Traumatismo raquimedular e desmatamentos na Amazônia

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ARTIGO ORIGINAL Traumatismo raquimedular e desmatamentos na Leonardo J. R. Diel* José Tavares-Neto** Fernando Martins Carvalho*** Sinopse A morbimortalidade do traumatismo raquimedular (TRM) numa região da é estudada. Em sítios de desmatamento, o TRM pode ocorrer pela queda de árvores derrubadas sobre as vítimas, especialmente em locais onde a derrubada de árvores é ilícita e a proteção dos empregados é precária ou inexistente. O trauma decorrente de desmatamento não tem sido objeto de pesquisas científicas, é subestimado nas estatísticas oficiais e freqüentemente não é reconhecido nas estatísticas de acidentes de trabalho. Realizou-se um estudo de uma série de 16 casos de TRM, atendidos no Serviço de Neurocirurgia da Fundação Hospital Estadual do Acre FUNDHACRE, no período de março a dezembro de 2000. As causas dos 16 casos de TRM foram: acidentes em desmatamentos (cinco casos, que corresponderam a 31,3% do total), acidentes de trânsito (25%), quedas (12,5%), mergulhos em águas rasas (12,5%) e lesão por projétil de arma de fogo ou arma branca (18,7%). A letalidade hospitalar foi de 6,3% (um caso). Lesões neurológicas * Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Acre - Departamento de Ciências da Saúde (DCS) e Fundação Hospital Estadual do Acre Curso de Pós-Graduação em Medicina e Saúde da Faculdade de Medicina da UFBA/FUNDHACRE. ** Livre-docente de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. *** Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia. residuais (seqüelas de TRM) no momento da alta foram observadas em 14 (93,3%) dentre 15 casos. Palavras-chave Traumatismo raquiano medular, desmatamento,. Abstract Spinal cord injury and deforestation in the Brazilian Amazon Morbidity and mortality of spinal cord injured patients (SCI) in the Brazilian Amazon region is reviewed. In deforestation places this kind of injury is usually caused by the fall of cut trees over the victim. Deforestation activity is usually illicit and worker s protection and safety are unsatisfactory. SCI due to deforestation accidents have not been studied by scientific researchers, do not appear in the governmental health statistics and frequently are not recognized as an occupational hazard. We present a series of 16 patients with SCI who were followed at the Neurosurgery Service of State Foundation Hospital of Acre FUNDHACRE in the State of Acre Brazil, from March to December, 2000. Among these 16 patients, SCI was due to deforestation accidents (5 cases), correspondeng to 31.3% of total cases; car crashes (25.0%); falls (12.5%); diving in shallow water (12.5%) and lesions due to firearm or knife (18.7%). Mortality rate in this case series was 6.3% (1 case). Residual lesions of SCI were noticed in 14 (93,3%) out of 15 cases. Keywords Spinal cord injury, deforestation, Amazon region.

93 Na cidade de Rio Branco, Estado do Acre, Brasil, acontecem freqüentes atendimentos de pacientes com trauma raquimedular (TRM) decorrentes de causa bem específica e bem própria da região, que são os acidentes em desmatamentos (derrubadas). Na brasileira, o desmatamento das reservas naturais é freqüente, decorrente da retirada de árvores de valor comercial, numa forma de exploração chamada garimpagem florestal. Inicialmente, os madeireiros retiram as espécies de maior valor comercial e, com o passar do tempo, retornam à mesma área para retirar o restante de menor valor, ou, ainda, desmatam para preparação de gado vacum 2. Nas sociedades modernas, o número de pessoas paraplégicas ou tetraplégicas por lesões medulares traumáticas é cada vez maior, em conseqüência de acidentes de trânsito, quedas e traumatismos durante competições esportivas. Predominantemente, o TRM atinge adultos jovens que se encontram em plena etapa produtiva da vida. Embora a reintegração dos