O FILME A PARTIDA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A MORTE

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Transcrição:

1 O FILME A PARTIDA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A MORTE José Carlos de Freitas Professor de Filosofia do Centro Universitário Unirg Encarar a morte com olhos generosos. Esse é o comentário do crítico e ator Rodolfo Lima, a respeito do filme A partida. O filme conta a história de Daigo, violoncelista desempregado, que, diante da necessidade de sustentar a família, aceita a oferta de emprego para o ofício de preparador de cadáveres. Um ofício que, na história particular de cada cultura, sempre foi recoberto por uma semântica especial, distinta e quase sempre norteadora da própria vida. As artes, de forma geral, abordaram a morte por diversos prismas. Pela dor, pelo medo, pela culpa, pelo pecado, pelo poder, pela causa, pelo direito, pelo prazer e também pelo descaso. A filosofia também faz da morte uma temática central. Quando ela aborda a morte, pelo prisma da metafísica, localiza-a no âmago do ser. Porque os seres são causados. Como causados, eles são finitos. Todos os seres são tangidos pela finitude. Todos cumprem uma trajetória fatal: entram em cena, dão seu espetáculo, encerram o show e as cortinas se fecham. Espetáculo de única exibição. Nunca será algo mais do que sua estréia. A morte significa, para a históra de cada um, que a vida só tem uma chance e nenhuma outra oportunidade. A vida não se repõe, não se repete. Somos mortais. A filosofia sempre operou com certas categorias sobre a morte. Uma delas é a de que só ao homem foi reservada a consciência do próprio fim. Ele seria o único animal da face da Terra a ter consciência de que recebeu a vida para levá-la a seu resumo, desprovido da certeza do momento exato deste desfecho. Sabedor de que vai morrer, ele também seria o único a fazer da morte um problema existencial. Seria o único a se angustiar diante do fim. E o único a temê-lo. Rousseau, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, já delegava ao homem primitivo tal reconhecimento, inclusive como ponto distintivo entre animalidade e humanidade: Os únicos bens que conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme, a dor e a fome. Digo a dor e não a morte, pois jamais o animal saberá o que é morrer, sendo o conhecimento da morte e de seus terrores uma das primeiras aquisições feitas pelo homem ao distanciar-se da condição animal. 1 Hoje, a filosofia é um tanto cética em relação a estas afirmações. Temos dúvida se a morte se constitui notícia apenas para o homem. Mesmo Rousseau, que a princípio endoça essa crença, quando reflete sobre a piedade, no mesmo discurso, acrescenta: 1 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Os Pensadores, XXIV. São Paulo: Victor Civita, 1973, p.250.

2 [...] comumente se observa a repugnância que têm os cavalos de pisar num ser vivo. Um animal não passa sem inquietação ao lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns que lhes dão uma espécie de sepultura, e os mugidos tristes do gado entrando no matadouro exprimem a impressão que tem do horrível espetáculo que o impressiona. 2 No entanto, se não se atribui, com segurança, a exclusividade da consciência da finitude ao homem, a filosofia ostenta outra certeza: o homem é o ser que mais se angustia e mais significads tece diante da morte. Ele tem medo da morte. E esse é problema mais importante de sua vida. Por isso, a filosofia atesta que todos os outros problemas, para os quais buscou as mais variadas soluções desde as formas de seleção e provimento de comida, remédios às tecnologias do conforto ou da proteção, como as tecnologias de guerra estão imbricados no que a morte representa. A lógica capitalista não estaria fora desse programa. A socialista também não. Nossa luta pelas condições dignas de vida se justificam, na verdade, pela certeza de que a vida não se repete. Ela desliza por um fluxo temporal linear, onde, o que quer que faça, será sem perdão. O feito, feito fica. Falamos muito de uma vida dialógica, de uma vida negociada, permeada por escolhas. Mas com a morte não tem diálogo. Ela não é democrática. A única democracia da morte é a fatalidade distribuída a todos, ao acaso e a prazo, sem aviso prévio. Ela abarca a todos. Por isso, o senso comum cunhou o ditado A morte iguala a todos e não distingue ninguém. Não há ricos nem pobres para a morte, porque ricos e pobres estão, em condição, destinados a ela. Isso vale, apesar do contraponto de Mario Quintana, no poema Desigualdade: A morte não iguala ninguém: há caveiras que possuem todos os dentes. 