.332-333. 7

Sudeste e Nordeste do Brasil, tendo sua efetiva ocupação europeia iniciada no século XVIII. A cidade e porto de Rio Grande ainda contou com uma recolonização mais tardia, após a expulsão dos espanhóis em 1776. Não havia tempo hábil para a formação de uma escravaria crioula até o princípio do XIX que se distanciasse da influência da comunidade ancestral africana. Soma-se a isso o fato da cidade abrigar um porto oceânico, via de entrada marítima dos africanos escravizados na província durante os séculos XVIII e XIX. É sabido também que em alguns períodos os núcleos urbanos concentraram a maior parte dos africanos no Brasil (Parés, 2005, p.108). Como já vimos, os centro-africanos constituíam mais de 80% dos africanos cativos e alforriados antes da década de 1830 na cidade portuária sulina. Os escravos listados em inventários e cartas de alforria raramente tem o nome de seus ascendentes presente, portanto é difícil estabelecer uma aproximação razoável de quem eram as mães e pais dos crioulos e pardos através destas fontes. Contudo, o registro de compra e venda da estância São Lourenço indica que a possibilidade de uma parte considerável de crioulos ser filhos de africanos era uma realidade cogitável. Em 1819, a estância São Lourenço foi vendida juntamente com um plantel de cento e trinta e oito cativos o qual era constituído, fundamentalmente, em diversas unidades familiares, das quais participavam cerca de cem dos cativos listados - noventa e dois no mínimo. (APERS, Rio Grande, 2º Tabelionato, Notas, livro 9, p. 32v) Na condição de tutor de seu sobrinho e enteado Inácio José de Oliveira Guimarães, o tenente-coronel José Antônio de Oliveira Guimarães e sua mulher D. Isabel Eufrásia de Oliveira passaram através de escritura pública a José da Costa Santos uma Fazenda de Terras de Campos e Matos denominada de S. Lourenço com benfeitorias, escravos [ladinos], animais, e outros bens. Junto a negociação uma descrição pormenorizada dos cativos vinculados ao negócio. Berute (2006, p.104-108), analisando o registro do imposto da sisa sobre a venda da mesma fazenda um outro documento -, ressalta que os crioulos eram majoritários naquele plantel. No entanto, a escritura de compra e venda apresenta uma leve vantagem para os africanos. Das pessoas listadas em seis casos não havia como estabelecer a origem ou ela não foi informada. Africanos somavam sessenta e oito, sendo somente três Minas e cinco Moçambiques, os demais eram da África central atlântica: sessenta homens e mulheres. Se pensarmos em termos de bantos, incluindo 8

os moçambiques - bantos orientais temos sessenta e três dos sessenta e oito. Nascidos no Brasil foram encontrados cinquenta e dois crioulos, nove pardos e quatro cabras, totalizando sessenta e cinco pessoas. Porém, mais da metade dos nascidos do lado brasileiro do Atlântico eram filhos de pelo menos um africano ou africana: totalizando trinta e oito (entre os quais trinta e dois crioulos, quatro pardos e dois cabras). Levando em consideração a bagagem de interação na África que Angolas, Congos, Benguelas, e Cabindas, entre outros, haviam criado com missionários católicos, agentes governamentais, comerciantes e traficantes europeus, mas sobretudo portugueses, sugerimos que os canais de organização dos centro-africanos passavam por espaços institucionais da colônia (certamente as irmandades), aproveitando seus conhecimentos prévios - sua ladinização - para reorganizar suas vidas. No princípio do século XIX, Rio Grande era banto. A esmagadora maioria dos africanos eram centro-africanos e, talvez, uma parte considerável dos crioulos cresceram sob influência destes. Muito das estratégias de sobrevivência e resistência ao cativeiro dos nascidos em terra brasileira foram, em grande medida, ensinados pelos mais antigos, seus ancestrais bantos. A política de negociação de alforrias provavelmente foi apenas uma delas. Bibliografia BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c. 1790- c. 1825. Dissertação de Mestrado. UFRGS, 2006. FERREIRA, Roquinaldo. Escravidão e revoltas de escravos em Angola. Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999), 9-44., Ilhas Crioulas : O significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. / Revista de História São Paulo, n. 155, dez. 2006. Disponível em <http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0034-83092006000200003&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 10 fev. 2011. HEYWOOD, Linda M. De português a africano: a origem centro-africana das culturas atlânticas crioulas no século XVIII. In: (org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. 9