pacientes com TRM a uma vida social útil tenha melhorado nos últimos anos, a fase aguda da enfermidade ainda cursa com alta letalidade 6. Em 1994, nas cidades do Estado de São Paulo com mais de 80 mil habitantes, estimou-se que a taxa de acidente de trabalho entre agricultores (194,24 acidentes/1.000 trabalhadores) foi significativamente superior à da categoria dos assalariados (48,07 acidentes/1.000 trabalhadores). Trabalhadores vinculados à atividade produtiva extrativista apresentaram taxa de acidente (490,47 acidentes/1.000 trabalhadores) muito superior à observada nos trabalhadores da construção civil (70,09 acidentes/1.000 trabalhadores), considerado como o segundo grupo mais afetado. Porém, a baixa freqüência de acidentes leves sugere ser elevada a subnotificação e a desinformação, uma vez que esperar-se-ia fossem mais freqüentes do que os acidentes de intensidades moderada e grave 3. Considerando-se estas estatísticas para cidades de médio e grande porte do Estado de São Paulo, podese especular que o Estado do Acre apresente taxas de TRM mais elevadas, o que justifica uma melhor caracterização dos casos acidentados em desmatamentos. Uma busca na literatura científica nacional e estrangeira não encontrou qualquer estudo associando TRM ao desmatamento. O presente trabalho objetivou estudar aspectos clínico-epidemiológicos de uma série de casos de traumatismos raquianos medulares ocorridos na, com ênfase nos acidentes em desmatamentos. Metodologia Nesse estudo de série de casos, foram considerados casos de TRM aqueles pacientes vítimas de trauma e que apresentaram quadro clínico compatível com o descrito por Brasil 4 e Masini 8,9. A clínica dos pacientes é determinada pelo foco da lesão medular. Assim, pacientes com lesão medular cervical, com ou sem sinal radiológico de lesão de coluna cervical, desenvolvem níveis de sensibilidade altos e lesões motoras mais complexas. Da mesma forma, pacientes com lesão medular torácica, com ou sem lesão de coluna torácica, desenvolvem nível de sensibilidade e lesão motora a partir da lesão. Usando-se a regra de somar três unidades, determinou-se o nível de lesão medular. Os pacientes com clínica de lesão medular lombar têm lesão de coluna torácica baixa, desde T10 até T12 e/ou L1. Os pacientes com lesão de coluna vertebral abaixo de L2 até a região sacral desenvolvem lesão radicular periférica, simétrica ou não, pois a cauda eqüina é acometida 15. No período do estudo, de março a dezembro de 2000, foram incluídos os pacientes com trauma raquimedular atendidos no Serviço de Neurocirurgia da Fundação Hospital Estadual do Acre (FUNDHACRE), localizado na cidade de Rio Branco, após passagem inicial pelo Pronto-Socorro Municipal. Para o serviço da FUNDHACRE, são encaminhados os pacientes com TRM de toda a região amazônica que compreende o Estado do Acre (Brasil), toda a região de fronteira com o sul do Estado do Amazonas e fronteira com o norte do Departamento de Pando (Bolívia). Neste serviço, os pacientes foram atendidos por um dos autores (LJRD) e tratados de conformidade com as técnicas adequadas a cada caso. Os tratamentos foram realizados pelas técnicas de artrodese com placas e parafusos, ou homoenxertos, por via anterior, ou por posterior, por amarração com fios de aço, ou ainda tratamento feito de forma conservadora, sem intervenção cirúrgica, conforme preconizado por vários autores 4,5,7,11,16,17. Outros pacientes atendidos no mesmo período, acompanhados por outros profissionais, não foram incluídos na presente série de casos. Outra fonte de informação foram os laudos do Serviço de Imagem do mesmo hospital, onde são realizados exames tomográficos e radiológicos. Com a lista nominal e respectivos registros extraídos daquelas duas fontes, os prontuários foram levantados no Serviço de Arquivo Médico e Estatísticas (SAME) da FUNDHACRE, observando-se nesta seleção os critérios de inclusão e de exclusão. Entrevistas