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Transcrição:

Mesa-redonda 3.50: Sofrimento e sexualidade TRANSVESTISMO DE DUPLO PAPEL: A POSSIBILIDADE DA VIVÊNCIA AMBIVALENTE A identidade de gênero começa com a percepção de que se pertence a um sexo e não a outro. Esta percepção se dá inicialmente pelo processo de socialização enfatizado pelos pais, posteriormente pelos amigos, escola, e outros, e também por aquilo que a cultura vai definir como papéis masculinos e femininos. Os indivíduos portadores de transtornos da identidade de gênero apresentam uma forte e persistente preferência pela condição e papel do sexo oposto, com sentimentos de inadequação e desconforto no papel do sexo biológico. Estes transtornos podem ser manifestados verbalmente, onde o indivíduo afirma que pertence ao sexo oposto; e/ou de maneira não verbal, onde o indivíduo atua como sendo pertencente ao sexo oposto. Os portadores de tais transtornos apresentam como componente afetivo, três características básicas: um sentimento de profundo descontentamento com o sexo biológico; o desejo de possuir o corpo do sexo oposto; e o desejo de ser considerado membro do sexo oposto. Denominado então, de disforia de gênero 2. Tudo independente da orientação sexual; um indivíduo disfórico em seu gênero (masculino ou feminino) pode ter uma atração por homens, mulheres ou ambos, porque a disforia está relacionada a seu próprio corpo e personalidade, diz respeito à própria sexuação e não com afetividade e à escolha do objeto em si.

O estudo dos transtornos de identidade sexual remete-nos a diferenciação clássica de duas categorias, a dos sujeitos que demandam uma intervenção radical em seus corpos a cirurgia de redesignação sexual, que são os portadores de transexualismo e aqueles que não tem tal determinação, denominados como portadores de transvestismo de duplo papel. O portador de transexualismo deseja viver e ser aceito enquanto pessoa do gênero oposto e busca intensamente a mudança de gênero, tanto física como emocionalmente, utilizando-se de hormônios, de vestimentas do sexo oposto, e procurando a cirurgia de redesignação sexual. O portador do transvestismo de duplo papel também não aceita seu sexo biológico, faz tratamento hormonal, deseja pertencer ao sexo oposto, mas pode conseguir, diferentemente do transexual, viver a ambigüidade dos papéis de gênero, identificar e suportar a ambivalência em sua vida emocional, podendo desta forma evitar a modificação radical do corpo. Segundo o Manual de Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 10 ª Revisão (CID-10) (OMS, 1993), os Transtornos de Identidade Sexual (F64) encontram-se na categoria Transtornos Mentais e de Comportamento, e estão divididos principalmente em Transexualismo, Transvestismo bivalente ou Transvestismo de duplo papel, e Transtorno da identidade de gênero da infância. E outras duas classificadas como Outros transtornos da identidade sexual e Transtorno não especificado da identidade sexual (transtorno do papel sexual SOE). Assim, na CID-10, o transexualismo está definido como um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto, de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão

conforme quanto possível ao sexo desejado. Enquanto que o transvestismo de duplo papel designa o fato de usar vestimentas do sexo oposto durante uma parte de sua existência, de modo a satisfazer a experiência temporária de pertencer ao sexo oposto, mas sem desejo de alteração sexual mais permanente ou de uma transformação cirúrgica; a mudança de vestimenta não se acompanha de excitação sexual. Ainda na CID-10, encontramos o transvestismo fetichista, classificado como um Transtorno da Preferência Sexual (F65), onde o indivíduo veste roupas do sexo oposto, principalmente com o objetivo de obter excitação sexual e de criar a aparência de pessoa do sexo oposto. O travestismo fetichista se distingue do travestismo transexual pela sua associação clara com uma excitação sexual e pela necessidade de se remover as roupas uma vez que o orgasmo ocorra e haja declínio da excitação sexual. Pode ocorrer como fase preliminar no desenvolvimento do transexualismo. Já o Manual Diagnóstico Estatístico, 4 ª edição, texto revisado (DSM-IV-TR) (APA, 2000), classifica o Transtorno de Identidade de Gênero partindo dos seguintes critérios diagnósticos: Uma identificação forte e persistente com o gênero oposto. Em crianças, a perturbação é manifestada por quatro (ou mais) dos seguintes quesitos: 1. declarou repetidamente o desejo de ser, ou insistência de que é, do sexo oposto; 2. em meninos, preferência pelo uso de roupas do gênero oposto ou simulação de trajes femininos: em meninas, insistência em usar apenas roupas estereotipicamente masculinas; 3. preferências intensas e persistentes por papéis do sexo oposto em brincadeiras de faz-de-conta, ou fantasias persistentes acerca de ser do sexo oposto; 4. intenso desejo de participar em jogos e passatempos estereotípicos do sexo oposto; 5. forte preferência por companheiros do sexo oposto. Enquanto que em adolescentes e adultos, o distúrbio se manifesta por sintomas tais como desejo declarado de viver, de ser e ser tratado como do sexo oposto, passar-se freqüentemente por alguém do sexo

