O mais querido "fora da lei": um estudo sobre o entrudo na cidade do Rio de Janeiro ( ) Débora Paiva Monteiro *

Documentos relacionados
Resenha. Carnaval popular paulistano

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES - CEART DEPARTAMENTO DE MÚSICA DÉBORA COSTA PIRES

BRASIL COLÔNIA ( )

PLANO DE CURSO DISCIPLINA:História ÁREA DE ENSINO: Fundamental I SÉRIE/ANO: 5 ANO DESCRITORES CONTEÚDOS SUGESTÕES DE PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

PLANO DE CURSO Disciplina: HISTÓRIA Série: 4º ano Ensino Fundamental PROCEDIMENTOS METODOLÓGICO QUAL O SIGNFICADO PARA VIDA PRÁTICA

O Carnaval em Portugal e noutros países do Mundo

Disciplina: História. Período: I. Professor (a): Liliane Cristina de Oliveira Vieira e Maria Aparecida Holanda Veloso

2 - Aspectos históricos / 2a Conceitos fundamentais FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE BRASILEIRA Cel Antonio Ferreira Sobrinho / CEPHiMEx

Cultura Brasileira Século X X

ECONOMIA, SOCIEDADE E CULTURA NO BRASIL COLONIAL. SÉCULO XVIII

História. Crise da Lavoura canavieira. Professor Cássio Albernaz.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ HISTÓRIA PRISE - 2ª ETAPA EIXOS TEMÁTICOS: I MUNDOS DO TRABALHO

Ecos Noturnos: os clubes dançantes nas crônicas de Francisco Guimarães (1904) Aluno: Juliana da Silva Sabatinelli. Orientador: Leonardo Pereira

A Crise do Império MARCOS ROBERTO

CENTRO EDUCACIONAL ESPAÇO INTEGRADO

ATIVIDADE. Independência para quem? Relações políticas e sociais durante o período escravista brasileiro

Exercícios extras. Explique a caracterização que o texto faz do Renascimento e dê exemplo de uma obra artística em que tal intenção se manifeste.

TOCA A CELEBRAR TRADIÇÕES CARNAVALESCAS NA EUROPA CLUBE OPEN YOUR MIND ANO IV NEWSLETTER Nº23

RESOLUÇÃO Nº 11/2002

Cidade, imprensa e arquitetura: as crônicas e os debates de modernização em Porto Alegre,

A EDUCAÇÃO DE TEMPO INTEGRAL NO BRASIL: ASPECTOS HISTÓRICOS

RESENHA DO LIVRO: O surgimento do Carnaval Carioca no Século XIX e Outras Questões Carnavalescas

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ COORDENADORIA DE CONCURSOS CCV PARECER

O imperador nomeava um presidente conservador ou liberal de acordo com a conjutura política

José Milhazes e Siiri Milhazes MADEIRA O VINHO DOS CZARES

1808: A EUROPEIZAÇÃO CARIOCA E O PAPEL DE DISTINÇÃO SOCIAL DA INDUMENTÁRIA FEMININA

Revoltas Nativistas e Anticoloniais. Alan

Primeiro Reinado ( )

Movimentos Sociais no Brasil ( ) Formação Sócio Histórica do Brasil Profa. Ms. Maria Thereza Rímoli

Imperialismo ou Neocolonialismo (XIX-XX)

HISTÓRIA REVISÃO 1 REVISÃO 2 REVISÃO

A "TEMÁTICA INDÍGENA NA ESCOLA" COMO NOVA POSSIBILIDADE DOCENTE: OS ÍNDIOS DO PASSADO E DO PRESENTE RESENHA

AS FESTAS DAS IRMANDADES NEGRAS. sociedade brasileira Oitocentista; compreender que alguns elementos dessas festas sobrevivem com

CURSO DE HISTÓRIA UNEB/CAMPUS VI (Caetité-BA) EMENTÁRIO

Resenha. Educar, Curitiba, n. 17, p Editora da UFPR 1

A Exploração do Ouro

CONTEÚDOS HISTÓRIA 4º ANO COLEÇÃO INTERAGIR E CRESCER

MEMÓRIA E REPRESENTAÇÃO DE D. PEDRO II NA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM ALCÂNTARA/MA

Revisão Histórica Antigo Egito

Controle Social e Construção da Ordem: O Aparelho Policial e a Disciplinarização da População Imigrante um Estudo de Caso (Piracicaba)

Lições de Português 5º ano Semana de 20 a 24 de fevereiro.

