ASPECTOS DA TEOLOGIA E DA ONTOLOGIA EM ARISTÓTELES ASPECTS OF ARISTOTLE S THEOLOGY AND ONTOLOGY

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Transcrição:

ASPECTOS DA TEOLOGIA E DA ONTOLOGIA EM ARISTÓTELES ASPECTS OF ARISTOTLE S THEOLOGY AND ONTOLOGY MARIA PAULA FERREIRA CURTO 1 Resumo: O texto pretende mostrar como Aristóteles, na sua busca pela ciência primeira, entende e relaciona ontologia a procura pela unidade do ser e teologia a busca pela existência do ser separado, transcendente. Nessa análise, serão abordados alguns conceitos importantes no pensamento aristotélico, como teologia astral e Primeiro Motor. Palavras-chave: teologia, ontologia, unidade, separação. Abstract: This paper aims to demonstrate how Aristotle, in his search for the first science, understands and relates ontology a search for the unity of the being and theology a search for existence of the separate, transcendental being. In this analysis, some important concepts of Aristotle s thought, such as astral theology and the Prime Mover, will be approached. Keywords: theology, ontology, unity, separation. Um mundo sem fracassos seria um mundo onde o ser seria tudo o que pode ser, onde não haveria matéria, nem potência, nem movimento, nem multiplicidade; semelhante mundo se identificaria com seu princípio: ato puro, imaterial, imóvel e único como ele, seria, enfim, indiscernível dele. Pierre Aubenque in Le problème de l être dez Aristote UNIDADE E SEPARAÇÃO A análise realizada sobre o pensamento aristotélico no que se refere à teologia e à ontologia teve como ponto de partida as seguintes questões: Unidade: São redutíveis à unidade as múltiplas significações do ser? Existe um princípio comum a todos os seres? 1 Maria Paula Ferreira Curto é pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. (mpcurto@yahoo.com.br)

Separação: Há outros seres além do sensível? Ora como nossa pesquisa indaga se além das substâncias sensíveis existe ou não uma substância imóvel e eterna, e, se existe, qual é a sua natureza 2. Pode-se dizer que todas as aporias presentes no livro Beta podem ser reduzidas a essas duas questões centrais. Por exemplo, quando se pergunta se o estudo das causas pertence a uma ou várias ciências, ou ainda, se é uma ciência que se ocupa das essências ou são várias ciências estamos nos referindo à questão da unidade. E quando as perguntas dizem respeito ao fato de existir ou não, fora da matéria, algo que seja causa por si ou se esse algo está ou não separado dessa mesma matéria, trata-se do problema da separação. A partir disso, a busca pela metafísica, pela ciência primeira, apresenta duas tarefas: 1) Busca ontológica: procura pela unidade do ser e, 2) Busca teológica: procura pela existência do ser separado, transcendente. Essas buscas não ocorrem de formas sucessivas, mas simultâneas, e, às vezes, apresentam respostas convergentes, noutras, suas respostas são contraditórias. Por exemplo, a hipótese da existência de dois mundos, um sensível e outro inteligível, pode levar às seguintes conclusões contraditórias: a) Existe um corte, uma separação entre esses mundos e logo, a unidade não é possível ou b) Como a unidade não pode ter o mesmo gênero da multiplicidade, necessariamente teria de existir separadamente (ou não existiria por completo, pois seria múltipla). E logo, a transcendência seria a garantia de possibilidade de existência da unidade, ou seja, do conhecimento. Para Platão, pela teoria das Idéias a transcendência das idéias é que tornava possível o conhecimento. Aristóteles tem problemas para aceitar esta teoria pois não concorda com a forma vacilante de mediação entre os dois mundos encontrada por Platão, a participação que, a seu ver é confusa pois ora é definida como relação modelo-cópia, ora como mescla. A relação modelo-cópia garante a pureza, a estabilidade da Idéia, uma vez que um não se mistura ao outro, mas não consegue explicar como a essência de algo pode estar separada deste algo. O raciocínio inverso pode ser aplicado em relação ao conceito de mescla, que, apesar de não fazer a separação entre o ser e sua essência, não garante a sua estabilidade, graças à mistura entre eles. 113 Maria Paula Ferreira Curto 2 ARISTÓTELES, Metafísica, XIII 1, 1076 a 12. Trad. Marcelo Perine, São Paulo: Loyola, 2002.