MELLO, Marco Antônio Lírio. Reviras, Batuques e Carnavais: a cultura de resistência dos escravos em Pelotas. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 1994. MILLER, Joseph C. África Central durante a era do comércio de escravizados, de 1490 a 1850. In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. MOREIRA, Paulo R. S.; TASSONI, Tatiani. Que com seu trabalho nos sustenta: As cartas de alforria de Porto Alegre (1748/1888). Porto Alegre, EST Edições, 2007. OLIVEIRA, Vinícius Pereira. De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras meridionais. Porto Alegre: EST edições, 2006. PARÉS, Luiz Nicolau. O processo de crioulização no recôncavo baiano (1750-1800). Afro-Ásia, 33(2005), 87-132. REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: irmandades negras, experiências escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, São Paulo, 2005. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. edição revista e ampliada São Paulo, Companhia das Letras, 2003. ; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853) /. São Paulo : Companhia das Letras, 2010. SCHERER, Jovani de Souza. Experiências de busca da liberdade: alforria e comunidade africana em Rio Grande, século XIX. Dissertação de Mestrado, UNISINOS, 2008 SILVEIRA, Renato. Nação Africana no Brasil escravista: problemas teóricos e metodológicos. Afro-Ásia, 38 (2008), 245-301. SLENES, Robert. Malungu Ngoma vem! : África encoberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n 12 (1991-2): 48-67.. A grande greve do Crânio do Tucuxi: espírito das águas centro-africans e identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro In: HEYWOOD, Linda M. (org.) Diáspora Negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008 VELLUT, Jean Luc. A bacia do Congo e Angola In: ADE AJAYI, J. F.(ed.) História geral da África, VI: África do século XIX à década de 1880 / Brasília : UNESCO, 2010. 10

Abreviatura APERS Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul Anexos Anexo I Presença de grupos africanos na população escrava de Rio Grande, 1825 1865 Grupos de Procedência 1825-1830 1831 1850 1851 1865 Total Área grupos # % # % # % # % Mina 7 06,5 39 12,11 81 23,82 127 16,51 Nagô 0 0,00 26 08,07 47 13,82 73 09,49 África Ocidental Jeje 0 0,00 1 11 12 Guiné 3 0 0 3 Calabar 0 2 1 3 Tape 0 1 0 1 São Tomé 1 1 2 4 Cabo Verde 0 0 1 1 Fula 1 1 0 2 subtotal 12 11,21 71 22,05 143 42,06 226 29,38 África Moange 0 0 1 1 Central Atlântica Congo 19 17,7 54 16,77 31 09,85 104 13,52 Norte do Congo Cabinda 14 13,08 35 10,86 29 08,80 78 10,14 Mugumbe 2 3 0 5 Monjolo 7 06,5 8 11 26 subtotal 42 39,25 100 31,06 71 20,88 213 27,69 11

Angola 7 06,5 28 08,69 32 09,85 67 08,71 Norte de Angola Camondongo 0 2 0 2 Cassange 2 13 5 20 Songo 2 2 2 6 Quissamá 0 3 0 3 Rebolo 7 06,5 11 7 25 subtotal 18 16,83 59 18,32 46 13,53 123 15,99 Benguela 26 24,2 55 17,08 42 11,26 123 15,99 Sul de Angola Ganguela 2 1 2 5 subtotal 28 26,17 56 17,39 44 12,94 128 16,64 Moçambique 7 06,5 32 09,93 30 08,80 69 08,97 África Oriental Quilimane 0 2 0 2 Inhambane 0 2 5 7 subtotal 7 06,54 36 11,18 35 10,30 78 10,14 TOTAL 107 100 322 100 340 100 769 fonte: APERS, Inventários post-mortem de Rio Grande, 1825-1865. 12