Queijo de Minas vira patrimônio cultural brasileiro

A expansão cafeeira no Brasil.

Tráfico interno de escravos em Mariana: Ao longo do século XIX, as medidas referentes à proibição do tráfico atlântico

Lima Barreto e os caminhos da loucura. Alienação, alcoolismo e raça na virada do século XX

Disciplina: História, Literatura e modernidades periféricas : Machado de Assis e Dostoiévski.

Colorir sobre o 7 de Setembro

TEMA F1: O ANTIGO REGIME EUROPEU REGRA E EXCEÇÃO

A escravidão também chamada de escravismo, escravagismo e escravatura é a prática social em que um ser humano adquire direitos de propriedade sobre

O PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA DO BRASIL COLÉGIO PEDRO II PROFESSOR: ERIC ASSIS

Bárbara da Silva. Literatura. Pré-modernismo

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

7 Referências bibliográficas

entre eles podemos apontar a escravidão. No entanto, não pretendemos tratar a revolta apenas como um resultado das articulações entre base/estrutura,

6 Referências bibliográficas

Rômulo Rafael Ribeiro Paura. Leituras do passado para a infância brasileira: Cultura histórica e livros de leitura ( ) Dissertação de Mestrado

HISTÓRIA QUESTÃO. (

Pesquisa com os grupos tradicionais de cultura popular do Vale do Jequitinhonha

regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas. c. apenas pode ser visualizada; arte se resume apenas a obras que podem ser vistas.

QUEM FAZ E COMO SE FAZ O BRASIL? Professor: Joaldo Dantas de Medeiros Sociologia 3ª Série

UFSC. História (Amarela)

Tabela 25 Matriz Curricular do Curso de História - Licenciatura

Programa Analítico de Disciplina EDU223 História da Educação Brasileira

Informações de Impressão

Cópia autorizada. II

PLANO DE ENSINO DADOS DO COMPONENTE CURRICULAR HISTÓRIA

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA NO SÉCULO XIX. Prof. Lincoln Marques

1. PROCEDIMENTO: ATIVAR O CONHECIMENTO PRÉVIO DO ALUNO - PROBLEMATIZANDO A APRENDIZAGEM:

» As palavras têm uma história e fazem a história. O peso e o significado das palavras são influenciados pela história

A Formação Territorial do BRASIL

EJA 5ª FASE PROF.ª GABRIELA DACIO PROF.ª LUCIA SANTOS

Sociologia Jurídica. Apresentação 2.1.b Capitalismo, Estado e Direito

COLÉGIO XIX DE MARÇO 3ª PROVA PARCIAL DE HISTÓRIA QUESTÕES ABERTAS

O RESGATE DO BANHO DE MAR À FANTASIA Uma Manifestação Carnavalesca Esquecida Carla Vaz da Silva UFRJ RESUMO:

Trânsitos da moda brasileira

EDITAL 153/2014 CONCURSO PÚBLICO DE PROVAS E TÍTULOS. Só abra quando autorizado. A PROVA DEVERÁ SER RESOLVIDA À TINTA AZUL OU PRETA

Sumário. Introdução 11. O que faz dos portugueses, portugueses 15

Contato: Mara Cristina Costa Fone: (31)

Família real portuguesa no Brasil

Relatórios dos Presidentes de Província possibilidades para o estudo de saúde e da mortalidade no Rio Grande do Norte (1835 a 1889)

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DA QUINTA DO CONDE Escola Básica Integrada/JI da Quinta do Conde. Departamento de Ciências Humanas e Sociais