3 Com dentes ou sem dentes, ela produz os cadáveres e suas caveiras. Por saber da finitude, a filosofia grega antiga atribuiu um privilégio enorme ao que ela entendeu como permanente no homem: a alma. Sócrates, Platão e Aristóteles dedicaram-se ao problema. Os três fizeram questão de dizer que o homem é uma composição de alma e corpo. Uma parte do homem, a racional, é intocável pela morte. Outra parte, perecível, material, corpórea, é substância efêmera. Emprestada ao homem, sob sua responsabilidade, mas nunca de fato dele. Por isso, no diálogo Fédon, o conteúdo possível e consolador do condenado Sócrates é postular que o corpo nada mais é que transporte da alma e, ao mesmo tempo, sua prisão. O sábio é aquele que se concentra no que é eterno, que deseja e ama o eterno, ao mesmo tempo cuidando para que a materialidade do corpo não venha a comprometer a vida sublime da alma. A morte representa, na cultura grega, o fim de um ciclo encarnado. As coisas que passam são pastoreadas pelos processos de geração e corrupção. O filme A partida oferece outros elementos sobre o morrer que a filosofia contemporânea tem feito questão de salientar. O primeiro ponto de reflexão é a serenidade diante da morte. O que fazer com o nosso medo de morrer? Ou com o terror que a morte nos impinge? Luc Ferry, filósofo francês contemporâneo, define a filosofia como soteriologia, cujo papel principal é disputar com a religião a salvação do homem. A filosofia em seu verdadeiro traje: a sabedoria busca, pela razão, consolar o homem da angústia que a finitude lhe acarreta. Enquanto a religião promete salvação por meio 2 ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Os Pensadores, XXIV. São Paulo: Victor Civita, 1973, p.259. 3 QUINTANA, Mario. Caderno H. São Paulo: Globo, 2006, p.377.

3 de um Outro, a filosofia é o instrumento que homem arranja por sua própria conta. Nesse sentido, diz o autor, quanto mais atéia for a filosofia, mas capacitada será na oferta do consolo. 4 Um exemplo perfeito dessa sabedoria é a filosofia estóica que teve início, no século II a.c., na Grécia, e se prolongou até o século II d.c., em Roma. Contam, entre seus autores, Sêneca, Marco Aurélio, Epíceto e Cícero. Todos abordam a morte. Mas o mais insistente foi Sêneca. Dedicou ao tema a carta a Paulino Sobre a brevidade da vida, a carta ao irmão Gálio Da vida feliz e um conjunto de cartas a Lucílio, reunidas com o título Aprender a viver. Para o filósofo, o apego à vida não é sabedoria, porque desvitua o seu real valor. A primeira coisa que um homem deve fazer é tomar consciência de que a vida tem justamente esse caráter provisório e evitar de lamentar o seu prazo, sob pena de perder o melhor que ela pode oferecer. Ter consciência da morte deve concorrer para o aproveitamento correto da vida. Então a morte possui uma pedagogia própria, não em razão de si, mas da qualidade daquilo que ela pretente completar, resumindo. Escreve Sêneca: Existe alguém que chore por algo que vai acontecer? Aquele que lamenta a morte de alguém lamenta ter nascido. Uma mesma lei rege a todos nós. Quem nasceu deve um dia morrer. Os tempos podem ser diferentes, mas o fim é o mesmo. O espaço compreendido entre o primeiro e o último dia é variável e incerto. Se levas em conta as doenças, é longo mesmo para as crianças. Se levas em conta a rapidez, é curto mesmo para os velhos. Não existe nada que não seja tão escorregadio, enganoso e imprevisível como qualquer tempestade. Tudo vai, tudo vem, tudo muda ao capricho do destino e, em meio a tudo isso, nada é mais certo que a morte. Apesar de tudo, todos se queixam de um acontecimento para o qual sempre foram avisados. 5 Quando os estóicos, como Sêneca, acentuam a relativização do medo da morte, eles o fazem com o único propósito de levarmos a vida dentro de uma sabedoria que torne a vida como algo digno de ser resumido, porque é o único legado que um ser humano pode deixar aos que ficam: a vida, no que ela foi. Segundo esses pensadores, o problema em relação à morte está no tipo de vida que se leva. A vida que, em si mesma, está desviada porque foi tomada por um desejo de futuro incerto. Escreve Sêneca: A vida se divide em três períodos: aquilo que foi, o que é e o que será. O que fazemos é breve, o que faremos, dúbio, o que fizemos, certo. 6 Só temos, de certo, a história que construímos. Mas a história só é feita com a sucessão dos momentos presentes. A nostalgia do passado e a esperança do futuro, como ressalta Luc Ferry, são os grandes corruptores da felicidade humana. A vida é atual, ou seja, processada no presente. O medo da morte não é outra coisa do que a projeção de um tempo futuro, cujo controle não repousa nas mãos do homem. Se a morte é uma fatalidade, a única atitude sábia, conveniente ao homem, é a serenidade diante dela e tratar de levar a vida na dignidade possível. Segundo Sêneca, o motivo é que somos privados de todo bem e sofremos por ter desperdiçado a vida. Não 4 FERRY, Luc. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. 5 SÊNECA, Lúcio Aneo. Aprender a viver. Porto Alegre: LP&M, 2008, p.107. 6 SÊNECA, Lúcio Aneo. Da brevidade da vida. Porto Alegre: LP&M, 2008, p.49.

