O PROBLEMA DA DESNUTRIÇÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO (BRASIL)

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O PROBLEMA DA DESNUTRIÇÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO (BRASIL) INFORMAÇÕES DISPONÍVEIS, LACUNAS NO CONHECIMENTO E LINHAS DE PESQUISA PRIORITÁRIAS * Carlos Augusto Monteiro** MONTEIRO, C.A. O problema da desnutrição no Estado de São Paulo (Brasil). Informações disponíveis, lacunas no conhecimento e linhas de pesquisa prioritárias. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 19:183-9, 1985. RESUMO: Aborda-se o problema da desnutrição no Estado de São Paulo (Brasil) enfocando-se prevalência e determinantes, identificando-se lacunas significativas no conhecimento e sugerindo-se linhas de pesquisa prioritárias. Ainda que não se disponha de informações precisas e atualizadas como seria desejável, os estudos já realizados mostram ser grave o problema da desnutrição no Estado, sendo endêmicas as presenças da desnutrição protéico-energética e da anemia ferropriva. Do ponto de vista descritivo, há premente necessidade de se atualizar as últimas estimativas para a prevalência da desnutrição no Estado, que datam de dez anos atrás, sendo também desejável a obtenção de informações regionalizadas que permitam identificar situações particulares que ensejam uma atenção especial. Do ponto de vista analítico, há necessidade de se expandir os universos relativamente restritos que têm sido enfocados em estudos de causalidade, sendo igualmente preciso um maior avanço na investigação de determinantes imediatos, no estudo da eficácia de intervenções específicas e na análise multidisciplinar de causas básicas da desnutrição. UNITERMOS: Desnutrição, São Paulo (estado), Brasil. INTRODUÇÃO Com esta contribuição pretende-se situar o problema da desnutrição no Estado de São Paulo reunindo informações disponíveis sobre sua prevalência e seus determinantes. A partir deste exame, pretende-se identificar lacunas no conhecimento e sugerir linhas de pesquisa prioritárias que, de algum modo, possam colaborar para o controle da desnutrição no Estado. Antes que se possa abordar o problema da desnutrição, é imperioso que se procure qualificá-la adequadamente, pois o termo "desnutrição" pode abrigar, e freqüentemente o faz, diferentes significados. Neste texto, o termo desnutrição será reservado à expressão de diferentes estados do ser humano caracterizados por um desempenho deficiente de suas funções biológicas e/ou sociais e cuja etiologia seja determinada por um consumo alimentar insuficiente e/ou por doenças que interfiram com a utilização biológica dos alimentos ingeridos. Assim não serão englobados sob o termo desnutrição, estados determinados por consumo alimentar excessivo e mesmo certas doenças metabólicas que, como desvios da nutrição normal, poderiam etmologicamente ser entendidos como estados de desnutrição. Igualmente não serão abor- * Apresentado na VIII Reunião do Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia de São Paulo, em 16 de agosto de 1984. ** Do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo Av. Dr. Arnaldo, 715 01255 São Paulo, SP Brasil.

dados os problemas das preferências alimentares e o grau subjetivo de satisfação dos indivíduos diante da alimentação disponível e consumida, aspectos onde o referencial cultural evidentemente se sobrepõe ao referencial biológico e que não podem ser omitidos quando o objeto da análise não seja o estado nutricional mas sim a adequação da alimentação a que os indivíduos estão submetidos. Duas modalidades de desnutrição são hoje amplamente prevalentes em todo o denominado terceiro-mundo e devem ser necessariamente consideradas em inquéritos populacionais realizados em contextos sócio-econômicos semelhantes ao do Estado de São Paulo: a desnutrição protéico-energética (DPE) e a anemia ferropriva. Outras modalidades de desnutrição são usualmente menos prevalentes e assumem importância em termos de Saúde Pública apenas em determinadas circunstâncias específicas, motivo pelo qual não serão aqui examinadas*. A primeira das modalidades essenciais de desnutrição, a DPE, atinge preferencialmente crianças pequenas. Surge a partir de um consumo protéico-energético insuficiente usualmente associado a surtos freqüentes de gastro-enterites e de outras doenças infecciosas capazes de bloquear a ingestão de alimentos, prejudicar a absorção de nutrientes e aumentar exageradamente os requerimentos protéico-energéticos do organismo. Entre outras conseqüências, a DPE pode determinar graves prejuízos ao crescimento e desenvolvimento, à competência imunológica e à capacidade física e produtiva dos indivíduos. É, sem dúvida, o fator singular mais importante na explicação da excessiva morbi-mortalidade observada entre as crianças dos países do terceiro-mundo. A segunda importante modalidade de desnutrição mencionada, a anemia ferropriva, atinge preferencialmente gestantes e crianças de diferentes idades. É ocasionada por uma insuficiente ingestão/absorção de ferro usualmente