HISTÓRIA - 1 o ANO MÓDULO 11 A UNIÃO IBÉRICA (1580)

Segundo Encontro Educação e Desigualdades Raciais no Brasil

Está correto o que se afirma somente em a) II e III. b) I. c) I e II. Página 1 de 5

Avaliação da unidade II Pontuação: 7,5 pontos

FUVEST Segunda Fase. História 06/01/2003

Apresentação do Dossiê. Múltiplos carnavais: Economia e política nas manifestações culturais populares

PORTUGUÊS O que estudar:

IDADE CONTEMPORÂNEA A ERA NAPOLEÔNICA

A PARAHYBA DO NORTE E A CONSTRUÇÃO DE UMA CIDADE MODERNA

História do Brasil. Período Colonial: escravismo e produção de riqueza Parte 11. Prof ª. Eulália Ferreira

Rodrigo Perez Oliveira 1

GOVERNO VARGAS E O EQUILÍBRIO ENTRE A PEDAGOGIA TRADICIONAL E A PEDAGOGIA NOVA

Michelle Cunha Sales. Radiografia da metrópole carioca: registros da cidade no cinema e os paradoxos da sua imagem. Dissertação de Mestrado

HISTÓRIA E GEOGRAFIA DE PORTUGAL

História Rafael Av. Trimestral 09/04/14 INSTRUÇÕES PARA A REALIZAÇÃO DA PROVA LEIA COM MUITA ATENÇÃO

PLANO DE ENSINO. [Digite aqui] Copyrights Direito de uso reservado à Faculdade Sumaré

Atividade: Proclamação da Independência Brasileira

SENTIDOS DE SENHORIO NO PÓS-ABOLIÇÃO: O PODER DO EX-SENHOR DEMONSTRADO NAS RELAÇÕES COM EX-ESCRAVOS

Transcrição:

O mais querido "fora da lei": um estudo sobre o entrudo na cidade do Rio de Janeiro (1889-1910) Débora Paiva Monteiro * Resumo: Este trabalho pretende apresentar algumas reflexões iniciais sobre as formas de resistência popular frente a tentativas de controle do Estado sobre manifestações carnavalescas no Rio de Janeiro, tomando como objeto específico o entrudo. A análise tomará como ponto de partida a proclamação da República e vai até o final da primeira década do século XX. Considerado uma das manifestações mais populares na cidade até meados do século XIX, o entrudo foi continuamente proibido pelas autoridades estatais - desde o momento de sua chegada ao Brasil no século XVII, até seu desaparecimento no século XX. A pesquisa pretende identificar as estratégias e justificativas utilizadas pelos entrudistas para a permanência da festa, principalmente no momento em que identificamos uma intensificação da coerção estatal dessa manifestação. Palavras-chave: Entrudo Carnaval Rio de Janeiro Abstract: This paper aims to present some initial thoughts about the forms of popular resistance against the attempts of the state control over manifestations in Rio de Janeiro carnival, taking as a specific object the entrudo. The analysis takes as its starting point the beginnig of Republic and goes until the end of the first decade of the twentieth century. Considered one of the most popular events in the city until the mid-nineteenth century, the entrudo was continuously prohibited by state authorities - from the moment of his arrival in Brazil in the seventeenth century until its demise in the early twentieth century. The research intends to identify strategies and justifications used by entrudistas for the stay of the party, especially when we identify an intensification of state coercion. Keywords: Entrudo Carnival Rio de Janeiro * Mestranda em História / UFF