4 sobrou nada; ela passou, foi jogada fora. 7 Preocupados com a morte, esquecemo-nos da vida que só existe, de fato, no momento: Um único dia é o tamanho da vida, conclui Sêneca. 8 Outro elemento que o filme A partida atualiza é a reverência para com a morte. Trata-se do mesmo respeito que devemos à vida. Não o respeito acessorado pelo pavor de morrer, mas pelo vínculo que ela mantém com a vida. Heidegger enfatizou muito bem esse vínculo ao considerar que a possibilidade da pre-sença ser-toda supõe o ser-para-amorte. Também a morte se processa por uma cotidianidade impessoal. A reverência que lhe devemos é o reconhecimento do que ela, de fato, representa. Para Heidegger, como resumo ela significa decadência: É existindo que a pre-sença morre de fato, embora, de início e na maior parte das vezes, o faça no modo da de-cadência. 9 Como cotidianidade impessoal, o morrer funda-se na cura. A morte assume toda a semântica de descanso, de alívio. Neste caso, a reverência pela morte é todo um respeito pela vida do outro, que podia ter se processado em múltiplas estradas, mas que ali só apresenta uma. Ainda Heidegger, Cotidianamente, faz-se a experiência do morrer dos outros. 10 A reverência para com a morte deveria levar os homens a se situar como de idênticas condições e, daí, lucrar dela um maior significado para suas vidas. Outro elemento que o filme A partida oferece à reflexão é o empobrecimento ou esvaziamento do significado da morte em nossa sociedade. Empobrecimento que nos embota ao engajamento em prol das melhorias da vida de todos. Assim, vamos nos tornando insensíveis aos dramas anônimos de vidas sustentadas em mortes paulatinas, em sofrimentos que seriam evitáveis. Conforme Freud, Suportar a vida continua a ser o primeiro dever dos vivos. 11 A morte deveria nos levar a uma reavalição de nossos compromissos com a alteridade. A banalização da morte frequentemente leva à precarização da vida. Isso em dimensões pessoais, sociais e políticas. O esvaziamento de sentido da morte leva a outo elemento, talvez central do filme, que é o enlutamento ou o sentimento compassivo diante da dor dos outros. Compaixão que deve ser fruto do sentimento de pertença ao gênero humano, como sujeitos da comunidade humana. A filosofia tem denunciado, junto com a banalização da morte, o abandono que destinamos aos moribundos. Norbert Elias fala justamente de uma solidão dos moribundos. 12 Segundo ele, no curso nítido surto do processo civilizador que teve início há quatrocentos ou quinhentos anos, as atitudes das pessoas em relação à morte e a própria maneira de morrer sofreram mudanças, junto com muitas outras coisas. Para ele, antigamente, morrer era uma questão mais pública do que hoje. Isso porque era menos comum que as pessoas estivessem sozinhas. O grau de individualismo era muito mais relativo que nossa época. Uma das dificuldades de nosso tempo é justamente termos transformado as notícias da morte de entes queridos num tabu semelhante ao da pornografia. Piora mais se estas notícias devem ser transmitidas às crianças. Antigamente, tínhamos pudor em falar de sexo para as crianças. Hoje, falamos fracamente de sexo, mas relutamos muito quando se trata da morte. Essa nossa dificuldade é acompanhada de outra dificuldade: o trato necessário com os que aguardam a morte num leito de hospital e ainda com os defuntos. Este é um traço da civilização ocidental, conforme acrescenta Elias, Nunca antes na história da humanidade foram os moribundos afastados de maneira tão asséptica para os bastidores da vida social; nunca antes os 7 SÊNECA, Lúcio Aneo. Aprender a viver. Porto Alegre: LP&M, 2008, p.27. 