114 Aspectos da teologia e da ontologia em Aristóteles O que mais Aristóteles rejeita não é a existência da Idéia, de seres eternos e separados, o que ele não aceita é que as Idéias sejam a essência do mundo sensível. Seu argumento é que os platônicos ao criarem as Idéias, tão somente criaram seres sensíveis eternos, criaram apenas seres sensíveis acrescidos da partícula em si que passaram a ser, dentro de um mundo inteligível, o princípio do sensível. Para ele, o divino não é mais do que o divino e, conseqüentemente, não pode nos ensinar nada sobre o sensível. O ser não significa identicamente o corruptível e o incorruptível, o terrestre e o divino; não há ser que seja comum a um e a outro, ou, ao mesmo, essa comunidade é apenas verbal, equívoca, e não suficiente para constituir uma ciência única 3. Para avançar no tema, duas hipóteses devem ser investigadas: a) Como do eterno, do incorruptível nasce o corruptível? (admitindo-se que os princípios são sempre imutáveis, incorruptíveis) b) O corruptível pode nascer de um princípio corruptível? (admitindose a existência de princípios corruptíveis). Analisando a segunda hipótese, Aristóteles tenta propor o que se pode chamar de coincidência de gênero entre as coisas e seus princípios, ou seja: para coisas eternas princípios eternos; para coisas sensíveis princípios sensíveis; para coisas matemáticas princípios matemáticos e para coisas corruptíveis princípios corruptíveis. Admitindo-se princípios corruptíveis, logo: a) Haveria uma busca infinita pelo princípio do princípio, ou seja, não haveria princípio; ou ainda, b) Sendo o princípio corruptível, ou seja, capaz de perecer, o que aconteceria ao algo do qual é princípio quando este se corrompe, perece? Poderia a coisa continuar a existir depois que seu princípio já tenha perecido? A conclusão é que para ser princípio tem de ser incorruptível. No entanto, a problemática permanece, pois ainda não se sabe como princípios incorruptíveis por natureza, por definição, podem ser a causa da corruptibilidade do corruptível. Por exemplo, se houvesse um homem eterno, ele se engendraria como eterno e não como temporal, como finito. 3 AUBENQUE, Pierre. El problema del ser en Aristoteles. Trad. V. Pena, Madri: Taurus, 1987, p. 306.

A TEOLOGIA É A ÚNICA CIÊNCIA POSSÍVEL 115 Se um princípio incorruptível somente pode ser a causa do incorruptível, como pode haver ciência do corruptível? Como conhecer aquilo que é e não é, que nasce e perece? Uma ciência do móvel, do corruptível parece ser assim impossível. Se, para haver ciência, não há como prescindir do que é imóvel, eterno, incorruptível, a única ciência possível é a que trata do único gênero de ser que atende a esses requisitos: os seres divinos. Logo, a única ciência possível é a teologia. Maria Paula Ferreira Curto A TEOLOGIA É INÚTIL A teologia é inútil porque: a) Não pode ensinar nada sobre o nosso mundo. b) Não há relação entre o divino e o sensível. E conseguir alcançar essa filosofia primeira, que pressupõe a contemplação do divino, seria algo mais que humano, cabendo somente ou principalmente a Deus. Logo, o conhecimento do divino pertence somente ao divino e, além disso, Deus só conhece Deus. Seria como que indigno da perfeição divina conhecer algo além da sua própria perfeição. Nesse ponto, são necessárias algumas considerações: a) Pode ser percebida uma certa impotência do Deus aristotélico na sua ignorância quanto ao mundo sensível, ou usando os termos aristotélicos, quanto ao mundo sublunar. b) A mesma impotência das Idéias platônicas em poder ser a essência ou o princípio das coisas sensíveis aparece na impotência desse Deus aristotélico em conhecer o nosso mundo. Algumas perguntas: Seria o Deus aristotélico ainda perfeito, mesmo não conhecendo o nosso mundo sensível? Aubenque responde que o que se está negando a esse Deus é, na verdade, o conhecimento humano acrescido do termo em si. E que isso é um artifício do discurso humano para associar saberes radicalmente diferentes, diferentes em essência e que, conseqüentemente, não podem ser relacionados. Para que serviria, então, essa ciência divina se ela não conhece além de si mesma? O que ela pode agregar ao mundo humano, sublunar?