O entrudo, brincadeira praticada no período do carnaval, foi trazido para o Brasil por colonos portugueses no alvorecer do século XVII. Não obstante sua grande popularidade, pode-se afirmar que a celebração permaneceu desde o momento em que foi introduzida no Brasil até o início do século XX, período que marcaria seu ocaso, como uma festividade fora da lei.1 Em Portugal, assim como no Brasil, o entrudo era bastante difundido e praticado entre a população, havendo registros da permanência de tal prática em algumas cidades portuguesas pelo menos até o final do século XIX (FERNANDES, 2001; PEREIRA, 2004). Contudo, não há certeza nem consenso entre os autores com relação à origem dessa prática. O entrudo foi até meados do século XIX a principal e mais difundida manifestação carnavalesca no Rio de Janeiro, tendo sido utilizado para nomear o período festivo, ou seja, para denominar o conjunto de manifestações praticadas na cidade durante o carnaval. Somente após o surgimento das Grandes Sociedades Carnavalescas, em 1855, e com apoio de campanha negativa engendrada por jornalistas, médicos, higienistas, entre outros segmentos profissionais, a expressão entrudo passaria a designar somente o jogo das molhadelas, em oposição ao carnaval (CUNHA, 2001). Segundo CUNHA (2001), em sua face mais visível o entrudo poderia ser caracterizado como o... costume de molhar-se e sujar-se uns aos outros com limões ou laranjinhas de cera recheados com água perfumada, com recurso a seringas, gamelas, bisnagas e até banheiras e todo e qualquer recipiente que pudesse comportar água a ser arremessada. Incluía também, em determinadas situações, o uso de polvilho, vermelhão, tintas, farinhas, ovos e mesmo lama, piche e líquidos fétidos, entre os quais urina ou águas servidas. Constituía o entrudo, portanto, uma oportunidade de se pregar peças a conhecidos ou passantes, oferecendo-lhes, por exemplo, acepipes providos de recheios duvidosos; momento de guerra às cartolas, tomando-se a elite, com seus trajes elegantes, como alvo de brincadeiras; ocasião, enfim, de fazer pilhérias com o fim de ridicularizar o outro, ações que fora daquele dado contexto podiam implicar em atritos e problemas. Um exemplo de incidente causado pela brincadeira fora de lugar aconteceu com o literato Olavo Bilac, em Ouro Preto, Minas Gerais. Residindo na cidade, afastado do Rio de Janeiro por problemas políticos, resolveu brincar com um fazendeiro local, furtando-lhe a carteira para que todos 1 Tomamos a expressão fora da lei emprestada de FERNANDES (2001), que de tal forma classifica o entrudo em função das reiteradas proibições estabelecidas à pratica ao longo de três séculos.

rissem de sua reação embaraçada ao perceber o acontecido. Contudo, o fazendeiro não compartilhou do espírito entrudista de Bilac, acusando-o de ladrão. O caso resultou em um duelo físico e em um convite para o escritor deixar a cidade (CUNHA, 2001). Uma característica importante do jogo das molhadelas é sua difusão por todo o território e por todas as classes sociais, tendo sido praticado por atores sociais diversos, desde os escravos até a família imperial (SOIHET, 1998). PEREIRA (2004) em seu Carnaval das Letras, cita em nota alguns trabalhos que falam sobre a prática da brincadeira em Santa Catarina (COLAÇO, 1988), São Paulo (SIMSON, 1984) e Bahia (FRY, 1988). Pesquisas mais recentes chamam ainda a atenção para registros sobre o jogo em Minas Gerais (ARAÚJO, P., 2008). Relatos de época contribuem ainda para uma caracterização mais detalhada das feições tomadas pelo entrudo enquanto manifestação carnavalesca. BINZER (1980) - citada por PEREIRA (2004) - uma educadora alemã que residia no Rio de Janeiro, ao sair às ruas da cidade alguns dias antes do carnaval para ir ao dentista teria sido atingida por entrudistas. Nesta ocasião, escreveria a uma amiga descrevendo a cena: Cercavam-me rostos onde se refletia o atrevido contentamento de quem vê diante de si a manifestação de uma fúria impotente: senhores elegantes, mulatinhos sujos, caixeiros vadios e até senhoras nas sacadas pareciam transformadas em demônios, rindo-se todos juntos como se tivessem conspirado contra aquela pobre infeliz torturada pela dor de dentes, alvejando-a com tais objetos resistentes e encharcantes. O relato nos permite perceber a variedade de personagens que participavam do folguedo. Contudo, deve-se atentar para o fato de que talvez, aos olhos de um estrangeiro, a brincadeira tivesse uma aparência uniforme, como se fosse permeada pelo mesmo significado por todos os jogadores. Contudo, tal unidade parece ser meramente ilusória. Havia uma diferenciação clara entre o entrudo familiar, praticado pelas famílias abastadas da Corte, e o praticado pela população pobre do Rio de Janeiro. Tal diferença se dava em diversos níveis: o material utilizado no jogo por cada classe social, por exemplo, não era o mesmo. A elite utilizava limões-de-cheiro e bisnagas, enquanto a plebe, que não tinha condições de produzir em casa seu arsenal, munia-se dos artefatos mais baratos e mais acessíveis, utilizando tipos diferentes de líquidos: água suja, café, groselha, tinta, lama e até urina (PEREIRA, 2004). O espaço de cada um desses segmentos para realizar a sua brincadeira também não era o mesmo. A cena de senhores e escravos convivendo, ou melhor, entrudando-se, não era

