A criança e o adolescente no testemunho: sujeito ou objeto

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Transcrição:

Opção Lacaniana online nova série Ano 7 Número 20 julho 2016 ISSN 2177-2673 1 Leonardo Lopes Miranda Diante das demandas jurídicas, propomos pensar a posição do analista em relação a sua prática que diz respeito a escuta do testemunho em sua singularidade. Para isso, recorro à experiência em instituição que atende crianças e adolescentes supostamente vítimas de violência domiciliar. O que chama atenção neste trabalho são especialmente casos de abuso sexual que tinham como suspeitos pais ou padrastos. O programa de atendimento intitulado ARCA (Atenção e respeito a crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica) se propunha a proteger crianças e adolescentes em posição de vítima dos diversos tipos de violência, avaliando a ocorrência do ato e a situação de risco. A metodologia consistia em atendimentos realizados por psicólogos e assistentes sociais com apoio jurídico. Os casos eram encaminhados através de ofícios pelos Órgãos de Proteção a Criança e ao Adolescente que solicitavam em prazo de seis meses a avaliação da suspeita de violência denunciada. Os profissionais deveriam realizar o acompanhamento com a família e com a criança e então elaborar um relatório com o diagnóstico sobre a veracidade da denúncia. Não se tratava de um veredicto final, mas, na relação com o judiciário, os profissionais do Programa tinham função de testemunhar o testemunho da criança. Frequentemente éramos convocados como testemunhas a participar das audiências sobre os casos e a responder pelo 1

relatório que elaborávamos. Assim, o profissional ocupava a posição de quem falava pela criança numa tentativa de, por meios jurídicos, dar voz à vítima. Ao mesmo tempo, esse era um dispositivo inventado com objetivo de descobrir a verdade em relação ao crime. Segundo Amendola 2, a complexidade dessas investigações problematiza os métodos empregados nas avaliações. A autora aponta para a possibilidade do testemunho da criança ser influenciado por um dos genitores com o objetivo de afastar e prejudicar o genitor acusado. Essa interferência daqueles que detêm a guarda da criança e visam prejudicar o convívio de um dos genitores ganhou nome e se corporificou na legislação como alienação parental 3. Furniss 4 Por isso, a entrevista de revelação teorizada por é um procedimento que requer algumas técnicas específicas e bem manejadas que possibilitem um espaço de fala no qual a criança se sinta à vontade e crie um laço de confiança com o entrevistador. A entrevista de revelação é dirigida pelo psicólogo com o intuito de fazer a criança revelar um segredo. Furniss, porém, não desconsidera os diversos mecanismos de defesa utilizados pela criança, que deixaria de revelar por culpa, medo ou negação. A esses fatores que em alguns momentos podem influenciar a fala da criança, o autor chamou de síndrome do segredo e são produzidos pela: [...] falta de evidências médicas e de elementos para comprovar o abuso sexual infantil, a necessidade de acusação verbal por parte da criança, a falta de credibilidade ao menor, as consequências da revelação, ameaças físicas e psicológicas, distorção da realidade e medo da punição pela ação da qual participou, a culpa da criança a negação e a dissociação 5. No Programa ARCA, as avaliações eram feitas em duplas, e as discussões visavam pensar uma melhor forma de fazer a vítima revelar o segredo. Por isso, cada profissional 2

tinha que ter condições de esclarecer suas suspeitas, ou seja, se houve ou não abuso partindo da análise da fala e da observação do comportamento da criança ou do adolescente 6. O saber estaria do lado do profissional, que avaliava se o que estava sendo dito era verdadeiro ou falso, utilizando as técnicas desenvolvidas através dos estudos realizados com crianças e adolescentes que já foram abusadas sexualmente. A retificação ou não do dizer do entrevistado ficaria por conta do profissional que o avaliou, o que gera diversas controvérsias, pois, segundo os psicólogos especialistas, não são poucas as peculiaridades que podem gerar as chamadas falsas alegações. Sobre isso, Furniss comenta: A experiência clínica mostra que as que fazem alegações de abuso sexual na família geralmente não mentem, mas falam a verdade. No entanto, há três grupos de crianças nos quais precisamos ter cuidados quando avaliamos alegações de abuso sexual. As alegações de (1) crianças mais velhas em lares de crianças, (2) de adolescentes em famílias recentemente construídas e de crianças em famílias com separação e divórcio precisam ser tratadas com cuidado 7. A avaliação e o discurso da psicanálise Em 1906 Freud foi convidado pelo professor de jurisprudência de Viena, Alex Loffer, para ministrar uma conferência para os alunos da universidade sobre psicanálise e os procedimentos forenses. Freud 8 comenta a técnica dos testes projetivos e os complexos que Jung propôs para serem utilizados nas inquirições dos suspeitos de cometerem crimes. Raúl Vera Barros comenta esse procedimento: Gustav Jung havia proposto entre 1904 e 1906 aplicar o experimento da associação às provas judiciais, ou seja, apresentar aos acusados de crimes uma serie de palavras, como palavras 3