116 Aspectos da teologia e da ontologia em Aristóteles Aristóteles responde dizendo que mesmo conservando sua supremacia, pois é a ciência do que é perfeito, imóvel, imutável, todas as demais ciências são necessárias (no sentido de que fazem mais falta ao homem, são mais úteis à humanidade ) do que a ciência do divino. A filosofia primeira seria um luxo e não uma resposta a uma necessidade. Não é o caso de se buscar um modelo divino para o mundo sublunar, mas de continuar a busca pelo conhecimento dos seres que nos são próximos, como plantas e animais, e que essa busca restabelece o equilíbrio com a ciência dos seres divinos. Em outras palavras, o fato do divino não servir de modelo não pode impedir que se continue a conhecer, na medida do possível, o nosso mundo; não se pode parar as demais ciências como a física, a biologia, etc. Que essa ciência divina, apesar de inútil, pode ser, através de sua presença visível os astros, fonte de inspiração e desejo para a busca pelo conhecimento como um ideal. A afirmação da transcendência, se bem que exclua toda relação direta de conhecimento entre Deus e o mundo, assim como toda relação de dedução entre a contemplação do divino e a investigação terrestre, não exclui por isso toda relação vital ou existencial 4. A TEOLOGIA ASTRAL Ao vislumbrar a possibilidade da existência de seres eternos, porém visíveis, que podem ser conhecidos pela simples observação do céu, Aristóteles encontra a saída, a solução possível para a existência mesma do conhecimento humano. A partir dessa descoberta, a teologia deixa de ser mera ilusão. Se antes não havia como falar do divino, eis que este se oferece, se mostra à humanidade, através da sua presença astral, rompendo com aquela que parecia ser uma distância intransponível e garantindo, com isso, a possibilidade mesma do grande conhecimento humano. Nesse ponto, não há separação entre sensível e inteligível: A ordem que reina no céu é inteligível ; mas esta ordem não está oculta por detrás dos fenômenos, mas se manifesta imediatamente neles. o céu visível é o próprio céu inteligível; não há necessidade de duplicar os céus 5. Essa não-separação, ou melhor, essa identidade possível entre sensível e inteligível tem ainda um sentido, um significado maior. Aubenque vai di- 4 Id. ibid., p. 323. 5 Id. ibid., p. 327

zer que, se por um lado é a matéria (que compõe as coisas do mundo sensível) o que obscurece o inteligível e o degrada no sensível, é a imaterialidade das esferas celestes que garante sua percepção em um ato do espírito que é ontologicamente anterior à distinção entre sentidos e intelecto. É como se essa intuição intelectiva que permite contemplar o céu e nele poder perceber a ordem do universo, a sua eternidade, imutabilidade, perfeição, estivesse além ou anterior à razão e aos sentidos. A matéria é a fonte da contingência, o céu é o domínio da necessidade. Dessa forma, o mundo celeste não é imagem, não é reflexo, mas é a prova visível, sempre presente, da ordem cósmica, da unidade e imutabilidade que faltam ao nosso mundo. No entanto, a distância de toda forma permanece, pois mesmo que Aristóteles tenha substituído a captação do inteligível por uma estética, uma percepção (em lugar da dialética platônica) e também substituído o conceito de uma ordem ideal (mundo das Idéias platônicas) por uma visão de uma ordem real (contemplação do mundo celeste), este céu ainda continua distante para os homens, como a beleza do ser amado. Talvez essa distância, mesmo que não mais da ordem do impossível, do infinito que separa dois mundos, seja ainda mais cruel, mais sofrida, visto que se permite senti-la, percebê-la, com a consciência de não se poder jamais superá-la. Como sugeria Parmênides, a visão é a presença na ausência: garante que sujeito e objeto pertencem ao mesmo mundo, mas somente faz mais sensível, e quiçá mais dolorosa, sua separação 6. Aristóteles, em vez de suprimir a transcendência, torna a separação ainda mais acentuada, ao fazer um corte dentro de um mesmo mundo, entre o céu e sua ordem eterna, imutável e inspiradora e o terrestre, o sublunar e sua contínua transformação, sua aparente desordem. Ao invés de atribuir a Deus uma culpa por ele estar afastado, distante, por não conhecer nada além de si mesmo e por não ter se preocupado com este mundo, permitindo que nele houvesse toda forma de desordem e destruição, deve-se agradecer a ele pelo fato de ter se oferecido como uma ordem possível, uma inspiração, aos nossos olhos através da sua manifestação celeste. O Deus de Aristóteles é um Deus distante, mas não é um Deus oculto; é um Deus presente e ausente ao mesmo tempo, separado de nós, mas que se oferece a nós em um espetáculo, e que compensa sua distância de nosso mundo com o exemplo sempre visível de seu esplendor 7. 117 Maria Paula Ferreira Curto 6 Id. ibid., p. 328. 7 Id. ibid., p. 335.