comum. Os escravos tinham participação no jogo das elites, servindo de apoio à brincadeira, provendo seus senhores do material necessário para o jogo. Assim a Corte praticava um entrudo doméstico, familiar, no interior de suas residências (CUNHA, 2001). A população pobre e os escravos, por sua vez, ocupavam as ruas do Rio de Janeiro como espaço próprio de exercício do jogo. Construíam, de tal modo, uma ocasião para além da folga e do divertimento, (...) inverter sinais, e rir dos brancos. (CUNHA, 2001). Portanto, por mais difundida que fosse e praticada por boa parcela da população carioca em seus diversos níveis, a brincadeira muito longe de ter um caráter unificador, era o retrato da ritualização da desigualdade, sublinhando o papel social destinado a cada agente (PEREIRA, 2004). A presença e, mais do que isso, a predileção feminina por esta manifestação carnavalesca é, segundo CUNHA (2001), consenso entre os autores, bem como uma das razões que ajudam a explicar a longevidade do entrudo. Ao tratar da participação das mulheres neste tipo de festejo, a autora chama a atenção para publicações na imprensa carioca de crônicas que faziam alusão a relacionamentos amorosos e casamentos iniciados durante o entrudo, alertando para a importância da iniciativa feminina em tais processos. Ela usa como exemplo da simpatia feminina pela brincadeira um texto publicado num periódico, o Jornal das Senhoras, em 1852, em que a colunista apresenta diversos argumentos contra os defensores do carnaval espelhado no modelo europeu. No sentido contrário, destaca ainda textos produzidos no âmbito das Grandes Sociedades, destinados especificamente às mulheres e apelando para sua intervenção no sentido de acabar com o entrudo, uma vez que era justamente entre elas que a brincadeira era mais fortemente apreciada. Deve-se ressaltar, por último, que cabia fundamentalmente às mulheres, cerca de dois meses antes do carnaval, a responsabilidade das atividades de preparação do folguedo, como a produção dos artefatos a serem utilizados. A fabricação caseira de todo o arsenal utilizado no entrudo funcionava ainda como uma possibilidade de renda extra para as famílias mais pobres, que vendiam seus produtos pelas ruas da cidade. Entretanto, não era somente esse comércio informal que se interessava pelas mercadorias destinadas ao entrudo. Não são raros os registros de reclames em jornais feitos por diversas casas especializadas na venda de artigos para o carnaval, principalmente a partir da década 1880. De fato, não apenas anunciavam produtos para o jogo como também... sofisticavam a mercadoria: bisnagas francesas, limões-de-cheiro enfeitados com papel

