MATEMÁTICA E OS IMPOSTOS: LIÇÃO DE CIDADANIA Neomar Lacerda da Silva Professor da Secretaria Estadual de Educação da Bahia SEC/BA Wagner Ribeiro Aguiar Professor da Secretaria Estadual de Educação da Bahia SEC/BA RESUMO A complexidade científico-tecnológica crescente, que caracteriza o novo cenário mundial, impõe desafios cruciais à realidade social e educacional. Pensar e querer uma escola inserida no nosso tempo e que aponte para além dele é pensar e querer uma escola, não apenas transmissora de conhecimentos, mas também formadora de valores capazes de possibilitar o exercício pleno da cidadania. E o ponto de partida para a concretização dessa escola é que o professor, principal agente dessa mudança, consiga relacionar a sua prática docente com a prática social mais ampla, considerando a sua profissão como exercício da sua própria cidadania. É evidente que tal exigência diz respeito também ao profissional da educação matemática, cuja disciplina tem merecido destaque especial como instrumento de formação. Assim, a Matemática assume um importante papel ao transversalizar em seus conteúdos a educação fiscal como elemento de formação de cidadãos conscientes de seus direitos e capazes de intervenções críticas para a melhoria da sociedade. Neste sentido, foi proposto o projeto Matemática e os impostos: Lição de cidadania, com o objetivo de valorizar o trabalho com as tecnologias da informação e comunicação (TIC s), a formação cidadã e a pesquisa por meio de intervenções didáticas com foco na cidadania voltada à consciência fiscal. O projeto tornou as aulas de matemática mais atraentes e o trabalho com educação fiscal contribuiu para o exercício da cidadania, já que os alunos se tornam mais conscientes quando aprendem a identificar o valor dos impostos incluídos no preço de produtos e serviços que consomem. Palavras-Chave: educação matemática, cidadania, prática pedagógica. INTRODUÇÃO A Constituição Brasileira (1988) em seu artigo 205 destaca o preparo para a cidadania como realização da educação e da sociedade. Também a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1997), implantada sob a ótica da cidadania, exige a (re)construção de uma escola voltada para a formação de cidadãos.
2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental, em sua Introdução (Brasil, 1998, p.21) recomendam a garantia de uma educação de qualidade na formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, capazes de atuar competentemente na sociedade em que vivem. Quanto ao ensino específico da área de matemática, os Parâmetros (Brasil, 1998, p.19) destacam-na como componente importante na construção da cidadania, na medida em que a sociedade se utiliza, cada vez mais, de conhecimentos científicos e recursos tecnológicos, dos quais os cidadãos devem se apropriar. A educação que deve possibilitar ao homem a transformação de seu mundo, a consciência de si mesmo e da realidade que o cerca, o desenvolvimento do senso crítico e principalmente de sua capacidade criadora, o que o diferencia dos outros animais. Para tanto, se faz necessário que ela abranja a todos, de modo pleno e significativo. Uma escola democrática é, pois, aquela em que o ensino proporcione ao indivíduo o desenvolvimento de sua consciência crítica para que ele possa analisar de maneira ativa o mundo em que vive, atuando de maneira a transformar sua realidade. JUSTIFICATIVA O dinheiro público vem dos impostos. E que serviços o Estado nos oferece? Hospitais sem remédios, professores mal-remunerados, polícia desmotivada, justiça lenta. Qual será a solução para esse quadro em que pagamos por serviços que não são prestados? A resposta é cidadania. A ocultação dos impostos em nosso país parece propositada e leva à desinformação e ao conformismo. Hoje, 89% da população brasileira têm consciência de que paga impostos 1, no entanto, não tem a menor idéia do quanto paga de tributos, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), e ainda, segundo esse instituto, as pessoas que recebem até dois salários mínimos gastam a metade (aproximadamente 54%) do seu salário somente para pagar impostos embutidos. Ocorre que, diante da contradição posta e entendendo que a educação fiscal está diretamente relacionada à cidadania, foi proposto o projeto de trabalho 1 Dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e disponibilizados em seu banco de dados na internet.