estímulos, incluindo entre elas algumas tomadas das circunstâncias conhecidas do crime investigado, a fim de obter uma prova de sua culpabilidade ou inocência a partir das respostas com as que o investigado associava, as que revelariam ou não a presença de um complexo 9. A técnica projetiva consistia na apresentação surpresa da palavra-estímulo ao acusado. Seria uma palavra que teria relação com os fatos ocorridos no crime para o psicólogo observar a reação do réu (conteúdo da reação, tempo de reação, engano na reação) e, a partir daí, avaliar a culpabilidade do mesmo sobre o crime investigado. A ideia era de que a reação do acusado revelaria a ausência ou a presença de um complexo, termo que provavelmente Freud usou pela primeira vez em suas publicações e que neste contexto era definido como todo conteúdo ideativo que é capaz de influenciar a reação à palavra-estímulo 10. Esse experimento de associação é oriundo da escola de Wilhelm Wundt, com intuito de apresentar as palavrasestímulo e avaliar o tempo de resposta do paciente 11. Freud localiza, porém, algumas diferenças entre a associação com as palavras-estímulo e a técnica psicanalítica da associação livre proposta por ele. O ponto diferencial que faz da técnica analítica uma escuta singular é que a associação livre parte do princípio de que o paciente fala sem nenhuma palavra selecionada anteriormente, ao contrário da palavra estímulo, que expõe uma palavra pré-selecionada pelo entrevistador. Na associação livre, o paciente fala o que vier a sua cabeça, mesmo os pensamentos que julga sem importância. Essa regra, tida por Freud como fundamental na experiência analítica, surgiu a partir da paciente Emmy von N. Freud relata que, após interromper o estado hipnótico da paciente e indagar-lhe sobre alguns sintomas, esta se recusou a responder e simplesmente pediu para ser escutada. Freud descreve assim esse acontecimento com Emmy von N: 4

Aproveitei também a oportunidade para lhe perguntar por que ela sofria de dores gástricas e de onde provinham. [...] Sua resposta, dada a contragosto, foi de que não sabia. Pedi-lhe que se lembrasse até amanhã. Disse-me, então num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contarme o que tinha a dizer 12. O nascimento da associação livre já demonstrava, como diria Lacan, que o analista não deve de modo algum dirigir o paciente 13. Ao apontar as diferenças entre essas técnicas, Freud chama atenção para alguns conceitos da psicanálise. Uma diferença importante diz respeito ao segredo escondido, ou seja, o que está oculto enquanto o sujeito fala. Na técnica de projeção investigatória, o acusado esconde um segredo dos investigadores, sobre o qual o testemunho jurídico visa à revelação, ao passo que, na experiência da psicanálise, o que está oculto é inconsciente. Já apontamos a diferença principal: no neurótico o segredo está oculto de sua própria consciência; no criminoso está oculto apenas dos senhores 14. Freud afirma ainda que a busca objetiva dos juristas se contrapõe à técnica da psicanálise na medida em que a busca pelo conteúdo recalcado conta com a colaboração consciente dos pacientes e que o encontro com esse conteúdo precisa ser reconhecido pelo próprio paciente. Por outro lado, no testemunho jurídico, o criminoso evita construir provas contra si mesmo e a confissão é de interesse exclusivo dos peritos. Na psicanálise, o paciente ajuda a combater sua resistência através de esforços conscientes, porque espera lucrar com essa investigação, isto é, curarse. O criminoso ao contrário, não cooperará com o 5

