Ectopia ureteral unilateral congênita em uma cadela Teckel Dachshund com pelagem arlequim relato de caso

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Transcrição:

Arq. Bras. Med. Vet. Zootec., v.64, n.6, p.1504-1510, 2012 Ectopia ureteral unilateral congênita em uma cadela Teckel Dachshund com pelagem arlequim relato de caso [Single congenital ureteral ectopy in a female dog Teckel Dachshund with merle colour pattern case report] M.N. Silva, D.F. Larangeira, E.M. Penha, A.P. Oriá, J.M. Costa Neto, S.M. Barrouin-Melo * Universidade Federal da Bahia UFBA, Salvador, BA, Brasil RESUMO O presente relato apresenta a primeira descrição de ectopia ureteral congênita na raça Teckel Dachshund, diagnosticada em uma cadela com pelagem arlequim. O animal, aos dois meses de idade, apresentava sinais de incontinência urinária e cistite bacteriana, sendo submetido a um plano diagnóstico para confirmação de ureter ectópico. A urografia excretora revelou hidroureter direito com desembocadura caudal ao trígono da bexiga. O exame físico do animal evidenciou ainda hérnia inguinal bilateral, o que reforçou a caracterização da origem congênita das alterações. Aspectos de bem-estar animal são também discutidos. Palavras-chave: cão, ureter ectópico, incontinência urinária, Teckel Dachshund arlequim ABSTRACT The present work reports the first description of congenital ureteral ectopy in the canine breed Teckel Dachshund, diagnosed in a female dog with merle colour pattern. The two month old animal, presented with continuous dribbling of urine and bacterial cystitis, was subjected to a diagnostic plan for ectopic ureter. The excretory urography showed a right hidroureter, which had an orifice located caudally to the trigone of the bladder. The animal also presented a bilateral inguinal hernia, which confirmed the case description as a multiple congenital anomaly condition. Animal welfare aspects are also discussed. Keywords: dog, ectopic ureter, urinary incontinence, Teckel Dachshund Merle INTRODUÇÃO A ectopia ureteral é uma anomalia congênita caracterizada pela localização anormal do segmento terminal de um ou ambos os ureteres em localização distal ao trígono da bexiga. As localizações ectópicas mais frequentes incluem o colo da bexiga, a uretra proximal ou medial, a vagina ou o útero nas fêmeas e a uretra prostática nos machos (Giles et al., 1982; Mc Loughlin, 2008). Quando o ureter não apresenta ligação com a bexiga, abrindo-se diretamente na uretra, na vagina ou no útero, é denominado ureter ectópico extramural. Os ureteres ectópicos intramurais localizam-se na superfície dorsal ou dorsolateral da bexiga (Hoelzler e Lidbetter 2004; Fossum, 2005). A ocorrência de ectopia ureteral tem sido relatada simultaneamente a outras anomalias do trato urinário, incluindo rins irregulares, pequenos ou até mesmo ausentes, hidronefrose, ureter dilatado, ureter tortuoso, bexiga pélvica, persistência de úraco e junção ureterovesical anormal (Mc Loughlin e Chew, 2000; Hoelzler e Lidbetter, 2004). Casos de ureter ectópico já foram descritos em cães, gatos, ratos, cavalos e humanos. Nos cães, a patologia foi descrita em várias raças e em mestiços, com maior prevalência nas raças Labrador Retriever, Golden Recebido em 21 de agosto de 2011 Aceito em 30 de maio de 2012 Autor para correspondência (corresponding author) E-mail: barrouin@ufba.br