com os pacientes, com madeireiros e observações feitas em visitas a sítios de desmatamentos forneceram material etnográfico para a descrição dos riscos ocupacionais. Entre os critérios de inclusão, foram considerados: 1) diagnóstico clínico-epidemiológico de TRM; 2) pacientes atendidos no Serviço de Neurocirurgia da FUNDHACRE por um dos autores (LJRD); 3) pacientes atendidos na cidade de Rio Branco com relato de acidente nas regiões acima citadas. Também, na seleção dos pacientes, foram excluídos: 1) aqueles com prontuários não localizados no SAME; 2) pacientes com prontuários incompletos no que se refere à história da causa do acidente e dados neurológicos que caracterizem o TRM, segundo os critérios de Brasil 4 e Masini 8,9. Os prontuários médicos foram revistos, com registro dos dados em uma ficha-padrão, e determinação do escore obtido na tabela ASIA (American Spinal Injury Association), conforme adaptação licenciada para o Advanced Trauma Life Support 1. Os dados foram processados eletronicamente, com uso do conjunto de programas SPSS (1996), para obtenção de freqüências simples e relativas 18. Previamente, foi solicitada autorização à direção clínica da FUND- HACRE para a realização do estudo com prontuários, garantindo que nenhuma informação seria divulgada sobre qualquer paciente de forma que pudesse permitir a identificação da pessoa acidentada,

94 além do parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Hospital Estadual do Acre (CEP-FUNDHACRE). Resultados Nesta série de casos, a proporção de homens correspondeu a 87,5% (14 casos), sem predomínio de faixa etária, a qual variou de 15 a 58 anos. Sete pacientes (43,8%) residiam na área urbana da cidade de Rio Branco e haviam se deslocado para as regiões onde ocorrem os desmatamentos; quatro casos (25%) provinham da região rural do município, do vale do rio Acre, que banha a cidade de Rio Branco. O grupo dos prestadores de serviço correspondeu a 31,3% (cinco casos), e a renda familiar de 93,8% (15 casos) oscilou entre um a três salários mínimos. Metade deles (oito casos) não completou o primeiro grau nos estudos. Todos os cinco casos de TRM por acidentes em desmatamentos ocorreram no chamado verão da, período que começa em abril ou maio e que se prolonga até outubro, quando as chuvas retornam e inicia-se o inverno da. A Tabela 1 agrupa os 16 pacientes segundo dados do exame neurológico no momento da admissão. O TRM por acidentes em desmatamentos esteve associado à maior freqüência de lesão em coluna torácica. Oito casos (50%), independentemente da causa do TRM, apresentavam à admissão lesões de pele do tipo escoriações e três casos (18,7%) apresentavam lesões de pele do tipo ferida contusa. Também foi observado que dois casos (12,5%) apresentavam hipotensão arterial na admissão, o que pode ser atribuído à vasoplegia periférica provocada pela lesão medular. No momento da alta hospitalar dos 16 pacientes, 14 (87,5%) foram transferidos para outro hospital, 1 (6,3%) foi transferido para outro hospital para complementar o tratamento fisioterápico e 1 paciente faleceu, resultando na letalidade de 6,3%. A Tabela 2 mostra os tipos de seqüelas apresentadas por 15 pacientes à saída do hospital. Nota-se que apenas um paciente (6,7%) não apresentava lesão no momento da alta. A Tabela 3 mostra que a causa mais freqüente de TRM foi o acidente em desmatamentos (31,3%), seguido de acidente de trânsito (25%). Dentre os casos procedentes de áreas de desmatamento, sobressaiu a atividade de cortador de árvore, com quatro acidentados. Discussão Nesta série de casos, chamou a atenção a elevada freqüência (31,2%) de cortadores de árvore e de pessoas envolvidas na exploração da madeira que trabalhavam em outras atividades num sítio de desmatamento. Assim agrupados, os casos de TRM em trabalhadores em desmatamento (31,2%) foram mais freqüentes que aqueles decorrentes de acidente de trânsito (25%, com quatro casos), que é a causa mais freqüente nas estatísticas nacionais 10 e internacionais 6,14. Masini 10 realizou um estudo sobre notificação de lesados medulares, no qual apresenta estimativas de ocorrência de TRM segundo as regiões brasileiras. A região Norte apareceu com coeficientes de 14 lesados por milhão de habitantes por ano, provocados por acidente de trânsito, mergulho em águas de pouca profundidade, queda, projétil de arma de fogo e agressões físicas (inclusas lesões por arma branca), sem citar óbitos de natureza ocupacional. A distribuição dos agentes causais de TRM no Brasil (por milhão de habitantes por ano) revelou 30 casos provocados por acidente de trânsito, 21 por mergulho em águas de pouca profundidade, 20 por queda, 12 por projétil de arma de fogo e 2 casos por acidentes em esportes. TABELA 1 Dados do exame neurológico observados na admissão de 16 pacientes com trauma raquiano medular de Rio Branco (Acre) em 2000. Exame neurológico n % Paraplegia/Arreflexia profunda/nível de sensibilidade manúbrio 1 6,3 ASIA 0 => T2-T4 Paraplegia/Arreflexia profunda/nível de sensibilidade xifóide 1 6,3 ASIA 0 => T6-T8 Paraplegia/Arreflexia profunda/sensibilidade prega umbilical 5 31,3 ASIA 0 => T8-T10 Paraplegia/Arreflexia profunda/nível sensibilidade pélvis 3 18,7 ASIA 0 => T10-T12 Tetraplegia/Arreflexia universal/priapismo/sensibilidade zero 2 12,4 ASIA 0 => C4-C5-C6 Tetraplegia/Arreflexia universal/sem priapismo/ Sensibilidade zero 1 6,3 ASIA 0 => C4-C5-C6 Tetraparesia/Arreflexia universal 2 12,4 ASIA 3 => C4-C5-C6 Nenhuma lesão neurológica na admissão 1 6,3 Total 16 100

95 TABELA 2 Tipos de seqüelas quando da saída hospitalar, apresentados por 15 pacientes com trauma raquiano medular em Rio Branco (Acre) em 2000. Tipo de seqüela N % Nenhuma lesão 1 6,7 Tetraparesia 2 13,3 Diparesia braquial 2 13,3 Paraparesia 4 26,7 Paraplegia 3 20 Tetraplegia 3 20 Total 15* 100 * Um paciente faleceu. TABELA 3 Causa do trauma raquiano medular em 16 pacientes de Rio Branco (Acre) em 2000. Causa do TRM n % Desmatamento Cortador de árvore 4 25 Desmatamento Servente 1 6,3 Queda 2 12,5 Acidente de trânsito 4 25 Mergulho (em local de pequena profundidade) 2 12,5 Outros: projétil de arma de fogo e arma branca 3 18,7 Total 16 100 Esse estudo traz informações úteis para o entendimento de uma causa de TRM típica de regiões tropicais onde existem reservas florestais e onde ocorre o manejo de florestas, de forma regular ou irregular, num sistema extrativista das riquezas florestais. O trabalho no setor madeireiro envolve diretamente a derrubada de árvores, seja efetivamente no corte ou no preparo da área onde haverá o desmatamento. Este trabalho inclui as funções de operador de motosserra envolvido diretamente no corte, bem como operador de motosserra que faz o desbaste da árvore no chão, retirando os galhos e preparando em toras, para o momento de retirada da mata. Inclui ainda as funções de operador de máquinas, que deslocam as toras no sítio de desmatamento, arrumando-as para as laterais dos campos de trabalho ou sobre os caminhões. Ainda inclui as funções de motoristas de caminhões, que retiram as toras da mata e as transportam até as serrarias, quando termina o trabalho do desmatamento. Aos motoristas também cabe a perigosa tarefa de arrumação das toras sobre os caminhões, com tal carga podendo rolar sobre a cabine. Esse fato ocorre porque as estradas que saem das matas têm um perfil irregular, fazendo com que os caminhões oscilem muito e tenham a estabilidade comprometida. Tal situação física decorre de o centro de gravidade de tais caminhões variar muito, de acordo com a arrumação das toras sobre eles, propiciando acidentes quando trafegam muito inclinados, assim forçados pelo perfil do próprio terreno. Desta forma, os motoristas estão sujeitos ao TRM provocado por toras de madeira em desmatamentos. Finalmente, os serventes, que executam múltiplas