associada à ancilostomose e a outras infestações intestinais que atuam expoliando continuamente o organismo daquele mineral. Entre outras conseqüências, determina queda na concentração plasmática de hemoglobina que prejudica a respiração celular de todos os tecidos e leva à redução da capacidade física e produtiva dos indivíduos. PREVALÊNCIA DA DESNUTRIÇÃO NO ESTADO DE SÃO PAULO O último (e, de fato, também primeiro) inquérito nutricional realizado em uma amostra representativa do Estado de São Paulo foi executado pelo IBGE há cerca de dez anos quando da realização do Estudo Nacional da Despesa Familiar (ENDEF, 1974/75). Entre outros aspectos, o referido inquérito colheu dados antropométricos de crianças de um a quatro anos que, por sua maior vulnerabilidade, representam um adequado grupo indicador para o estudo da prevalência da DPE. A partir destes dados, verificou-se ser de 40,2% a proporção de crianças desnutridas no Estado, chegando a 6,8% a proporção de crianças afetadas por formas moderadas e graves de desnutrição 8, nas quais, com maior probabilidade pode-se esperar comprometimento de ou- * Tais modalidades como o bócio endêmico que é encontrado em regiões com solo escasso em iodo ou como a xeroftalmia que é encontrada em regiões onde escasseiam fontes de vitamina A ou ainda como o raquitismo que é encontrado em regiões submetidas à fraca insolação não se apresentam disseminadas no Estado de São Paulo e configuram problemas demasiado específicos que transcendem o propósito deste texto.

tras funções além do crescimento*. Prevalências de desnutrição ainda maiores foram encontradas nas áreas rurais do Estado (50,4%), e entre famílias com despesas mensais per capita inferiores a 0,5 salário-mínimo (59,4% nestes dois estratos a prevalência exclusiva de formas moderadas e graves foi de, respectivamente, 9,1% e 13,5%). Entre 1973 e 1974, portanto em época próxima ao inquérito executado pelo IBGE, realizou-se no município de São Paulo um inquérito nutricional em uma amostra de crianças menores de cinco anos 1. A prevalência encontrada entre crianças de um a quatro anos foi apenas ligeiramente inferior à encontrada para o Estado: 33,1% para todas as formas e 4,3% para as formas moderadas e graves. Em famílias com renda per capita inferior a 0,5 salário-mínimo, a prevalência total da desnutrição chegou a 50,3% e a referente a formas moderadas e graves chegou a 10,1%. Em 1976, no mesmo município de São Paulo, um estudo realizado a partir de uma amostra de nascimentos hospitalares 3 revelou ser de 9,7% a prevalência de recém-nascidos com 2.500 g ou menos, sendo tais pesos equivalentes àqueles que caracterizam as formas moderadas e graves da desnutrição na infância. O mesmo estudo evidenciou que nas maternidades públicas e filantrópicas a prevalência de nascimentos com 2.500 g ou menos chegava a 12,1%. Outras regiões, excetuada a Capital, não têm sido estudadas a partir de amostras representativas com o que não se pode dispor de um quadro confiável acerca da distribuição regional da desnutrição no Estado. Uma região onde a prevalência da desnutrição aparentemente deve exceder a média do Estado é o Vale do Ribeira: em 1975 estudo 2 realizado em uma amostra de crianças menores de cinco anos da área rural de quatro municípios daquela região revelou prevalências de desnutrição semelhantes às que foram observadas nos estratos de mais baixa renda da Capital que auferiam renda per capita mensal inferior a 0,5 salário-mínimo. Em relação à anemia ferropriva não há nenhum inquérito realizado em amostra representativa do Estado de São Paulo, não tendo o IBGE incluído exames bioquímicos necessários para o diagnóstico da anemia em seu estudo de 1974/ 1975. No município de São Paulo, a mesma pesquisa realizada em 1973/74 entre menores de cinco anos evidenciou 22,7% de anêmicos (hemoglobina plasmática inferior a11g/dl), chegando esta proporção a 35,4% entre as famílias da amostra com renda mensal per capita inferior a 0,5 salário-mínimo 1. Ainda no município de São Paulo, outra pesquisa realizada em 1978, desta vez em uma amostra de crianças de sete anos matriculadas em escolas municipais revelou 20,1% de anêmicos (hemoglobina plasmática inferior a 12 g/dl), sendo 25,0% os anêmicos nas escolas situadas na periferia da cidade 4. A partir de uma amostra de exames bioquímicos efetuados em gestantes que freqüentaram, entre 1977 e 1981, os Centros de Saúde da rede estadual, evidenciou-se ser de 31,6% a proporção de clientes anêmicas (hemoglobina plasmática inferior a11g/dl) 7. A evolução recente da prevalência da desnutrição no Estado seja referente à desnutrição protéico-energética seja referente à anemia ferropriva é completamente desconhecida, datando da metade da década passada os últimos dados conhecidos tanto para a Capital quanto * O critério diagnóstico adotado para a DPE é neste caso, a presença de déficits de pelo menos 10% em relação à média de peso esperada para idade e sexo da criança; as formas moderadas e graves são caracterizadas quando aquele déficit é de pelo menos 25%.