oposto, e/ou a convicção de ter os sentimentos e reações típicos do sexo oposto, além de um desconforto persistente com seu sexo ou sentimento de inadequação no papel de gênero deste sexo. O distúrbio também manifesta-se por sintomas tais como preocupação em ver-se livre de características sexuais primárias ou secundárias (por exemplo, solicitação de hormônios, cirurgia ou outros procedimentos para alterar fisicamente as características sexuais com o objetivo de simular o sexo oposto) ou crença de ter nascido com o sexo errado. Em relação à etiologia, temos que do ponto de vista biológico, o transtorno de identidade de gênero pressupõe uma continuidade evolutiva da homossexualidade, havendo estudos relacionados à genética, às influências hormonais e à possibilidade de envolvimento cerebral e do sistema nervoso central. Já, em relação às teorias psicológicas, vários autores estudam a dinâmica psíquica dos portadores de transtorno de identidade de gênero. Todos concordam que existe um caminho para a identificação sexual, que toda construção da história pessoal, sexual e afetiva de um indivíduo, iniciase na infância, ou mesmo antes, durante a própria gestação. E que esta construção está intimamente relacionada à dinâmica psíquica dos pais e aos relacionamentos afetivos entre pai e mãe; pai e filho; mãe e filho; e pai, mãe e filho. Robert Stoller 4 descreve o verdadeiro transexual masculino com um quadro clínico bem definido, tanto em sua dinâmica, como na etiologia. Onde o garoto está enraizado em uma extasiante simbiose com a mãe, o qual passa a ter um problema de identidade de gênero; mesmo querendo ser um menino, a mãe decide que ele viva até a puberdade como uma menina, porém a mãe faz também com que seu filho tenha um falo feminizado. Stoller 4 entende que o transexualismo masculino possui como origem uma determinada seqüência:

1) invasão da mãe em seu filho e a proximidade entre eles, onde ocorre uma extrema simbiose, gerando intensa identificação; 2) ausência do pai, onde não se estabelece o conflito edipiano; 3) passividade e a bissexualidade do pai, onde este mantém pouca responsabilidade no papel de marido e pai; 4) baixa freqüência de divórcios, onde o casal mantém o casamento infeliz; 5) influência da irmã, o que significa uma irmã que reforce o comportamento feminino do menino. De qualquer forma, Stoller 4 entende que o transexualismo depende do que ocorre com o menino no início de sua infância. E que por não ter vivido o conflito edipiano, o transexual têm dificuldade em estabelecer vínculos, gerando relacionamentos aparentes e pouco profundos. Afirma também que o transexual não é psicótico, que ele tem plena consciência de possuir um corpo biologicamente masculino. Mervin Glasser apresentou seu painel no Congresso, escrito por Chiland 3, afirmando que um complexo central influencia toda a estrutura de personalidade de um indivíduo. Um dos componentes deste complexo central no transvestismo é a fusão com o objeto (originalmente, a mãe idealizada), onde a criança estabelece a conexão com a mãe através de uma identificação. O travesti sabe que não pode ser e nem é sua mãe, mas segundo Glasser, modela seu comportamento baseado na mãe, inclusive a nível corporal. Vive um processo de simulação, como função defensiva. Assim, no transvestismo, como em todas as perversões, ocorre uma libidinização de intensa agressão vinda do complexo central, e os relacionamentos afetivos e/ou eróticos passam a ser sempre de natureza sadomasoquista. Glasser ainda afirma que os transexuais diferem dos travestis, por estes não terem medo da castração, pelo contrário, buscam-na, através da cirurgia de