3 interdisciplinar Matemática e os Impostos: Lição de Cidadania. O trabalho teve como suporte, teórico e de pessoal, no projeto maior Cidadania desenvolvido durante a III unidade na Escola Estadual Carlos Santana no Município de Belo Campo BA. Foram envolvidos neste trabalho os alunos do 1º ano do Ensino Médio do turno vespertino da referida escola com o objetivo geral de conscientizar os discentes de que todos são atingidos pela tributação, por mais baixa que seja a sua renda, dando-lhes suporte para que lutem pela garantia de direitos básicos, como educação e saúde, diversas vezes negados a maioria da população brasileira. Baseados no fato de que a maioria da população desconhece o quanto paga de tributos (IPEA), e de que o conhecimento tributário e das formas de arrecadação possam despertar o senso crítico e conseqüente busca pelos seus direitos foram propostas atividades de pesquisa de campo, entrevistas, observação e cálculo, dentro do conteúdo de matemática financeira, de modo a dinamizar as aulas e contribuir de forma efetiva em lição de cidadania mostrando o papel que o cidadão, que paga impostos, tem de fiscalizar os serviços públicos que ele recebe de volta. OBJETIVOS Conscientizar de que todos são atingidos pela tributação, por mais baixa que seja a sua renda, dando-lhes suporte para que lutem pela garantia de direitos básicos; Apreciar e participar de discussões sobre o papel do cidadão para a construção de uma real democracia; Conhecer os principais tributos pagos pela população e o motivo de sua criação, além de calcular as taxas de impostos embutidos nos principais produtos de uma cesta básica; Contribuir para o exercício da cidadania e colaborar para a construção de um conhecimento mais amplo e multidisciplinar; Estimular a socialização, inclusive com a participação em discussões feitas em blogs; Utilizar o potencial comunicacional das TIC s na busca de informações e de novos conhecimentos sobre a temática em estudo; O SENTIDO DA CIDADANIA NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
4 De acordo as Diretrizes Curriculares da Matemática para o Ensino Médio, no que se refere à Educação Matemática se (...) prevê a formação de um estudante crítico, capaz de agir com autonomia nas suas relações sociais. Coadunando com este princípio, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96) em seu primeiro artigo preconiza que, a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e a prática social (BRASIL, LDB 9394/96, p. 3), apontando para o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. A fundamentação teórica dessas diretrizes prevê como uma finalidade para a Educação Matemática fazer com que o estudante construa, por intermédio do conhecimento matemático, valores e atitudes de natureza diversa, visando à formação integral do ser humano e, particularmente, do cidadão, isto é, do homem público. Esse argumento, além de preconizado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional é mais acentuadamente indicado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN s), que expressam: A escola deve assumir-se como um espaço de vivência e de discussão dos referenciais éticos, não como uma instância normativa e normatizadora, mas um local privilegiado de construção de significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania, promovendo discussões sobre a dignidade do ser humano, igualdade de direito, recusa categórica de formas de discriminação, importância da solidariedade e observância das leis (BRASIL, 1998, p.16). Diante disso, parece desejável que a escola tenha um currículo prescrito em conteúdos, propostas de atividades e exercícios que se relacionem e contribuam para a formação da cidadania. Ou seja, sugere a cidadania concebida como um dos elementos constitutivos da sociedade democrática, com base em princípios de igualdade de direito, solidariedade e cumprimento das leis para o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária. A escola, desde as últimas décadas, confronta-se com o fato da quantidade de conhecimento disponível e o crescimento da complexidade da informação ser vertiginoso. Neste contexto, ela parece não acompanhar nem protagonizar as novas exigências que vão surgindo, correndo o risco - se não questionar e transformar as suas práticas - de oferecer um "ensino" descontextualizado deste mundo em constante mudança. A Educação, como instrumento de transformação social, não pode ficar alheia aos anseios tidos pelos jovens frente essa revolução no modo de