trabalho dos senhores; se o fizesse, estaria trabalhando contra todo o seu próprio ego 15. A diferença se dá em relação ao recalcado que, por ser inconsciente, aparece como surpresa no ato da fala, na falha da fala, ao passo que, no testemunho jurídico, o objetivo é descobrir o que o investigado está escondendo conscientemente. Para os especialistas em abuso sexual infantil há também, nas entrevistas de revelação, um segredo a ser revelado e reprimido por algo que vem de fora ou está no consciente. Segundo esses especialistas, a criança teme que o pai seja preso, que a mãe caia em sofrimento, que seja culpada pelo ato e diversos outros pensamentos e sentimentos que fazem com que a criança guarde o segredo sobre o ocorrido 16. Ou seja, existem outras questões não necessariamente traumáticas que influenciam no testemunho da criança. O comentário de Freud em relação aos testemunhos nesta conferência de 1906 aponta para um engano causado pelo próprio neurótico, mas no nível inconsciente. Ele explica que pode ocorrer a associação com outro episódio que também teria produzido algum sentimento de culpa, não necessariamente por um ato criminoso perante a legislação jurídica, mas um ato de transgressão perante a lei do supereu. Essa associação com algo que teria produzido culpa pode influenciar no teste projetivo e engendrar reações em um acusado de forma a ele se incriminar enganosamente pelo que está sendo julgado naquele momento. O comentário de Freud sobre esse engano é exemplificado pelo comportamento das crianças frente às acusações dos pais: Muitas vezes uma criança acusada de uma transgressão nega veemente sua culpa, embora chore como um criminoso desmascarado. Talvez pensem que a criança mentiu ao afirmar sua inocência, mas isto 6

nem sempre é verdade. Pode ser que, embora não tenha cometido uma falta de que a acusam, tenham cometido uma outra que permanece ignorada e que não lhe foi imputada 17. O testemunho jurídico visa extrair algo objetivo, que diz respeito ao ato criminoso a partir de uma escuta em um nível de compreensão muitas vezes excessivo, no qual profissionais apontam indícios de abusos. Como, por exemplo, ao traçar perfis de comportamento de crianças abusadas sexualmente como parâmetro para avaliar se é necessária uma denúncia para averiguação dos fatos ou uma confirmação da violência. Entretanto, não podemos negar que a invenção deste dispositivo de escuta das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual aponta para uma época em que há um rechaço à teoria sexual infantil. A forma como os especialistas consideram esta escuta, que parece propor uma reparação da psicanálise em relação à teoria da fantasia e um retorno à teoria da sedução, demonstra que a sociedade atual vem colocando a criança como objeto de consumo. Não é por acaso que a ciência unida ao capitalismo vigente inventou novas formas de produção de bebês em laboratório. O discurso do abuso sexual que tomou conta de nossa sociedade atualmente aponta para um sintoma em que a criança é objeto de gozo, o que de fato é reproduzido nos dispositivos e pelos psicólogos especialistas que cingem não só o imperativo de um trauma inevitável, consequente do abuso, mas também alertam sobre um risco generalizado da violência sexual, alimentando uma paranoia de que algo pode acontecer às crianças a qualquer momento, em qualquer lugar e com qualquer pessoa, inclusive em casa, com quem menos se espera. Tudo vira indício de abuso sexual. Há uma negação do corpo auto-erótico da infância, corpo atravessado por pulsões libidinais parciais, e do sujeito que seduz na condição de criança, não de adulto. 7

Lembremos que o discurso da vítima de abuso sexual inaugurou a técnica da psicanálise com os estudos sobre a etiologia da histeria. Freud acreditou que a histeria era proveniente de uma experiência sexual prematura vivida pelo sujeito. Sua descrença nisso culminou com a descoberta de que no inconsciente não há indicações de realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é investida no afeto 18. A criminologia e as investigações em psicanálise Conteúdo recalcado e repressão são conceitos que delimitam a diferença entre a experiência da psicanálise e o dispositivo jurídico. Os dois dispositivos trabalham em direção à verdade, mas o reconhecimento de uma realidade psíquica por parte da psicanálise os separa e distancia consideravelmente. Lacan ensina que não há discurso que não seja semblante, ou seja, nenhum testemunho é representante fiel da realidade, pois ao crivo do olhar, as imagens, são representações de um inconsciente estruturado como linguagem. Mesmo assim, na análise se busca uma verdade, sabendo que ela não existe. Não há verdade que ao passar pela atenção, não minta. O que não impede que se corra atrás dela 19. Por isso, vale a pena dizer que não se faz análise sem se utilizar de um discurso que é semblante. Não podemos fugir disso, sob pena de que nada se transmita do sujeito. Essa relação de alteridade com o campo do Outro permite que algo do sujeito apareça e acuse o que lhe causa. O objeto a resta na operação da linguagem, para que algo de singular, do sinthoma, apareça. É através da fala do paciente que, seguindo a regra fundamental da psicanálise, a da livre associação, o objeto aparece como causa. 8