redesignação. E que transexualismo não é uma perversão, por não ocorrer uma libidinização a fim de resolver os conflitos do complexo central, como no transvestismo. Por outro lado, Meyer * citado por Chiland 3, afirma que no transvestismo o indivíduo preserva a identidade sexual biológica e a heterossexualidade, e que efetivamente ele pode integrar a ambivalência vivida, enquanto que os transexuais não conseguem integrar esta ambivalência, devido o conflito para o transexual estar no corpo e não na identidade, fazendo com que o indivíduo não perceba a ambivalência. Para o transexual ocorre um erro no nascimento, existe uma convicção de que se pertence ao sexo oposto, o que pode evidenciar a fragmentação entre corpo e mente e a não possibilidade de integração da duplicidade. Segundo ele, alguns portadores de transvestismo, após um tempo, podem solicitar a cirurgia de redesignação sexual. Enquanto que Chilland 3 considera que o transtorno de identidade de gênero é uma resposta às mensagens conscientes ou inconscientes passadas pelos pais como não sendo amadas por serem quem são. O menino, segundo esta autora 5, pode sentir na experiência de simbiose com a mãe, uma felicidade extasiante ou um perigo de destruição. Quanto ao transexualismo feminino, as meninas vivem experiências felizes com suas mães na infância, tendo pais ausentes. E que ao trabalhar em psicoterapia, os pais necessitam também de tratamento. Segundo Chiland 3, um portador de transvestismo busca psicoterapia devido a conflitos que vive neste papel de gênero, ao passo que o transexual não sente que possui um conflito psicológico, e sim que tem um problema corporal, que pode ser resolvido com hormônios e cirurgia. * Meyer, JK. Panel held at the 40 th Congress of the Intenational Psychoanalytical Association, Barcelona, 1997.

Oppenheimer *, citada por Saadeh 6, afirma que no transexualismo masculino ocorre grande depreciação da masculinidade junto a um sentimento insuportável de castração. Não há identificação com o pai, e a intimidade criada com a mãe funciona como uma compensação, que faz do filho um espelho para si mesma. O filho passa a idealizá-la, formando um vínculo reparatório para satisfazê-la. Catherine Millot 7 defende que o transexualismo é uma tentativa de alívio da carência do pai: do limite, da ordem, da interdição do incesto. Então, o homem transexual suplanta a função paterna, buscando ser uma mulher através da elevação do feminino. A posição do transexual consiste em se querer Toda, inteiramente mulher, mais mulher que todas a mulheres e valendo por todas 7. O ideal do feminino, segundo a autora é a super-star. É o gozo da onipotência, é a busca do ajustamento do real ao imaginário. Millot 7 ainda afirma que os transexuais masculinos se preocupam em demasia com a imagem, como se seus desejos se reduzissem a ter a aparência feminina, como se o corpo fosse uma roupa que pudesse ser trocada e retocada; uma vivência sem a preocupação com o sentido de possuir uma identidade feminina. Enquanto que Safouan *, citado por Garcia 9, diferencia o transexualismo do transvestismo de duplo papel, afirmando que o transexual não contesta a diferenciação entre os sexos, ele a acata, mas recusa-se a identificar-se com seu corpo e se conduz à castração; enquanto que o travesti percebe e entende a realidade, reconhece seu corpo, mas o recusa, podendo chegar aos limites da castração. Para Michel et al. 8 os transexuais masculinos possuem uma maior conformidade com sua imagem feminina e um maior desejo em corresponder ao modelo feminino da sociedade, buscam a cirurgia a fim de reduzir o conflito entre sua identidade de gênero * Oppenheimer A. The wish for a sex change: a challenge to psychoanalysis? Int J Psychoanal. 1991; 72(2):221-31. * Safouan, M. Contribuições à psicanálise do transexualismo. In Estudo sobre o Édipo: Introdução a uma teoria do sujeito. Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar. 1979.

feminina e seu corpo, pois sentem e consideram-se mulheres de verdade, apresentando pouco sofrimento em relação à própria identidade. Já os não transexuais, como escrevem os autores, apresentam maior confusão e tensão na identidade sexual, a identidade de gênero feminina gera desconforto e mal-estar, sofrem por estar em desacordo com o sexo biológico. Desta, forma podemos chegar às seguintes conclusões: 1. Apesar dos portadores de transvestismo de duplo papel e de transexualismo viverem um conflito em relação a própria identidade, onde sentem-se inadequados no corpo biológico e desejam pertencer ao sexo oposto, o portador de transvestismo de duplo papel vivencia a ambivalência resultante do conflito a nível psíquico, enquanto o portador do transexualismo vivencia um sentimento de fragmentação entre corpo e mente, percebendo seu corpo inadequado, tornando-se necessária a cirurgia de redesignação sexual para ajustar-se a percepção de si mesmo. A ambivalência vivida pelo portador de transvestismo de duplo papel, apesar de conflitiva, sinaliza para uma vivência com mais possibilidades, onde a radicalidade de um procedimento cirúrgico irreversível pode ser evitada. 2. O portador de transvestismo de duplo papel recusa o corpo biológico, mas não o nega como faz o portador do transexualismo. Por meio da aceitação do próprio corpo e das funções relacionadas ao próprio gênero, o indivíduo consegue a integração da duplicidade, diminuindo o conflito ambivalente. 3. Verifica-se um menor comprometimento psíquico no portador de transvestismo de duplo papel frente à possibilidade dele conseguir viver com o seu sexo biológico, apesar da ambivalência, o que demonstra de alguma maneira, menor comprometimento do desenvolvimento de personalidade e maior possibilidade de diferenciação. E