dourado (...) cuja aquisição certamente servia para estabelecer novas hierarquias no interior do entrudo (CUNHA, 2001). Também esta ação dos comerciantes, oferecendo a cada ano novos materiais relativos ao entrudo, pode ter servido como uma contribuição para que a brincadeira perdurasse por tanto tempo, a despeito de reiteradas proibições, e para seu crescimento no século XIX. As casas comerciais regulares chegaram a ser vítimas diretas da ação policial, que por vezes chegou a invadir estabelecimentos e apreender produtos relacionados à brincadeira (CUNHA, 2001). Ao longo do século XIX, o entrudo ganhou ainda outra característica interessante: sua vinculação à imagem da monarquia. Tal fato se dava pelo conhecido gosto da família imperial por sua prática, sendo comuns os festejos tanto em Petrópolis quanto no Paço Imperial (CUNHA, 2001; SOIHET, 1998). Conta-se que a fama da simpatia da família imperial pelo entrudo era tão conhecida que a atriz Stella Sezefreda (futura esposa de João Caetano) em 1825, assistindo ao cortejo de D. Pedro I, teria atirado limões-de-cheiro sobre o monarca, sendo presa logo em seguida (CUNHA, 2001). Apesar de toda a sua popularidade, logo em 1604, apenas quatro anos após o primeiro registro do jogo no Brasil, o entrudo foi considerado como uma prática ilegal (ARAÚJO, H., 1991). A partir daí, ano após ano, foram expedidos alvarás e portarias proibindo o jogo das molhadelas: 1604, 1608, 1612, 1685, 1686, 1691, 1734, 1783, 1784, 1848 (ARAÚJO, H., 1991; CUNHA, 2001; FERNANDES, 2001). A despeito de todos estes diplomas legais proibitivos, das sucessivas iniciativas estatais de repressão e controle, a brincadeira se manteve durante o período colonial, estendeu-se por todo o Império e ainda pôde ser verificada nas primeiras décadas da República. Em 1904, por exemplo, o prefeito Pereira Passos teria feito um apelo aos diretores dos ensinos médio e superior para que conclamassem os jovens cariocas a abandonarem o entrudo (CUNHA, 2001). Já em 1907, quase no fim da primeira década do século XX, os editais e Códigos de Posturas municipais ainda faziam referência à brincadeira, numa indicação de que essas intervenções não eram atendidas pela população (CUNHA, 2001). Cabe a indagação sobre os motivos e circunstâncias que permitiram que, não obstante a clara e continuada oposição legal, o entrudo tenha podido desfrutar de tamanha longevidade. Foi no período republicano que se intensificou a repressão ao entrudo, tendo sido especialmente na década de 1890 abundantes as proibições legais e as ações policiais (CUNHA, 2001). Tal tendência encontrava eco na imprensa carioca, que engendrou uma

campanha contra o entrudo através de artigos e crônicas de alguns dos mais prestigiosos literatos do período. É importante ressaltar, contudo, que a campanha negativa não foi exclusiva da imprensa. No final do século XIX, por exemplo, uma série de profissionais voltou sua atenção para as ruas e para o modo de viver da população que a ocupava: médicos, higienistas, cientistas, urbanistas passaram a preocuparem-se com a ordenação urbana, numa tentativa de conferir a cidade do Rio de Janeiro uma aura civilizada (PEREIRA, 2004). A virada do século XIX para o XX, enfim, assistiu a um processo civilizatório e modernizador, Nesse contexto, assiste-se a um movimento de disciplinação rígida do espaço e do tempo de trabalho, estendendo-se seus efeitos a todas as esferas do universo social, a partir de uma estreita vigilância sobre a rua, a religiosidade e o lazer. (SOIHET, 1998). A burguesia emergente na Belle Époque carioca, entusiasmada com os valores e modelos parisienses, ansiava por estabelecer na cidade os mesmos padrões estéticos, morais e culturais reinantes na Europa. Havia o desejo de alçar o Rio de Janeiro às veredas do progresso e da modernidade. Para isso, tornava-se fundamental, enfim, eliminar os hábitos grosseiros e vulgares, frutos da herança lusa, negra e indígena, símbolos do atraso e do arcaísmo. [...] Urgia eliminar o velho entrudo, trazido pelos colonizadores e extremamente popular, mas que não passava de uma festa grosseira, desabrida festança popular, onde se bebia e se comia intemperadamente, selvático deleite de homens que cantavam, dançavam e se divertiam com brutalidade (...). (SOIHET, 1998) Em contrapartida a toda investida em oposição ao entrudo, a festa se manteve presente nas ruas do Rio de Janeiro até os primeiros anos do século XX. A imprensa, inconformada com a ineficácia das posturas, códigos, editais e proibições conclamava o poder público a agir mais enfaticamente e fazer cumprir a lei. (CUNHA, 2001; PEREIRA, 2004) Desde meados da década 1850, quando a campanha negativa em relação ao entrudo na imprensa toma fôlego, torna-se notório o caráter paradoxal do discurso jornalístico: ao mesmo tempo em que as crônicas anunciavam a morte do entrudo, enaltecendo o verdadeiro carnaval o desfile das Grandes Sociedades os noticiários destacavam todos os anos os distúrbios por ele causados durante os festejos carnavalescos. Segundo CUNHA (2001) as descrições e comentários da imprensa não deixam nenhuma dúvida: a forma tão sonhada do Carnaval dos préstitos espirituosos das Grandes Sociedades, pela qual se conclamava o apreço popular e se reivindicava a primazia foliona, estava longe de tornar-se a forma exclusiva ou mesmo a principal dos dias de Momo. Convivia nas ruas com o entrudo, em suas manifestações modernas mas sobretudo