Ectopia ureteral unilateral... Retriever, Husky Siberiano, West Highland White Terrier, Terra Nova, Boxer e Poodles Miniatura e Toy (Mc Loughlin e Chew, 2000; Samii et al., 2004; Grauer, 2010). Não há relatos sobre essa patologia em cães da raça Teckel Dachshund. A incontinência urinária, intermitente ou contínua desde o nascimento ou ao desmame, é o sinal clínico mais comum em todas as espécies (Canola et al., 2006). Outros sinais incluem eczema vulvar com hiperpigmentação, hipotricose e dermatite na região ventral do abdômen, hematúria, piúria e cistites recorrentes (McLoughlin, 2008). A patologia é diagnosticada com maior frequência em cadelas, devido à maior evidência dos sinais clínicos de incontinência em fêmeas; o diagnóstico nos machos tende a ser mais tardio (Lamb et al., 1998; Samii et al., 2004). O diagnóstico diferencial deve incluir outras anomalias funcionais ou estruturais do trato urinário inferior, como infecções, cálculos, distúrbios neurogênicos, incompetência do esfíncter uretral, anormalidades endócrinas, disfunção renal ou hepática e neoplasias (McLoughlin e Chew, 2000). A ultras-sonografia e a radiografia são métodos indicados para o diagnóstico, porém, como o ureter normal é de difícil visualização em exames radiográficos, a urografia excretora tem sido a melhor escolha para avaliação dos ureteres e da junção ureterovesicular (Surion et al., 1981; Rozear e Tidwell, 2003; Espada et al., 2006). O tratamento de escolha é a correção cirúrgica, que deve ser realizada o mais rápido possível, para evitar possíveis infecções urinárias recorrentes e outras complicações associadas ao comprometimento das funções urinárias (Giles et al., 1982). O padrão de pelagem arlequim é originado da combinação dos genes H (harlequin) e do gene M (merle), resultante de uma mutação autossômica dominante. O merle é uma característica herdada por dominância autossômica incompleta. Os cruzamentos entre cães e cadelas arlequins não são recomendados, por serem associados a vários distúrbios congênitos. Já foram relatados casos congênitos de patologias oculares, auditivas, ósseas e urinárias (Sponenberg, 1985; O'Sullivan e Robinson, 1989; Clark et al., 2006; Emerson, 2011). Entretanto, não há casos documentados de ureter ectópico congênito em cães arlequins da raça Teckel Dachshund, até onde alcançou a extensão da presente busca bibliográfica. Objetivou-se descrever o diagnóstico clínico e por imagem, além dos achados de patologia clínica e anatomopatologia, de um caso de ureter ectópico de origem congênita em uma cadela da raça Teckel Dachshund com pelagem arlequim. RELATO DO CASO Uma cadela da raça Teckel Dachshund, com dois meses de idade e pelagem arlequim, deu entrada no ambulatório do HOSPMEV (Hospital de Medicina Veterinária Escola de Medicina Veterinária UFBA) com queixa de micção frequente. Na anamnese, a guardiã relatou que o animal apresentava hiporexia e suposto estado febril, informando que, desde a sua aquisição, apresentava incontinência urinária. Não houve outras queixas. Ao exame físico, a cadela apresentava mucosas normocoradas, normohidratação, frequências cardíaca e respiratória dentro dos valores de referência e peso corporal de 2,8kg, compatível com a raça e a faixa etária. As alterações clínicas observadas incluíram a presença de secreção vulvar mucopurulenta, temperatura retal de 39 C e a presença de hérnia inguinal bilateral. O hemograma evidenciou leucocitose por neutrofilia, linfocitose e anemia discreta, com os outros valores dentro da faixa de referência da normalidade para cães (Tab. 1). Com um diagnóstico clínico presuntivo de cistite bacteriana, foi prescrito o antibiótico amoxicilina (10,0mg/kg) com clavulanato de potássio (2,2mg/kg), b.i.d, durante 10 dias, e cetoprofeno (0,1mg/kg), s.i.d, durante três dias. Na primeira revisão, 10 dias após o início do tratamento, o histórico do animal foi de melhora geral e persistência da incontinência urinária. Os parâmetros fisiológicos estavam dentro da normalidade ao exame físico; a urinálise não apresentou alterações e um novo hemograma evidenciou ainda leucocitose por neutrofilia (Tab. 1). Devido à persistência da leucocitose e do relato de incontinência urinária, o tratamento antibiótico foi alterado para azitromicina (5,0mg/kg), s.i.d., durante cinco dias, e foi solicitada a ultrassonografia (USG) abdominal. A USG evidenciou hidronefrose moderada e hidroureter no rim direito (Fig. 1a e 1b). Um novo hemograma apresentou valores normais (Tab. 1). Foi realizada, então, a urografia excretora, que revelou hidroureter direito com desembocadura caudal ao trígono da bexiga Arq. Bras. Med. Vet. Zootec., v.64, n.6, p.1504-1510, 2012 1505