118 A TEORIA DO PRIMEIRO MOTOR Aspectos da teologia e da ontologia em Aristóteles A teologia aristotélica é complementada com a teoria do Primeiro Motor que pode ser dita, em poucas palavras, como aquela que é constituída não mais a partir da contemplação do céu e dos astros-deuses e do conhecimento de astronomia (teologia astral), mas a partir do movimento, este grande fenômeno que rege o mundo sublunar. Quando Aristóteles considerava somente as esferas celestes não havia necessidade de buscar uma causa exterior pois, como a alma humana, os astros se movem por si (movimento circular e eterno). É a partir da investigação sobre a condição de eternidade do movimento, de como este, sendo eterno em sua totalidade, pode estar fragmentado em uma multiplicidade de movimentos aparentemente descontínuos que Aristóteles desenvolve o conceito de Primeiro Motor. Trata-se de encontrar uma explicação para o fato de que, sendo o movimento eterno, as coisas no mundo ora encontram-se em movimento, ora em repouso. Essa eternidade do tempo vai exigir um movimento contínuo, diferente dos movimentos que vemos no mundo sublunar (que são, na sua maioria, descontínuos). Esse movimento contínuo só pode ser circular (porque o movimento retilíneo não pode ser eterno e contínuo). Esse movimento circular contínuo, ordenado, eterno, pode ser contemplado no céu, através do movimento dos astros. Bastaria, então, somente esclarecer como este movimento circular eterno pode se degradar em movimento descontínuo. Aristóteles vai mais além e aplica para o divino uma teoria que parecia adequada somente para o movimento no mundo sublunar, que dizia que tudo aquilo que se move é movido por algo. E é aplicando este conceito que se chega ao Primeiro Motor, aquele que move sem ser movido e que é causa imediata dos movimentos celestes e causa mediata dos movimentos do mundo sublunar 8. O risco dessa afirmação (além de envolver em penumbra a teologia astral, que passa a ser um simples passo intermediário nessa conclusão) é que, sendo o Primeiro Motor como que um primeiro elo de uma cadeia à qual ele é o princípio, não estaria ele amarrado à ela? E, desse modo, em vez de sua posição transcendente, não estaria ele, ligado à série de corrupção e geração do mundo sublunar que movimenta? De fato, a demonstração física do Primeiro Motor parece apagar a sua transcendência, tornando-o o extremo de um mundo ao qual move por contato. Esse pode ser o motivo pelo qual vários intérpretes venham a falar da imanência do Primeiro Motor. 8 Id. ibid., p. 343.