para o Estado como um todo*. Vale ressaltar que mesmo especulações sobre a referida evolução são difíceis, dado que tradicionais indicadores indiretos do estado nutricional evoluíram de forma contraditória nos últimos dez anos: enquanto os coeficientes de mortalidade infantil evoluíram favoravelmente no período, a queda no poder de compra dos salários e as taxas de desemprego visivelmente se acentuaram. CAUSAS DA DESNUTRIÇÃO Diferentes fatores estão envolvidos com a determinação do estado nutricional dos indivíduos em uma dada sociedade. Estes fatores, que se relacionam entre si, podem ser agrupados conforme sua relação de precedência em três instâncias de determinação: uma instância imediata, uma instância intermediária e uma última instância **. Ao nível da instância imediata de determinação, os fatores essenciais que influenciam o estado nutricional dos indivíduos são seu consumo alimentar e seu estado de saúde. No primeiro caso importando fundamentalmente a quantidade e a composição nutricional da dieta e, no segundo caso, importando fundamentalmente a presença de doenças infecciosas e parasitárias. Ao nível do que se poderia chamar de instância intermediária de determinação, encontram-se os fatores envolvidos com a determinação do consumo alimentar e do estado de saúde dos indivíduos, ou seja, neste caso, os fatores que como a renda e a ocupação determinam o acesso dos indivíduos a bens e serviços como alimentação, moradia, saneamento básico, assistência à saúde e outros. Na última instância de determinação do estado nutricional, ou seja, ao nível de suas causas básicas, encontram-se, por sua vez, o grau de desenvolvimento alcançado pela atividade produtiva na sociedade e a forma pela qual são produzidos e distribuídos os bens e serviços socialmente gerados, ou seja, o modo de produção que caracteriza a referida sociedade. Em nosso meio, os trabalhos que procuram avançar o conhecimento em relação às causas da desnutrição têm freqüentemente se detido no estudo de sua distribuição na sociedade. Uma das principais variáveis utilizadas na estratificação social dos indivíduos tem sido a renda familiar per capita. Anteriormente já vimos como o nível de meio salário mínimo mensal per capita demarca o limite superior de um estrato populacional particularmente exposto seja à desnutrição protéico-energética seja à anemia. Outras variáveis têm sido igualmente utilizadas como a escolaridade do chefe da família ou sua ocupação, sempre buscando caracterizar estratos populacionais mais e menos expostos à desnutrição. Tais estudos, de acordo com o modelo de instâncias anteriormente proposto, esclarecem apenas a instância intermediária de causalidade da desnutrição. Incursões ao nível dos determinantes imediatos tanto quanto incursões ao nível das causas básicas da desnutrição vêm sendo feitas de forma ainda muito incipiente em nosso meio. * Durante este ano de 1984, a Faculdade de Saúde Pública da USP vem realizando inquérito em amostra representativa de crianças menores de cinco anos do município de São Paulo visando estabelecer a evolução da prevalência da desnutrição e de outros indicadores de saúde nos últimos dez anos na Capital do Estado. ** Um maior detalhamento desta proposta de agrupamento dos fatores envolvidos com a determinação do estado nutricional dos indivíduos pode ser visto em Monteiro, C.A. & Benício, M.H. d'a. Epidemiologia da desnutrição protéico-calórica. In: Nobrega, F. J. de Desnutrição intra-uterina e pós-natal. São Paulo. Panamed Editorial, p. 120-30.