Silva et al. (Fig. 2a,b,c,d). Com a constatação de normalidade no hemograma e nos valores de exames bioquímicos séricos (Tab. 1), o animal foi encaminhado para a realização de ureteroneocistotomia. A medicação préanestésica adotada foi quetamina (5,0mg/kg/IM) e diazepan (0,3mg/kg/IM), seguidos de indução anestésica com propofol (2,0mg/kg) e anestesia inalatória dose-efeito com isoflurano. Entretanto, o animal veio a óbito por fibrilação cardíaca durante o procedimento. Foram coletadas amostras do aparelho cardiorrespiratório, para análise anátomo-histopatológica, a fim de serem pesquisadas outras alterações congênitas. Ao exame macroscópico dos tecidos, não foram evidenciadas alterações visíveis, além das já diagnosticadas pelos exames clínicos e por imagem. O exame microscópico revelou, em fragmentos de tecido pulmonar, alterações compatíveis com o diagnóstico de atelectasia pulmonar adquirida. Figura 1a. Imagem de USG revelando rim direito com pelve dilatada (5,53cm de diâmetro) e conteúdo anecogênico com debris ecogênicos em suspensão em cadela Teckel de dois meses. Figura 1b. Imagem de USG mostrando ureter direito dilatado, medindo cerca de 1,00cm de diâmetro, sendo acompanhado em toda a sua extensão até a região dorsocaudal à bexiga urinária, apresentando conteúdo anecogênico com debris ecogênicos em cadela da raça Teckel. Tabela 1. Achados de hemograma e dosagens séricas de ureia e creatinina durante a avaliação de cadela Teckel, pelagem arlequim, com diagnóstico de ureter ectópico Hemograma/Bioquímico 12/03/2010 22/03/2010 30/03/2010 12/04/2010 Valores de referência Hemácias (x10 6 /µl) 4,68 5,42 5,66 7,0 5,5 8,5 Hemoglobina (g/l) 10,2 11,5 12,1 14,5 12,0 18,0 Volume globular (%) 30,1 36,3 38,1 44,3 37 55 Plaquetas (µl) 255.000 536.000 427.000 633.000 166.000 575.000 Leucócitos totais (X10 3 ) 39,4 25,5 16,8 15,7 6.000 11.500 Bastonetes 3152 255 168 0 300 Segmentados 25610 13515 7896 8424 3.000 11.500 Ureia - - - 55,0 21,4 59,9 Creatinina - - - 0.8 0,5 1,5 1506 Arq. Bras. Med. Vet. Zootec., v.64, n.6, p.1504-1510, 2012

Ectopia ureteral unilateral... Figura 2a. Urografia excretora de cadela Teckel após cinco minutos da injeção do contraste iodado não iônico (ioexol 300), mostrando início de filtração em pelve renal (seta branca). Figura 2b. Urografia excretora após 10 minutos da injeção do contraste iodado não iônico (ioexol 300), mostrando contraste chegando à vesícula urinária. Figura 2c. Urografia excretora após 10 minutos da injeção do contraste iodado não iônico (ioexol 300), mostrando contraste chegando à vesícula urinária (seta branca). DISCUSSÃO O caso descrito no presente relato de ectopia ureteral unilateral é raro. A patologia resulta de uma falha na diferenciação dos ductos mesonéfricos e metanéfricos durante a embriogênese, sendo o ureter único e unilateral o menos comum (Koyanagi et al., 1976; Buogo et al., 2002; Canola et al., 2006; Yoon et al., 2010). Confirmando os dados da literatura para outras raças caninas (Lamb et al., 1998; Samii et al., 2004), o presente caso foi de uma cadela com Figura 2d. Urografia excretora após 30 minutos da injeção do contraste iodado não iônico (ioexol 300), mostrando contraste ainda em ureter e inserção anômala em vesícula urinária (Trajeto tortuoso em ureter contraste branco delimitado por elipse). incontinência urinária como queixa principal e o sinal clínico mais evidente. O fato de o animal apresentar pelagem arlequim e também hérnia inguinal bilateral reforçou a suspeita clínica de doença congênita. A pigmentação merle é aceita em algumas raças, entre elas o Teckel (CBCK, 2011), como o animal deste relato, e o Dogue Alemão (O Sullivan e Robinson, 1989). Entretanto, cães que apresentam heterozigose ou homozigose para o lócus merle podem apresentar uma variedade de alterações congênitas, principalmente auditivas e Arq. Bras. Med. Vet. Zootec., v.64, n.6, p.1504-1510, 2012 1507