O trabalho psicanalítico não pode se prender a uma demanda judicial para esclarecimento de um crime, seja para extrair a confissão da vítima, seja a do acusado. Freud 20 indicava isso ao responder à convocação de um perito judicial alegando impossibilidade da psicanálise julgar um acusado criminalmente. O parecer de Freud dizia respeito a um jovem austríaco judeu, Halsmann, acusado e condenado de assassinar o pai num julgamento marcado pelo movimento antissemita. Os peritos da Faculdade de Medicina de Innsbruk fundamentaram seus argumentos acusatórios utilizando a teoria do Édipo desenvolvida por Freud. Segundo Raul Vera Barros, os peritos [...] pretendendo basear-se em descobrimento de Freud, haviam atribuído ao suposto agressor um complexo de Édipo ativo 21. Diante da perícia apresentada pela acusação, o advogado do jovem solicitou a Freud opinião sobre tal relatório pericial. Apesar do movimento em defesa de Halsmann ele foi condenado a quatro anos de prisão. No memorando feito em relação ao caso, Freud argumenta que o complexo de Édipo não deve ser parâmetro de acusação em nenhum caso. Contudo, um trecho deste memorando pode nos servir de orientação em casos de demanda de avaliação, de pericias. Segundo Freud: Se tivesse objetivamente demonstrado que Phillipp Halsmann assassinara seu pai, haveria, em todo caso, alguns fundamentos para introduzir o complexo de Édipo, a fim de fornecer um motivo para um ato de outro modo inexplicável 22. Não há circunstâncias em que a psicanálise possa utilizar sua teoria para periciar um processo judicial. Só depois do veredicto judicial, a psicanálise pode exercer sua prática. Não há especialistas nem peritos no campo da psicanálise. Há a clínica e a direção da escuta do sujeito. Mesmo que na transferência o paciente suponha saber ao analista, este não deve responder deste lugar, porque nada 9

sabe sobre o sujeito. Um estudo pode ser feito posteriormente sobre os casos julgados, mas a partir de uma prática que tem a transferência como seu motor e a fala do sujeito como seu guia. No ano de 1932, Lacan defende sua tese de doutorado 23 em que expõe estudos baseados no acompanhamento de uma paciente, Aimée, condenada criminalmente por ferir a facadas uma atriz com quem desenvolvera um delírio persecutório. Destes estudos, Lacan desenvolveu sua teoria sobre casos de paranoia de autopunição a partir da leitura sobre os mecanismos psíquicos de autocastigo isolados por Freud 24. Posteriormente, Lacan sugere que alguns criminosos depois de julgados sejam encaminhados para a psicanálise e formula nessa ocasião que os casos que decorrem claramente do edipianismo deveriam ser confinados ao analista, sem nenhuma das limitações que podem entravar a sua ação 25. Citação interessante em que propõe outra posição da psicanálise no encontro com o direito. O estudo se realiza a partir do ato criminoso construído pela fala do sujeito e não uma investigação pericial para descobrir a verdade da fala do acusado em relação ao ato criminoso. Lacan diz que a verdade que nos é dada reconhecer com o sujeito não pode ser reduzida à objetivação científica 26. De fato a investigação realizada por Lacan no caso Aimée é um acontecimento que postula novo olhar e nova leitura da criminologia numa época em que o interesse pelos estudos das enfermidades mentais tem em sua direção uma resposta à demanda judicial. Segundo Barros: Lacan observa que o interesse médico psiquiátrico pelas enfermidades mentais surge precisamente a partir da necessidade de origem jurídica e faz uma advertência valiosa; os aportes que se podem fazer a respeito, pelo menos a partir da psicanálise, não podiam conformar-se a dicotomia extrema: 10