8 SÊNECA, Lúcio Aneo. Aprender a viver. Porto Alegre: LP&M, 2008, p.21. 9 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo II. Petrópolis: Vozes, 2002, p.33-34. 10 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo II. Petrópolis: Vozes, 2002, p.40. 11 FREUD, Sigmund. Introduçã ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. Obras completas 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.246. 12 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

5 cadáveres humanos foram enviados de maneira tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de morte à sepultura. 13 Neste mesmo sentido, Jean Baudrillard observa que a Modernidade se caracteriza justamente por demarcação de territórios, separando o Humano do Inumano. Inumanos são todos aqueles que o processo relegou à margem: a infância, os idosos, os pobres, os subdesenvolvidos, os perversos, os doentes, os loucos, mulheres, transexuais, etc, folclore da excomunhão com base numa definição cada vez mais racista do humano normal. A modernidade, elegendo o humano, proscreve não poucos. Escreve Baudrillard: No entanto, há uma exclusão que precede todas as outras, mais radical do que as dos loucos, das crianças, das raças inferiores, uma exclusão que as precede a todas e lhes serve de modelo, que está na própria base da racionalidade da nossa cultura: a dos mortos e a da morte. Das sociedades selvagens às sociedades modernas, a evolução é irreversível: pouco a pouco, os mortos deixam de existir. São rejeitados para fora da circulaçao simbólica do grupo. Não são seres completos, parceiros dignos da troca; e faz-se-lhes ver tal, proscrevendoos cada vez mais do grupo dos vivos, da intimidade doméstica no cemitério, primeiro reagrupamento ainda no seio da aldeia ou da cidade, depois primeiro gueto e prefiguração de todos os futuros guetos, rejeitados cada vez mais longe do centro para a periferia, e finalmente para nenhum lado, como nas novas cidades ou metrópoles contemporâneas, onde já nada está previsto para os mortos, nem no espaço físico nem no mental. 14 Da mesma forma que, em Elias, uma não-abertura para os que estão para morrer é indício de não-disponibilidade para uma vida verdadeira, Baudrillard afirma que se já não existem cemitério, é porque as cidades modernas assumem todas a sua função: são cidades mortas e cidades de morte. 15 Marie de Hennezel, uma psicóloga que liderou por dez anos um grupo de assistência e apoio a pacientes terminais, escreve que aqueles que vão morrer nos ensinam a viver. Também ela empenha palavras no sentido de denunciar nossa resistência à companhia dos que, sofrendo, nos lembram de nosso fim: Oculta-se a morte como se ela fosse vergonhosa e imunda. Não se vê nela senão horror, absurdo, sofrimento penoso e inútil, escândalo insuportável, enquanto ela é o momento culminante de nossa vida, sua coroa, o que lhe confere sentido e valor. Permanece um imenso mistério, um grande ponto de interrogação, que carregamos no mais íntimo de nós mesmos. 16 13 ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.30-31. 14 BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte II. Lisboa: Edições 70, p.10-11. 15 BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte II. Lisboa: Edições 70, p.12. 16 HENNEZEL, Marie. A morte íntima. Aparecida-SP: Idéias & Letras, 2004, p.11.