5 produção e consumo dos saberes, ao contrário, deve fornecer meios para que eles possam, criticamente, atuarem nesse processo e construírem mecanismos que os façam capazes de fazerem associações e discernirem seus papéis nesse contexto. Segundo Sônia Allegretti: a escola tem ficado, até aqui, passiva diante deste quadro, alheia aos novos desafios, embora declare em suas propostas o desejo e a intenção de preparar o cidadão, tornando-o capaz de situar-se de forma crítica diante do mundo em transformação. (ALLEGRETTI, 1998, p.36) Os Parâmetros Curriculares de Matemática para o Ensino Médio (PCN s) destaca um papel decisivo desta área do conhecimento no ensino à construção e exercício da cidadania, tomando como referencial a resolução de problemas, a história da matemática, tecnologias da informação e jogos. Este documento declara que: a matemática pode dar a sua contribuição à formação do cidadão ao desenvolver metodologias que enfatizem a construção de estratégias, a comprovação e justificativa de resultados, a criatividade, a iniciativa pessoal, o trabalho coletivo e a autonomia advinda da confiança na própria capacidade para enfrentar problemas (BRASIL, 1997, p.16). Diante dessas expectativas, pode-se perceber uma orientação ao processo de ensinar matemática, organizada em torno de um conjunto de competências que se deve desenvolver para a formação da cidadania (BRASIL, 1998, p. 14). Deste modo, o ensino de matemática deve voltar-se para o desenvolvimento do aluno visando o exercício da cidadania, superando a sua adequação às transformações do mundo do trabalho na lógica da globalização econômica e do mercado. Sobre isso, D AMBRÓSIO (1996) chama atenção para a importância do papel do professor de matemática quanto à questão da educação para a cidadania e formação do cidadão. Segundo este autor: A educação para a cidadania, que é um dos grandes objetivos da educação de hoje, exige uma apreciação do conhecimento moderno, impregnado de ciência e tecnologia. Assim, o papel do professor de matemática é particularmente importante para ajudar o aluno nessa apreciação, assim como destacar alguns dos importantes princípios éticos a ela associados (D AMBRÓSIO, 1996, p.87).
6 Nessa perspectiva, atendendo a este quadro geral de desafios, é que foi proposto o trabalho com Educação Fiscal em Matemática, entendendo que este tema está diretamente relacionado à cidadania, já que o funcionamento do sistema de arrecadação e a maneira como o dinheiro retorna em forma de serviços à população - incluindo toda a matemática envolvida - são explicados pela educação fiscal. PROBLEMANTIZADO E CONTEXTUALIZANDO A TEMÁTICA EM SALA DE AULA Foram realizados alguns procedimentos metodológicos para nortear o projeto, sendo assim categorizados: O que sabemos? O Brasil tem uma das maiores cargas tributárias do mundo, e todos são atingidos por ela em maior ou menor grau; A maioria da população brasileira desconhece o quanto paga de tributos; Os bens de consumo possuem sobre o preço de venda impostos embutidos; O cidadão que paga imposto tem que fiscalizar os serviços públicos e os gastos com o orçamento do governo; O que procuramos saber? Por que temos que pagar impostos? E quais os principais impostos e taxas e o motivo da cobrança? Calcular quanto se paga de imposto sobre alguns produtos essenciais na cesta básica, colhendo informações, em campo, e tabulando os resultados; Entender como é organizado e discutido o orçamento público. Como realizamos? Aula expositiva sobre o cálculo de porcentagens de impostos e taxas; Pesquisas em jornais, revistas e na internet com apresentações orais; Pesquisas de campo sobre tributos pagos pela população e sobre os valores dos impostos que incidem sobre os principais itens da cesta básica; Tabulação dos dados obtidos em pesquisa de campo; Análise critica das informações com a divulgação no blog da turma;