Como exemplo de investigação ao nível de determinantes imediatos do estado nutricional, temos a análise que Viacava e col. 8 procuraram fazer da relação entre consumo alimentar e estado nutricional na amostra de crianças estudadas pelo ENDEF, no Estado de São Paulo. Por meio desta análise, pôde-se concluir que a deficiência calórica da dieta está mais associada à presença de déficits de crescimento do que a deficiência protéica isto eqüivalendo a dizer que a quantidade de alimentos seria mais importante em determinar a desnutrição protéico-energética do que propriamente a composição da dieta. Ainda nesta linha de procurar entender a determinação do estado nutricional a partir do consumo alimentar, temos o estudo da relação entre práticas do aleitamento e estado nutricional infantil nos primeiros seis meses de vida realizado em famílias de baixa renda do município de São Paulo 6. Tal estudo revelou virtual ausência de desnutrição entre crianças alimentadas com leite materno e elevadíssima prevalência de desnutrição, inclusive de formas moderadas e graves, entre aquelas aleitadas artificialmente. Outro exemplo de investigação ao nível de determinantes imediatos da destnutrição são pesquisas que têm procurado estudar a associação entre presença de doenças infecciosas e parasitárias, condutas terapêuticas e evolução de estado nutricional, cujos resultados têm sugerido uma importante participação daquelas afecções na gênese da DPE e da anemia ferropriva, e têm também evidenciado boas opções para intervenções específicas visando o controle da desnutrição. Antes de esgotar e esclarecer por completo a instância primeira da determinação da desnutrição em nosso meio, os resultados já obtidos estimulam o prosseguimento de investigações, neste nível, tanto ampliando o universo de observações quanto aprimorando a metodologia epidemiológica de análise para permitir melhor individualização da importância relativa de determinados fatores sobre os quais seja viável a intervenção específica. Investigações que têm procurado ultrapassar as instâncias intermediárias da determinação da desnutrição e chegar às condições que, de fato, são suas causas básicas, encontram-se em estado mais incipiente em nosso meio. Contribuem para tal fato, sem dúvida, as consideráveis dificuldades metodológicas que se antepõem à investigação de causas básicas de problemas de saúde em geral. Digna de nota é a tentativa do Grupo de Pesquisas de Ciências Sociais em Nutrição, da FINEP 5, de incorporar na análise dos dados do ENDEF o conceito de classe social, ou seja, a forma de inserção social das famílias estudadas no processo de produção. Entre os achados de sua análise, os pesquisadores do referido grupo constatam que os baixos níveis de renda familiar, per capita, que expunham as famílias à alta prevalência de desnutrição, não eram característicos apenas da fração do proletariado não diretamente ligado à atividade produtiva capitalista (desempregados, trabalhadores autônomos não estabelecidos, determinados trabalhadores rurais, entre outros), mas também envolviam parcelas consideráveis dos trabalhadores assalariados diretamente ligados à atividade produtiva dos setores mais dinâmicos da economia. Nesta medida, situam o modo de produção capitalista, que rege hegemonicamente a atividade econômica no Estado e no país, como fator responsável pelo aparecimento de desnutrição e não como fator capaz de reverter, pela sua penetração, a alta prevalência de desnutrição encontrada em nosso meio. Outro exemplo de investigação em nosso meio, ao nível de causas básicas da desnutrição, realizou-se na Região do

Vale do Ribeira ao se aprofundar o estudo da relação entre estado nutricional infantil e inserção social de famílias rurais na atividade econômica 3. Esta investigação pôde constatar que enquanto filhos de pequenos proprietários eram bastante protegidos da desnutrição, filhos de assalariados, de arrendatários e de meeiros eram atingidos por prevalências muito elevadas. Considerando além deste aspecto, outros ligados ao processo recente de desenvolvimento daquela região do Estado, a referida investigação pôde concluir ser o próprio processo de "modernização" da região, com a penetração de grandes empreendimentos capitalistas e a proliferação de culturas voltadas à exportação, o responsável em última instância pelos altos níveis de desnutrição encontrados. É evidente que os conhecimentos obtidos por investigações como as acima referidas não fornecem elementos para o delineamento de intervenções específicas no controle da desnutrição, uma vez que abordam e colocam em discussão a própria forma de organização da sociedade. São, entretanto, transformações a este nível aquelas capazes de erradicar definitivamente problemas como o da desnutrição. Entre outros aspectos, tais investigações são essenciais para informar devidamente os movimentos sociais empenhados com a transformação da sociedade e para apontar as limitações próprias das intervenções inegavelmente necessárias conduzidas por serviços e programas de saúde. Como no caso da pesquisa