6 Ainda: Os que têm o privilégio de acompanhar alguém, nos últimos instantes de vida, sabem que ele entra num período de tempo muito íntimo. A pessoa, antes de morrer, tentará depositar naqueles que a acompanham o essencial de si mesma. Por meio de um gesto, de um olhar, tentará dizer o que verdadeiramente importa e o que não pôde ou não soube dizer. A morte, a que vivenciaremos um dia, a que atinge nossos parentes e amigos, talvez seja o que nos leve a não nos contentarmos de viver à superfície das coisas e dos seres, a entrar em sua intimidade e profundidade. 17 O filme A partida, apresentando todos esses elementos, poderia acrescentar um último: nosso desejo de imortalidade. Schopenhauer diz que se a consciencia individual não sobrevive à morte, sobrevive, ao contrário, aquilo que unicamente se rebela contra ela: a Vontade. O que vive não quer morrer jamais. Aliás, a mortalidade é coisa inaugurada no reino da vida. Porém, não era o seu destino. Do ponto de vista biológico, ela surge com com a troca intercelular no processo de geração. O princípio de imortalidade, de fato, é coisa corriqueira no mundo, a exemplo das bactérias e fungos que se reproduzem pela replicação. A introdução da morte veio com o sexo como condição da procriação. Pelo privilégio da multiplicidade e da profusão surpreendente de seres irrepetíveis no mundo, pagamos um alto preço: a morte. Mas o desejo de sermos imortais está muito distante de ser um projeto abandonado. Buscamos a morte no passado. Buscamos obsessivamente a sua debelação final. Enquanto não chegamos lá, ficamos a imaginar a coisa estranha que seria um mundo onde a morte não existisse. 18 Anexo CRÍTICA - A PARTIDA Rodolfo Lima Jornalista, ator e crítico A morte é sempre um tema caro ao cinema. Por mais que procuremos entendê-la, quando ela nos surpreende com a sua "visita" ficamos sem saber o que pensar. Afinal a morte acaba com todas as certezas que supúnhamos ter. O japonês "A Partida" (2008) questiona a morte por outro ângulo, a do preparador de cadáveres. Daigo (Masahiro Motoki) é um violoncelista que vendo a orquestra onde tocava se desmanchar resolve voltar para sua casa e arrumar outro emprego, recomeçar. Eis que arruma um emprego de preparador de defuntos. Quando a pessoa morre, seus familiares 17 HENNEZEL, Marie. A morte íntima. Aparecida-SP: Idéias & Letras, 2004, p.11. 18 Conferir, nesse sentido, o romance As intermitências da morte de José Saramago.

7 contratam o serviços de Daigo e seu patrão, para deixar o morto mais bonito e mais bem arrumado para a passagem de mundos que a morte propicia. É muito metafórica e simbólica a morte no filme de Yojiro Takita. O diretor abocanhou o Oscar de melhor filme estrangeiro, pois além da morte seu filme traça paralelos com outros temas como a relação que desenvolvemos com a comida, e porque não com as pessoas mortas, o preconceito com quem trabalha nesse ramo e a necessidade de todo mundo de rever a própria vida, a partir da morte. Talvez essa seja a maior função para os que ficam, rever padrões, atitudes, escolhas. O filme proporciona ao personagem esse mergulho nos reais significados da vida e vai oferecendo ao expectador uma sensação semelhante. Tudo com muita sutileza e sensibilidade para que se tenha tempo de digerir o ocorrido. Não é choroso o tratamento dado ao tema, é emocional, portanto mais profundo. O filme não deixa de ser uma experiência compartilhada entre Daigo e o público. Ao se conectar com a morte, Daigo enfrenta o preconceito da mulher, fica só e se dedica a uma profissão desprezada por muitos. As imagens que Takita oferece de Daigo tocando seu violoncelo tendo como fundo a paisagem japonesa reflete como a própria arte do protagonista foi "contaminada" por essa experiência.a sensação é que a morte é algo belo e que merece ser reverenciada. Afinal não há o que fazer quando ela ocorre. E se a morte é uma passagem de mundos - como defende algumas religiões - porque não preparar o ente querido para que este chegue a outro lugar melhor? A morte revela a matéria dispensável que é nosso corpo. O diretor não se furta de certa ironia nas cenas onde questiona a relação que estabelecemos com os animais que comemos nas refeições, criando uma associação bizarra - e pertinente de que também somos como vermes, pronto a devorar um "corpo" morto. Afinal, vacas, bois, galinhas, porcos, frangos e aves em geral servem de alimentos - nutritivos - para os vivos. No Japão onde se come carne crua, imagina o impacto da metáfora? Que serve também para qualquer apreciador de carne. Por aqui, o corpo também é aparentemente arrumado, maquiado e preparado para que no funeral esteja mais apresentado. O que o filme mostra é uma tradição (o que se supõe pelo filme) japonesa que parece tornar mais bonita e menos impactante a morte, ao propor aos familiares verem o corpo do ente querido manipulado e preparado, supõe-se que o impacto talvez seja menos doloroso. Simbólico, por vezes engraçado, sensível e emocionante, "A Partida" proporciona diferentes mergulhos no conturbado universo da morte. Daigo descobre em sua vida as pequenas mortes inevitáveis no percurso de sua trajetória e a necessidade de renascimento que nos é proporcionado a cada virada de rumo na nossa vida. Oportunidades essas geralmente desperdiçadas, dado a nossa sempre ineficiente disposição a encarar a morte com olhos generosos.