Falar a clínica Siloé Rey 1

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Transcrição:

Falar a clínica Siloé Rey 1 Em Psicanálise, já desde a fundação do campo, inaugurou-se a tradição de falar sobre a clínica. Freud toma da medicina o modelo do estudo de caso, conduzindo a transmissão através do relato de exemplos e vinhetas da intimidade da cena analítica, para produzir a articulação das hipóteses teóricas e problematizar os aspectos inerentes à relação paciente-analista, constitutivo dessa experiência. Apesar da importância de sua passagem pela Salpetrière na sua formação, Freud dispensou a proposta de apresentação de pacientes que Charcot havia instituído, nas demonstrações que fazia com as pacientes histéricas, especialmente. Propõe, como dispositivo de controle dessa comunicação de inconsciente a inconsciente em causa no fazer clínico, a supervisão, como um dos requisitos imprescindíveis do trabalho do psicanalista. Como sabemos, nela se estabelece a escuta de um praticante por outro de maior experiência vinculados por um laço transferencial. Fora da questão da construção do arcabouço teórico necessário à sustentação da prática, falar a clínica é uma necessidade concreta e cotidiana exigida por esse trabalho com o inconsciente. É justamente a necessidade de manutenção dos laços entre analistas que funda a dimensão institucional da psicanálise, no início com a fundação do Instituto de Berlim, experiência inaugural da qual se derivou a complexidade da psicanálise como instituição no decorrer desses cento e poucos anos de sua atividade na cultura ocidental. Com Lacan, então, a experiência institucional adquire ainda mais importância no que sustenta a formação de alguém referido ao campo da psicanálise. Seus questionamentos da política institucional da formação são bem divulgados e seu ato de rompimento com a IPA repercutiu significativamente, alterando os referenciais da formação em Psicanálise definitivamente. Ao clássico tripé da formação (análise, supervisão e estudo teórico), acrescenta mais um pé: a vida institucional. É a experiência compartilhada com os colegas, na qualidade de testemunho dos efeitos do inconsciente, o que produzirá o reconhecimento, respaldando os avanços teóricos efeito dessa discussão. Assim é que o praticante necessariamente terá que se defrontar com a questão de falar sua clínica. O que propicia que o clínico tome a palavra para dar testemunho de sua prática? 1 Psicanalista, Analista Membro da APPOA, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade, Professora do Curso de Psicologia ULBRA Torres.

A concepção de sujeito para a psicanálise é intrínseca à condição de ser falante. Para ela o sujeito só o é na linguagem, com sua consciência e sua inconsciência. Assim, a questão do falar não é qualquer uma na articulação teórica em psicanálise, especialmente na teoria da constituição subjetiva que dá conta de como o candidato a sujeito humano se constitui apropriando-se da linguagem; também não é pouca questão para nossa clínica: o neurótico é alguém que mais cedo ou mais tarde há de se haver com sua fala, sendo comum escutarmos alguém no divã constatando perplexo que não sabe falar. A linguagem permite ao sujeito constituir-se a partir do discurso que o envolve desde a concepção e, quando ocorre a alguém existir fora dela, temos sérios problemas, como o autismo nos ensina. A palavra tem a capacidade de transformar coisas em signos, que o sujeito terá que ordenar simbolicamente para falar. E precisará ser situado em determinada posição, a partir do discurso pré-formado, discurso já estabelecido, para que venha a ter a condição de compor sua série. A partir de sua posição na filiação, no desejo de seus pais, o sujeito tomará uma posição na linguagem. Como sabemos, é preciso que o Outro o tome numa posição significante, que o Outro suponha nele uma significação, interpretando os signos que o bebê consegue expressar numa série significante, para que a partir daí fale, advindo sujeito. O clínico não terá que passar por processo equivalente para falar sua clínica, constituindo-se a partir do acolhimento (bejahung) no sistema da psicanálise? Czermak (2007) vai apontar que a profissão do clínico, por seu caráter artesanal, em que o savoir-faire, as questões, as inovações, os progressos se dão primeiro através do que se deve chamar de companheirismo. Ele ainda define: falar de companheirismo significa que cada um esteja em seu lugar legítimo, de acordo com sua experiência, sua idade, sua função; enfim, que aja no que ordena o companheirismo algo que se pode chamar da ordem da transferência (p.222). Para cada analista, especialmente no início de sua prática, cabe a tarefa de construir uma possibilidade de comunicar sua clínica. Sustentado pela transferência com a psicanálise e atravessado pelo que sabe da linguagem e pelo que sua análise lhe forneceu como experiência de fala, o jovem clínico se lançará na construção de um estilo próprio de falar sua clínica na supervisão ou análise de controle. Na análise pessoal já havia aprendido a se escutar, agora, ao dar testemunho de sua clínica, trata-se de fazer algo com os efeitos dessa aprendizagem. Nessa trajetória, pouco a pouco, o clínico irá se autorizando a ir tomando a palavra em outros fóruns discursivos além da supervisão e análise. E aí se destaca a importância das instituições de formação, sejam clínicas-escola ou a própria instituição psicanalítica, como um lugar ordenador, que viabiliza a confecção desse artesanato.