Ora, o ponto não é saber se o Primeiro Motor é transcendente ou imanente, visto que Aristóteles coloca claramente a sua transcendência; a questão é descobrir porque depois de ter afirmado a sua transcendência, através da única forma possível, a contemplação dos astros (visto que somente estes guardam co-relação com o divino), ele volta a insistir em uma nova prova, utilizando-se de métodos físicos, humanos, que, como o próprio Aristóteles já nos havia prevenido, são incapazes de esclarecer o divino e que, conseqüentemente, podem levar a uma conclusão equivocada. Há outras contradições no que diz respeito aos aspectos relativos às noções de corporeidade, extensão, indivisibilidade e até mesmo do lugar onde estaria localizado o Primeiro Motor, como por exemplo: se a moção do Primeiro Motor é concebida de acordo com os nossos conceitos de movimento, é necessário que haja contato entre movente e movido. Logo, se o Primeiro Motor é incorpóreo, não poderia haver contato e, conseqüentemente, não haveria movimento.como pode o Primeiro Motor estar no último termo da série e, ao mesmo tempo, não estar em lugar nenhum? Se, além do céu, onde se encontra o Primeiro Motor e onde não existe lugar, nem vazio, nem tempo, como pode haver movimento? A conclusão a que pode chegar é que não se pode falar do divino e da transcendência usando as categorias (como tempo e lugar) físicas e terrestres adotadas no discurso humano sobre o mundo porque elas não conseguem alcançar o sentido, a amplitude de Deus. Porém, Aristóteles enxerga uma saída para a impotência do discurso humano no que tange ao divino: é a negação. Pois, ao negar a Deus aquilo que é verdadeiro para os homens, por exemplo, ao dizer que a essência de Deus não comporta lugar, nem vazio, nem tempo; que é imóvel, impassível, inalterável, não suscetível à velhice, e que, se é um ser vivo, sua vida deve ser pensada sem fadiga e imortal, temos alguma possibilidade, desviando a nossa visão para o que Deus não é, de nos elevarmos a um pressentimento de sua inefável transcendência 9. A negação seria, então, o último recurso para que a linguagem humana consiga falar da transcendência divina sem equívocos. Por que falar de algo indizível? Por que insistir em utilizar categorias humanas, terrestres, para chegar a Deus? Porque não existe, para nós, humanos, outra forma de falar, outra possibilidade de linguagem. Porque a teologia não pode ser senão a nossa forma de falar sobre Deus. Porém, o grande risco que se corre ao tentar vencer este desafio da linguagem seja o de, ao falar da transcendência divina, torná-la humana, pequena, mun- 119 Maria Paula Ferreira Curto 9 Id. ibid., p. 350.

120 Aspectos da teologia e da ontologia em Aristóteles dana e assim, de transformar o divino, o sublime, no mero limite do nosso mundo. Desse modo, ao se analisar a teologia de Aristóteles, sua teologia astral continua a ser sua maravilhosa descoberta, que lhe permite preservar a inefável transcendência do divino contra as seduções do discurso 10. Se a transcendência prevalece, como se dá a relação entre esse Deus transcendente e o mundo? Como o Primeiro Motor pode mover o mundo? Bem, a resposta pode ser encontrada no livro Lambda da Metafísica que diz que o Primeiro Movente move como o que é amado, enquanto todas as outras coisas movem sendo movidas 11. Essa foi a incrível solução deste gênio filosófico, a única que, sendo compatível com a teologia astral, também se utiliza da experiência mundana, através dos sentimentos de desejo e de amor. Qual a grande diferença dessa solução aristotélica? É que, ao colocar Deus, não mais como um princípio, mas como uma causa final do mundo, ao mesmo tempo em que dispensa uma explicação sobre a sua relação, sua forma de ligação com este mundo, garante a sua separação, a sua transcendência. Claro fica que essa separação não pode ser total, tem que haver uma certa revelação, pois não se consegue amar, desejar o que não se vê, o que se ignora totalmente. Mas o Deus aristotélico apesar de distante, não está oculto, é um Deus acessível à contemplação e que tem em comum com o ser amado esse singular privilégio de mover, ou melhor, de comover, em virtude do espetáculo que oferece de si mesmo 12. É este poder de comover, de inspirar, de ser objeto do desejo que pode mover sem ser movido, que pode atuar, operar sobre o mundo, sem que seja necessário fazer parte dele. O Deus aristotélico em nada se parece com o Deus cristão, ele não pede nada, não exige nada, não tem que conceder nada, não perdoa, nem castiga. Ele simplesmente é. O mundo não provém dele nem é feito à sua conformidade, como no caso do demiurgo platônico; o mundo apenas tende a ele, por amor e mais nada. Em busca de um princípio, encontra-se uma finalidade. Finalidade essa nunca alcançada, apesar de alcançável, sempre adiada, sempre para além dos esforços humanos. Mas, na verdade, é a procura em si o mais importante, e não a chegada; é o processo em si e não o resultado que importa. O caminho torna-se mais importante que o destino. E, quem sabe, a humanidade torna-se ela mesma mais significativa do que o próprio divino. [recebido em maio de 2003] 10 Id. ibid., p. 351. 11 ARISTÓTELES, Metafísica, XII 7, 1072 b 3. Trad. Marcelo Perine, São Paulo: Loyola, 2002. 12 AUBENQUE, Pierre. Op. cit., p. 353.