em seu viés vulgar, com a guerra às cartolas, os insípidos zé-pereiras e as danças de negros, que se intercalavam sem cerimônias entre os préstitos das sociedades mais refinadas; estas cruzavam nas ruas com mascarados avulsos e desclassificados, como diabinhos e dominós, velhos e princeses, que ainda circulavam, alheios aos apelos da civilização carnavalesca, a perguntar em voz de falsete: Você me conhece?. Para os adeptos do espírito, uma verdadeira cruzada parecia necessária a fim de derrotar os infiéis de Momo. Frente às considerações apresentadas, percebe-se que o entrudo, mesmo com todas as proibições que sofreu e diante das sucessivas campanhas negativas mantinha-se presente na sociedade carioca ainda no início do século XX. As razões para o seu desaparecimento ainda carecem de investigação mais aprofundada, mas não parecem ter sido resultado único e direto das ações proibitivas do Estado. Assim, diante do recrudescimento das investidas policiais, acompanhada de uma grande campanha na imprensa e do apoio da intelectualidade carioca, nossa problemática recai sobre as justificativas apresentadas pela população para a permanência da festa. Algumas hipóteses para explicar a longevidade da manifestação já foram levantadas pela historiografia: as inovações tecnológicas nos apetrechos utilizados, conferindo de certa forma uma modernização na maneira de brincar; a preferência feminina pelo jogo; o gosto da família imperial e ainda a separação dos espaços de atuação da elite e da população menos abastada. Contudo, nenhuma dessas perspectivas interpretativas privilegia o discurso da plebe, camada da população que sofreu mais diretamente com as investidas repressivas do Estado. Nossa proposta é de dar voz a estes atores sociais, buscando suas motivações e justificativas para manterem vivas as práticas entrudistas, mesmo em um contexto hostil e marcado pela repressão policial. Para isso, inicialmente, pretendemos analisar os processos criminais de pessoas presas pela prática do entrudo, assim como as páginas policiais de dois jornais Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil - com a intenção de identificar nesse conjunto documental o discurso dos entrudistas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Hiram (coord.). Memória do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1991. ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Folganças populares: festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGF/UFMG; Fapemig; FCC, 2008.

COLAÇO, Thais Luzia. O carnaval do desterro: século XIX. Dissertação de mestrado em história, Centro de Ciências Humanas, UFSC, 1988, apud PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. CUNHA, Maria Clementina Pereira da. Ecos da folia: uma história social do Carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001. FRY, Peter et al. Negros e brancos no carnaval da Velha República. In: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, apud PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992. SIMSON, Olga Von. A burguesia se diverte no reinado de Momo: sessenta anos de evolução do carnaval na cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. São Paulo, 1984, apud PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998.