Silva et al. oftálmicas, semelhantes às alterações observadas na síndrome de Waanderburg em humanos (Sponenberg, 1985; O Sullivan e Robinson, 1989; Clark et al., 2006). Apesar de a literatura sobre hidroureter em cães reportar em geral valores normais ao hemograma (Albers et al., 1995; Hoelzler e Lidbetter, 2004; Canola et al., 2006; Mc Loughlin, 2008), no presente caso foi observada leucocitose com desvio à esquerda, associada à suspeita de infecção urinária. As evidências de infecção podem ser observadas na Tab. 1: no primeiro hemograma, o animal apresentava acentuada leucocitose, controlada com o uso de antibióticos, mas com tendência à recorrência. O sumário de urina provavelmente não apresentou alterações por ter sido realizado após o primeiro curso de antibioticoterapia. A ultrassonografia e a urografia excretora confirmaram a suspeita clínica, além de permitirem a identificação da inserção anômala do ureter e sua classificação como extramural, conforme descrito na literatura (Surion et al., 1981; Rozear e Tidwell, 2003; Espada et al., 2006). O tratamento de escolha foi o procedimento cirúrgico para reposicionamento do ureter defeituoso, com técnica descrita por Fossum (2005) e McLoughlin (2008), porém o animal veio a óbito durante o procedimento, apesar de estar em higidez clínica e de o protocolo anestésico escolhido ser o indicado para o cão infantil. O exame anatomopatológico evidenciou atelectasia pulmonar adquirida provavelmente durante a anestesia (Tsuchida, 2006; Lopes e Nunes, 2010), ou devido à massagem intracardíaca realizada como tentativa de reanimação do animal. A convivência entre homens e cães data de milhares de anos, e no decorrer desse tempo, as características dessa espécie têm sido influenciadas tanto pela seleção natural quanto pela seleção artificial promovida pelo homem, em busca de uma gama de resultados para modificação funcional ou estética das raças (Fuck et al. 2006; Soares e Paixão, 2011). Para a seleção de características desejadas, é realizada a endogamia ou consanguinidade, um sistema de acasalamento que emprega indivíduos com algum grau de parentesco, aumentando, assim, a homozigose. Com a repetição da característica buscada nas proles, obtém-se a sua fixação e padronização, no que é, então, considerado raça. Nas diversas espécies, apesar de selecionar as características desejáveis no desenvolvimento de cada raça, a endogamia favorece a ocorrência e a expressão fenotípica de genes recessivos, e, com isso, anomalias que só se manifestam em homozigose recessiva (Breda, et al., 2004; Meireles e Buteri, 2011). De posse do conhecimento zootécnico na busca de características desejadas, evitando as doenças congênitas, os criadores profissionais direcionam os cruzamentos dos reprodutores de modo a manter a saúde racial. Entretanto, à medida que uma determinada raça se populariza, aumenta a ocorrência de acasalamentos promovidos por leigos, consequentemente o descontrole fenotípico e o aparecimento de doenças congênitas. Os resultados podem variar de ninhadas natimortas, com anomalias polissistêmicas incompatíveis com a vida, ao nascimento de animais que vão apresentar doenças com manifestação em diferentes faixas etárias, mais frequentemente nos meses ou anos iniciais de vida (Twine, 2007). A geração de animais fadados ao sofrimento físico, portanto, decorre, neste caso, de doenças causadas pela intervenção humana (Santana e Oliveira, 2011). Ao sofrimento causado pelos sinais da doença natural, acrescenta-se ainda o sofrimento inerente (1) aos procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos menos ou mais invasivos, a depender do tipo de patologia apresentada; (2) ao abandono pelos proprietários muitas vezes insatisfeitos com a má aquisição de um produto defeituoso no pet-shop; e (3) à exclusão dentro da própria família multiespécie, quando o animal anômalo é mantido. Essas são possibilidades comuns e representam um desafio importante ao bem-estar animal. O conhecimento e a intervenção profissional na prevenção da seleção de doenças congênitas por acasalamentos desordenados devem ser assumidos como responsabilidades do médico veterinário, que deve incluir a devida orientação aos guardiões de animais de estimação na rotina clínica. CONCLUSÃO A suspeita de ectopia ureteral congênita unilateral foi levantada pela presença de incontinência urinária, pelagem arlequim e idade do animal, sendo confirmada pela urografia excretora. O animal apresentou a doença clínica, com todos os elementos comprometedores de seu bem-estar, além do óbito. É importante a intervenção profissional do médico veterinário. 1508 Arq. Bras. Med. Vet. Zootec., v.64, n.6, p.1504-1510, 2012

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