Falar a psicose Uma tradição que foi re-editada por Lacan, para falar a clínica veio do campo da escuta da psicose. Assim como esse autor inova ao propor um corpus teórico que produz melhor sustentação à intervenção psicanalítica da psicose, inova também ao resgatar a apresentação de pacientes, criando uma ferramenta fundamental na formação. Jerusalinsky(2007), considera que os longos anos de discussão de casos clínicos, até que Lacan resgatasse a apresentação de pacientes, deveram-se a não resolução de problemas éticos e morais que a apresentação pública dos pacientes colocava, especialmente quando apresentava a histérica apenas como um corpo. Diz o autor: A psicanálise, pelo seu lado, devendo já suportar a pesada carga social de ter descoberto até que ponto a questão sexual é protagonista essencial nas doenças psíquicas, retraiuse durante cinco décadas desse desafio ético e moral. Podemos considerar tal atitude não somente compreensível, mas também, ponderada. Foi necessária a elaboração de um campo conceitual que permitisse ao sujeito ser artífice de sua própria apresentação, para que esta, tendo a finalidade de ensino, obedecesse principalmente a um momento necessário da cura (p.249). Quando Lacan retoma a prática charcotiana em Saint Anne, apresentando pacientes graves, sustenta o argumento de que estes casos exigiam, pela estagnação de seu processo clínico, um relançamento transferencial. O delírio na psicose nos mostra que nela não há o que possa regular a intersecção com o Outro, porque este encontro está marcado de modo preciso e inapelável, num lugar fixo, já que o que vem do Outro lhe retorna como real. (...) o fato de se tratar de pacientes psicóticos, ou na borda de tal definição de estrutura, situava o Outro numa condição real na qual o caráter coletivo de um saber distribuído num auditório autorizado, vinha emprestar, à transferência estagnada, novos espelhos que, na sua disseminação, oferecia novas chances à direção da cura (Jerusalinsky, 2007, p.249). A experiência tem demonstrado a pertinência da proposta lacaniana e os resultados dela advindos a legitimam completamente. Para tanto, pelo lado do clínico e como nos lembra Czermak (2007), é preciso coragem. Não é fácil colocar-se em exame quando, justamente, é a questão do inconsciente que está em causa. No entanto, essa análise se

impõe: quando se examina um paciente, não se pode deixar de examinar aquele que o examina, que trata dele. A transferência obriga (p.229). Segundo o autor, o clínico assume metade do sintoma, não há sintoma definido sem este Outro na transferência. Falar a neurose Na clínica da neurose a apresentação de pacientes é mais rara. Sua tradição, inaugurada por Freud, repousa nos estudos de caso, onde se conta com a narrativa do clínico, sem a presença do paciente. De qualquer maneira não há como escapar: no ofício da escuta estamos sempre implicados. A formulação de Lacan de que, desde que se fale, estamos sempre na posição de analisante contribui para aplacar a angústia, sugerindo ao psicanalista que se deixe falar e confie na escuta de seus pares. Deles poderá receber outras versões sobre aquilo que por estar vivendo, ignora, já que toda transferência tem seus pontos cegos. Esse se deixar falar, no entanto, também não é fácil já que, ao discursar, o falante exibirá os efeitos de estar constituído na linguagem. Segundo as leis da linguagem, o sujeito não pode controlar a mudança que vai se introduzir no que disse a partir das próximas palavras que vai dizer. De acordo com Jerusalinsky (1999), autor que tem oferecido significativa produção no campo da articulação entre linguagem e constituição subjetiva 2, em um artigo antigo e fundamental: (...) é um problema que o sujeito tem incessantemente, porque se antecipa em seu dizer um efeito que vai causar no Outro, se ele continua na senda do dizer pela qual vinha. É por isso que vai mudando, articulando o que diz, em função dessa antecipação que se produz, inconscientemente em seu dizer. O Outro, em seu discurso produz nesse ponto, que é o presente, o agora, produz uma mudança no que eu vou dizendo, e o que vou dizendo fica determinado por este suposto inconsciente de encontro com o Outro, através de meu dizer (p.57). Pela própria estrutura da linguagem, qualquer coisa que seja dita vai esbarrar com algo que já foi dito previamente e isso fará com que o que se escuta se situe de determinada maneira, em determinada posição, em determinado lugar. No artigo citado, o autor retoma o exemplo da frase ai querida assim não podemos continuar vivendo (Jerusalinsky, 1999, apud Cabas, 1982), para demonstrar que o último termo interposto na série 2 O autor acaba de lançar em livro sua tese de doutoramento sobre o tema: JERUSALINSKY, A. Saber falar: como se adquire a língua? RJ: Vozes, 2008.