atividades inespecíficas e que também estão expostos a diversos riscos nestes locais de trabalho. Este trabalho revela às autoridades da Higiene do Trabalho os locais onde os acidentes aconteceram, subsidiando a implantação de uma política eficaz nas áreas onde ocorrem desmatamentos. A forma atual de desencadear ações fiscalizadoras inclui uma programação aleatória da área a ser trabalhada ou uma programação eletiva, baseada em informações de terceiros (imagens de satélites, notícias de desmatamentos, focos de queimadas após extração das madeiras de melhor valor comercial), sem considerar os agravos à saúde do trabalhador como ponto desencadeador das fiscalizações. Os dados epidemiológicos sobre ocorrência de lesionados medulares devem passar a ser um critério de inclusão da área a ser fiscalizada. Uma das limitações inerentes aos estudos do tipo de série de casos é a inexistência de denominador populacional 12,13. No caso específico desta pesquisa, outro viés relevante decorre dos casos falecidos por TRM, que, por motivos diversos, não são notificados ou vão a óbito no local do acidente, ou ainda aqueles que nem mesmo chegam às unidades de referência. Além destes, os casos de menor gravidade muitas vezes não são notificados. Esse tipo de estudo ainda encerra um viés de seleção, difícil de ser contornado, devido às características regionais e deficiências do Serviço de Verificação de Óbitos do Instituto Médico-Legal, restrito à área metropolitana da cidade de Rio Branco. Também o viés de seleção apresenta-se no fato de todos os casos terem sido atendidos apenas por um médico, sendo excluídos os casos atendidos pelos demais neurocirurgiões da FUNDHACRE. Referências bibliográficas 1. AMERICAN COLLEGE OF SURGEONS: Advanced trauma life suport - student manual. 6ª edição. Chicago, 1997. Cap 7, p 220. 2. AMARAL PHC, VERÍSSIMO JAO, BARRETO PG, VIDAL, EJ: Floresta para sempre. OIMT/USAID, 1983. 3. BARATA RCB, RIBEIRO MCSA, DE MORAES JC: Acidentes de trabalho referidos por trabalhadores moradores em área urbana no interior do Estado de São Paulo em 1994. Informe Epidemiológico do SUS, 9: 199-210, 2000. 4. BRASIL AVB. Trauma raquemedular cervical baixo (C3-C7). Med Cir, 33: 13-7, 1987. 5. 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96 toracolombar por descompressão póstero-lateral e fixação e fixação posterior com retângulo e fios segmentares sublaminares associados a enxerto ósseo. Tese (doutorado), Escola Paulista de Medicina Universidade Federal de São Paulo, 2000. 10. MASINI M: Estimativa da incidência e prevalência de lesão medular no Brasil. J Bras Neurocirurg, 12: 97-100, 2001. 11. MATTA J, MATAMOROS C, ROJAS G, PEDROZA A: Instrumentación segmentaria de la columna vertebral. Rev Colomb Ortop Traumatol, 2: 29-38, 1988. 12. OLIVEIRA PAS, PIRES JV, BORGES-FILHO JMM: Traumatismo da coluna torácica e lombar: Avaliação epidemiológica. Rev Bras Ortop Traumatol, 31: 771-6, 1996. 13. PEREIRA MG: Epidemiologia Teoria e Prática. 1ª. edição, 3ª. reimpressão, Guanabara Koogan, 2000. 14. PINO EH, CHAVEZ OG, URQUIZO E, CRUZ TM: Trauma Raquimedular. Rev Med Cient (Quito), 1: 13-6, 1994. 15. PUERTAS EB, LAREDO-FILHO J: Estudo crítico dos tratamentos das lesões traumáticas da coluna cervical. Folha Médica, 95: 275-80, 1988. 16. RODRIGUEZ-DIAZ D: Artrodesis cervical anterior com placa de Caspar. Experiência en el Centro Médico Nacional 20 de Noviembre, ISSSTE. Cirurgica & Cirugía, 67: 133-7, 1999. 17. SANZANA SE: Tratamiento quirúrgico por vía anterior de las fracturas de columna cervical baja. Rev Chil Cir, 51: 72-9, 1999. 18. STATISTICAL PACKAGE FOR THE SOCIAL SCIENCES (SPSS). User s Guide, Base 7.0 for Windows, 564 p, Chicago, IL, SPSS Inc., 1996. Endereço para correspondência: Leonardo J. R. Diel Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Acre Rodovia BR 364 - km 2 Distrito Industrial CEP 69914-220 Rio Branco, AC E-mail: leodiel@brturbo.com.br