imputabilidade total inimputabilidade completa, no que geralmente reduz essas demandas periciais 27. Lacan propõe outra escuta para o criminoso, algo que não seja o reducionismo no qual a psiquiatria se refugiou em sua época e que até hoje a ciência jurídica insiste em replicar nas práticas que procuram pensar as estruturas psíquicas. A psicanálise, desde Freud, rechaçou a ideia do uso de sua teoria em classificações avaliativas e veredictos judiciais. O que se propõe no testemunho em psicanálise é outra coisa. Nada tem a ver com prevenção ou revelação de acontecimentos criminosos, mas com o tratamento posterior à passagem ao ato ou com o tratamento do gozo que invade o sujeito. O que não quer dizer inocentar, mas retirar o caráter monstruoso do ato criminoso e mostrá-lo humano. Diz Lacan em sua enigmática frase: [...] se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o criminoso 28. A experiência da psicanálise não se dá sem a verdade ficcional do paciente e o que se espera nas entrelinhas dessa história é o aparecimento do sujeito, é a surpresa, da qual não devemos recuar. É na hiância do encadeamento do significante que surge um sujeito. O que se espera da sessão é justamente aquilo que se recusa a esperar por medo de meter demais o dedo: a surpresa, como apontou Reik. [...] É isso que exclui qualquer processo de concentração - exclusão que é subjacente à ideia de associação 29. 1 O presente texto é originado da minha dissertação de mestrado, intitulada A criança como no testemunho: considerações psicanalíticas sobre a escuta do abuso sexual em dispositivos jurídicos, realizada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sob orientação da Profª Heloisa Caldas. 2 AMENDOLA, M. F. (2009). Crianças no Labirinto das Acusações: falsas alegações de abuso sexual. Curitiba: Juruá. 3 BRASIL. Lei n 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o art. 236 da lei n 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília. Disponível em: 11

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm.>. 4 FURNISS, T. (1993). Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre: Artes Médicas. 5 IDEM. Ibid., p. 29 6 IDEM. Ibidem. 7 IDEM. Ibid., p. 185. 8 FREUD, S. (2006[1906]). A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. IX. Rio de Janeiro: Imago Editora. 9 BARROS, R. V. (2011). EL asentimiento subjetivo a la pena y al castigo. Buenos Aires: Grama Ediciones, p. 36. 10 FREUD, S. (2006[1906]). A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. IX. Op. cit., p. 96. 11 BARROS, R. V. (2011). EL asentimiento subjetivo a la pena y al castigo. Op. cit. 12 FREUD, S. (2006[1893-1895]). Estudos sobre a histeria. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. II. Op. cit., p. 95. 13 LACAN, J. (1998[1958]). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 592. 14 FREUD, S. (2006[1906]). A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. IX. Op. cit. 15 IDEM. Ibid., p. 102. 16 FURNISS, T. (1993). Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Op. cit. 17 FREUD, S. (2006[1906]). A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. IX. Op. cit., p. 103. 18 IDEM. (2006[1892-1899]). Extratos dos documentos dirigidos à Fliess. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. I. Op. cit., p. 310. 19 LACAN, J. (2003[1976]). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 567. 20 FREUD, S. (2006/1931[1930]) O parecer do perito no caso Halsmann. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Op. cit. 21 BARROS, R. V. (2011). EL asentimiento subjetivo a la pena y al castigo. Op. cit., p. 44. 22 FREUD, S. (2006/1931[1930]). O parecer do perito no caso Halsmann. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Op. cit., p. 259. 23 LACAN, J. (1987[1932]). Da psicose paranóica e sua relação com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense. 24 BARROS, R. V. (2011). EL asentimiento subjetivo a la pena y al castigo. Op. cit., p. 58. 12

25 LACAN, J. (1998[1950]). Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: Escritos. Op. cit., p. 137. 26 IDEM. Ibid., p. 150. 27 BARROS, R. V. (2011). EL asentimiento subjetivo a la pena y al castigo. Op. cit., p. 58. 28 LACAN, J. (1998[1950]). Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. In: Escritos. Op. cit., p. 131. 29 IDEM. (2003[1967]). Da psicanálise em suas relações com a realidade. In: Outros escritos. Op. cit., p. 352. 13