7 INTERVENÇÕES DIDÁTICAS Tendo em vista os objetivos propostos, abordamos as seguintes temáticas nas intervenções realizadas: Intervenção I Aprendendo com a Matemática Financeira: - Apresentação do projeto a comunidade escolar, expondo os objetivos que se pretende alcançar; - Envolvimento da comunidade escolar nas atividades do projeto por meio de conversas sobre a cidadania e a questão tributária; - Aulas expositivas de cálculo de porcentagens e juros; - Visita a página da web Os Tributos na História da Humanidade 2 - Plenária comentando chamou atenção no texto da página, estabelecendo relações entre a educação fiscal e a cidadania; - Publicação no blog da turma a síntese das reflexões, com vídeos, imagens etc. Intervenção II Na conta de luz pagamos mais que quilowatts! - Solicitação que os alunos trouxessem contas da concessionária elétrica para serem analisadas em grupo; - Listagem dos impostos cobrados e o valor correspondente a cada quilowatts; - Pesquisa na página da Receita sobre impostos cobrados na conta de eletricidade. Intervenção III Pesquisando em campo: - Organização de grupos, sugerindo produtos para uma cesta básica; - Formação de equipes responsáveis por pesquisar os preços de alguns produtos em mercados da localidade anotando-os organizadamente; - Num segundo momento, de posse dos dados, os alunos calcularam o preço total da cesta básica e o valor recolhido a título de impostos, principalmente com relação à cobrança do ICMS; Intervenção IV Exercendo a cidadania: - Com antecedência, o professor agendou uma visita da turma à câmara de vereadores do município para que pudessem acompanhar a votação de um projeto de lei do município; - Durante a visita à câmara, os alunos fizeram perguntas livres aos vereadores a respeito da fiscalização, por parte do legislativo, da aplicação das verbas públicas; - Registro no blog da turma a síntese do trabalho. 2 Disponível no site de Educação Fiscal da Receita Federal do Brasil
8 Intervenção V Aprofundando o conhecimento e repensando a prática: - Em plenária, discussão sobre a experiência da participação em sessão na câmara e das entrevistas com os vereadores; - As equipes apresentaram na sala, oralmente, aos demais alunos, as conclusões acerca do papel do legislativo na fiscalização e aplicação adequada das verbas; - Os alunos foram estimulados a fazer comentários no blog da turma. - Discussão em chat a avaliação do projeto; - Produção do relatório final com as conclusões acerca do trabalho realizado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante as intervenções didáticas, trabalhamos com as dificuldades tidas pelos alunos enfatizando mais as idéias, a compreensão dos conceitos e a construção por atividade própria. Toda a comunidade escolar recebeu com muito interesse e entusiasmo o projeto e a turma a qual se propunha o trabalho foi muito comprometida e pontual para a sua implementação. Ainda, contamos com a colaboração dos professores de História e Geografia que oferecerem todo o suporte teórico com relação ao tema Cidadania. Baseado na premissa de que cidadania implica conhecimento (D'AMBRÓSIO, 1998, p. 86 apud NASCIMENTO, 2004, p. 11), a Matemática Financeira foi abordada por ter conteúdos de real aplicação na vida dos indivíduos. Também, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e as Diretrizes Curriculares de Matemática nos motivaram a desenvolver este trabalho, pois sugerem a utilização de conteúdos contextualizados e uma educação que visa o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Ao final, avaliamos como positiva a sua realização, uma vez que todas as etapas foram cumpridas em sem tempo e de modo pleno pelos alunos. Entendemos que nada está pronto. O caminho há que ser construído com leitura, reflexão, prática e amadurecimento. REFERÊNCIAS ALLEGRETTI, Sonia de M. O homem transformado e transformando o mundo. In Introdução à informática para educadores. Pontifícia Universidade Católica de São
9 Paulo, Secretaria de Estado da Educação de São Paulo/Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 1998. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL: Ministério da Educação/ Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: ciências da natureza, matemática e suas tecnologias. Ministério da Educação, Brasília, 1999. BRASIL. Lei de Diretrizes e Base de Educação Nacional N 9394, de 20 de dezembro de 1996. BRASIL: Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Fundamental: Matemática. Ministério da Educação, Brasília, 1996. Disponível em <www.bibvirt.futuro.usp.br/textos-humanas-educacao-pcns-fundamentalmatematica.html>. Acesso em: 21 jan. 2011. D AMBRÓSIO, Ubiratan. Educação Matemática: Da Teoria à Prática. Campinas: Papirus, 1996. RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Disponível em http://leaozinho.receita.fazenda.gov.br/biblioteca/estudantes/textos/historiatributos. htm. Acesso em 26 mar. 2011.