em torno dos determinantes imediatos da desnutrição, há evidente necessidade de que os esforços realizados na linha de identificar causas básicas ampliem o seu universo de estudo em nosso meio e aprimorem sua metodologia de modo a poderem integrar mais satisfatoriamente aspectos biológicos e aspectos sociais. Do exposto até aqui, evidencia-se que, embora não se disponha de informações precisas e atualizadas como seria desejável, o problema da desnutrição tem se apresentado de forma bastante grave no Estado de São Paulo e, assim, se constitui em tema de alta prioridade para a investigação. Do ponto de vista de estudos descritivos, há premente necessidade de atualização das informações a nível de Estado e da Capital, cujos últimos dados datam de dez anos atrás. Há também necessidade de informações regionalizadas que permitam identificar situações no Estado onde o problema da desnutrição seja mais agudo e enseje uma atenção particular. Idealmente, o recomendado seria estabelecer um sistema estadual de vigilância nutricional que levantaria continuamente determinados indicadores de mais fácil obtenção e, de tempos em tempos, realizaria investigações mais minuciosas. Neste sentido, configuram-se como particularmente prioritários estudos em torno do desenvolvimento e validação empírica de indicadores apropriados para sistemas de vigilância. Do ponto de vista de investigações afeitas ao estudo de determinantes, há necessidade de que os universos relativamente restritos que têm sido estudados sejam ampliados, e que os estudos avancem mais tanto em direção aos determinantes imediatos do estado nutricional quanto às causas básicas da desnutrição. No caso dos determinantes imediatos do estado nutricional, há um importante espaço a ser preenchido por pesquisas aplicadas que avaliem a eficácia de intervenções específicas, como a suplementação alimentar, formuladas para o controle emergencial da desnutrição. No caso das investigações ao nível das causas básicas da desnutrição, a complexidade metodológica inerente ao objeto de estudo sugere ser necessário o estímulo

à formação de grupos de investigação multidisciplinar com simultâneo e sólido preparo ao nível tanto das ciências biológicas quanto ao nível das ciências sociais. MONTEIRO, C.A. [The problem of malnutrition in S. Paulo State (Brazil). Available information, gaps in knowledge and research priorities]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 19:183-9, 1985. ABSTRACT: The problem of malnutrition in the State of S. Paulo, Brazil, is examined, focussing on prevalence and determinants, gaps in knowledge and research priorities. Although the available data leave much to be desired, all the surveys already undertaken show that the problem of malnutrition in the State is serious, and that protein-energy malnutrition and iron deficiency anemia are endemic. From a descriptive point of view, it is imperative to up-date the least estimates for the prevalence of malnurtition, now ten years old. It is also necessary to obtain regionalized data as an aid to the identification of critical areas to which particular attention is needed. From an analytical point of view, it is to be recommended that the relatively restricted universes which are being focussed on in studies of causality should be expanded, and, equally, that greater efforts with regard to research on immediate determinants and efficacy of specific intervention as well as on the multidisciplinary investigation of the basic causes of malnutrition should be made. UNITERMS: Nutrition disorders, S. Paulo (state), Brazil. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. IUNES, M. Estado nutricional de crianças de 6 a 60 meses no município de São Paulo. II Análise de dados. São Paulo, Departamento e Instituto de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, 1975. 2. MONTEIRO, C.A. Os determinantes da desnutrição infantil no Vale do Ribeira. Cad. Pesq., 29:57-75, 1979. 3. MONTEIRO, C.A. A distribuição do peso ao nascer no município de São Paulo, Brasil. Rev. Saúde públ,, S. Paulo, 14: 161-72, 1980. 4. NUSSENZVEIG, I. et al. Prevalência de anemia e parasitoses intestinais em escolares do município de São Paulo: resultados de emprego da merenda escolar e de drogas antiparasitárias. Rev. paul. Med., 100:32-9, 1982. 5. RELATÓRIO de atividades do Grupo de Pesquisas de Ciências Sociais em Nutrição, 6. Rio de Janeiro, 1979. Rio de Janeiro, Financiadora de Estudos e Projteos, 1979. 6. SIGULEM, D.M. et al. Influência das práticas alimentares no estado nutricional de lactentes e pré-escolares; Relatório final. São Paulo, Departamento e Instituto de Medicina Preventina da Escola Paulista de Medicina, 1980. 7. SZARFARC, S.C. Prevalência de anemia nutricional entre gestantes matriculadas em centros de saúde do Estado de São Paulo. São Paulo, 1983. [Tsee de Livre- Docência Faculdade de Saúde Pública da USP] 8. VIACAVA, F. et al. A desnutrição no Brasil. Petrópolis, Editora Vozes, 1983. Recebido para publicação em 20/08/1984 Reapresentado em 24/01/1985 Aprovado para publicação em 04/02/1985