altera o significado do anteriormente enunciado. Conforme formos suprimindo a última palavra, o sentido vai se alterando. O sujeito fica exposto, assim, ao mal-entendido, inerente à própria linguagem, proporcionado pelo deslocamento do lugar original em que tal coisa foi dita: dependendo do lugar na série significará coisas diferentes. Para que o sujeito possa lidar com tal arbitrariedade, inerente à linguagem, terá que desenvolver a função semiótica. Assim com todas as funções psíquicas, a competência para o desenvolvimento desta também terá de ser extraída da qualidade da constituição subjetiva e, portanto, da posição na filiação. Lembrando o clássico exemplo do choro do bebê, sabemos que para que ele possa se inscrever na linguagem, seu choro não deverá ser tomado como signo, mas significante. É necessário que a mãe suponha ali uma significação a ser interpretada. Para que o sujeito desenvolva a função semiótica deverá contar com uma função materna suficientemente interpretativa, para ser inscrito numa série significante, produto de uma série de interpretações. Se tal sujeito se depara com uma mãe apenas descritiva, sem capacidade de diferentes interpretações para seu reduzido repertório de manifestações, típico do início da vida, estará em maus lençóis: terá dificuldades em se confrontar com as várias versões que seus dizeres mobilizam nos outros. Assim, própria neurose do psicanalista nem sempre permite que o que vem dos outros seja recebido sem angústia, ou mesmo, sem paranóia. Quando se acrescenta a isso um elemento de inibição, o clínico evidenciará seu sofrimento na experiência institucional com os pares. Trabalho ainda mais delicado de constituição do falar a clínica e que necessitará de cuidadoso suporte institucional. Tal como a criança, o clínico aprenderá que as versões que são recolhidas a partir de seu dito, não só o orientam com relação ao objeto que falta, e que ignora, como também se constituem no próprio sentido do porquê falar. É nesse desafio que a formação em psicanálise lança o sujeito, desafio bem diferente do paradigma médico da discussão de casos, na qual a questão do diagnóstico é o ponto de onde se parte. A descrição da fenomenologia comportamental e do funcionamento egóico do paciente, desconsiderando a dimensão transferencial implicada na escuta, reduz a comunicação do caso aos pares à tentação de escutar desde uma posição apenas nosológica, havendo neste ponto a redução interpretativa. E como sabemos que a interpretação toma valor menos pelo seu conteúdo do que pela conjuntura na qual intervém, há redução no sentido do que pode vir a se produzir através da experiência de falar a clínica. Construir um estilo de falar a clínica, a partir da Psicanálise, passa pelo sujeito se re-encontrar no que o isso fala. Como a posição de sujeito não está garantida para o humano - vide os efeitos que uma crise psíquica produz como efeito de despersonalização - sendo relançada a cada embate com o Outro, o clínico precisará correr o risco de comunicar sua

clínica, para recolher daí efeitos subjetivos de reconhecimento que lhe permitam o relançamento de sua posição de escuta. REFERÊNCIAS CZERMAK, Marcel. A apresentação de pacientes com Jacques Lacan. In: Comissão de Aperiódicos da APPOA (org). Psicose: aberturas da clínica. Porto Alegre: Libretos, 2007. JERUSALINSKY, Alfredo. De como uma paciente saiu da anestesia sensorial através de sua apresentação pública. In: Comissão de Aperiódicos da APPOA (org). Psicose: aberturas da clínica. Porto Alegre: Libretos, 2007. Falar uma criança. In: Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque transdisciplinar. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.