4. O portador de transvestismo de duplo papel, apesar da forte identificação com a mãe, tal qual o de transexualismo, consegue se separar dela e se diferenciar durante seu desenvolvimento psíquico. Porém, o portador de transexualismo vive a indiferenciação da mãe, favorecendo a formação de identidade de gênero feminina. O que se pode notar, é que ocorre sempre uma identificação do menino portador de um ou outro transtorno, com a mãe. O que se verifica como uma possível diferença é que no transexualismo o menino cria uma simbiose com a mãe, não sendo capaz de diferenciar-se dela, porque como cita Stoller 4 esta mãe é tudo para o filho e o filho é tudo para a mãe, tornando a separação entre um e outro impossível de realizar-se. A mãe prende o filho em seu mundo mágico, e o filho ainda incapaz de se perceber como um ser diferente do outro, aceita inconscientemente a prisão. O que se verifica no transvestismo, segundo a literatura encontrada, é a mesma situação, simbiose, fusão, falta de identificação com a figura paterna. Porém, o portador de transvestismo de duplo papel tem consciência de seu corpo biológico, não sente como uma fragmentação total, sente-se ambivalente e não um ser indiferenciado da mãe, o que já demonstra uma diferença no percurso do desenvolvimento psíquico. O indivíduo portador de transexualismo, ao não perceber o conflito psíquico entre ser homem ou mulher, sentindo-se pertencente ao sexo oposto recorre imediatamente à cirurgia de redesignação sexual e concretiza sua fragmentação. Já, o portador do transvestismo de duplo papel, percebe o conflito psíquico, sofre com a ambivalência e tenta resolvê-lo, através da busca da cirurgia e/ou de terapia, e com o decorrer do tempo, torna-se possível a vivência da ambivalência, de circular entre os dois mundos criados dentro de si mesmo, o mundo masculino e o mundo feminino, sem precisar ser uma outra pessoa do sexo oposto, eliminando o que há de real em si o corpo biológico.

REFERÊNCIAS 1. NEDEFF, CC. Contribuições da Sexologia sobre a Sexualidade Infantil nos dois primeiros anos de Vida: uma revisão bibliográfica. São Paulo. Universidade Presbiteriana Mackenzie; 2001. Disponível em: http://www.mackenzie.com.br/universidade/psico/publicacao/vol3_n2/v3n2_art7.pd f. 2. KAPLAN, HI. e SADOCK, BJ. Tratado de Psiquiatria. 6 ª edição. Porto Alegre. Editora Artmed. 1999. 3. CHILAND, C. Panel Reports: Transvestism and Transsexualism. Int J Psychoanal. 1998; 79: 156-9. 4. STOLLER, RJ. A Experiência Transexual. 1 ª edição. Rio de Janeiro. Imago Editora. 1982. 5. CHILAND, C. The Psychoanalyst and the transsexual patient. Int J Psychoanal. 2000; 81(1): 21-35. 6. SAADEH A. Transtorno de Identidade Sexual: um estudo psicopatológico de transexualismo masculino e feminino. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2004. 7. MILLOT, C. Extrasexo: ensaio sobre o transexualismo. 1 ª edição. São Paulo. Ed. Escuta. 1992.

8. MICHEL A, ANSSEAU M, LEGROS JJ, PITCHOT W, CORNET JP, MORMONT C. Comparisons of Two Groups of Sex-Change Applicants Based on The MMPI. Psychological Reports, 2002; 91:233-40. 9. GARCIA, JC. Problemáticas da Identidade Sexual. 3 ª edição. São Paulo. Casa do Psicólogo Livraria e Editora. 2005.