Guilherme de Berredo-Peixoto a Departamento de Física, Universidade Federal de Juiz de Fora Juiz de Fora, MG RESUMO

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IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 1 A PROPOSTA PAIDEIA E A EDUCAÇÃO ESPECIALIZADA Guilherme de Berredo-Peixoto a Departamento de Física, Universidade Federal de Juiz de Fora Juiz de Fora, MG 36036-330 RESUMO A proposta Paideia é um projeto educacional baseado nos ensinamentos do filósofo e humanista americano Mortimer Adler, que visa a uma educação integral baseada na leitura de obras clássicas que constituem as fontes culturais da civilização ocidental. O processo de leitura e a capacidade de raciocínio original são aspectos centrais abordados pela proposta. Neste trabalho, mostramos que esse projeto de educação integral não deve ser colocado em oposição à educação especializada, mas deve ser pensado como seu ingrediente necessário e fundamental. Essa demanda atinge proporções alarmantes para o ensino de Física, e é precisamente neste ramo que a contribuição de Adler pode proporcionar uma injeção de qualidade intelectual ímpar. Palavras-chaves: Educação especializada e integral, proposta Paideia, ensino de física, interdisciplinaridade. ABSTRACT Paideia proposal is an educational project, which can be considered as a practical development of theories formulated by philosopher and humanist Mortimer Adler, with a solid and integral education as a byproduct. The great books responsible for the cultural level of the occidental civilization are fundamental pieces to the realization of this educational theory, with also a singular growing of individual capacity of original thought. In this paper, we argue that this project (integral education) should not be placed in opposition to the specialized education (which is necessary to modern society); instead it is a necessary step towards a better education. We think that the Adler s program is seriously required to improve scientific education. 1. INTRODUÇÃO A proposta Paideia é um projeto de educação integral, cujas raízes teóricas surgiram na década de 40, e que propõe princípios básicos norteadores da educação nos EUA. O maior defensor e expoente dessa linha de pensamento foi o filósofo americano Mortimer J. Adler, que ao longo de sua vida desenvolveu uma interessante formulação teórica e sistemática sobre o aprendizado, a E-mail: guilherme@fisica.ufjf.br

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 2 especialmente do processo da leitura. O projeto Paideia é executado por uma organização norteamericana sem fins lucrativos, iniciado em algumas universidades americanas, em especial na Universidade de Chicago. Um elemento central da proposta é a interdisciplinaridade. Normalmente esse conceito está associado a aspectos confinados a interfaces entre duas ou mais áreas do conhecimento. Aqui, este conceito está relacionado a todas as disciplinas, e ao mesmo tempo a nenhuma em particular, pois nessa perspectiva, o conhecimento é concebido como coisa única e indivisível 1. Nesse sentido, a proposta Adleriana é um projeto de educação integral, e consequentemente não está vinculado a determinada disciplina específica. Alguns de seus defensores são fortes opositores da educação especializada, o que dá margem à equivocada idéia do antagonismo entre educação integral e educação especializada. Pretendemos mostrar que, pelo contrário, a educação integral (na perspectiva de Adler) é uma etapa necessária à uma educação especializada de maior qualidade. De fato, os objetivos de ambos os programas são bem distintos. A educação especializada pretende munir o indivíduo de habilidades específicas que são necessárias à execução de tarefas que correspondem à sua profissão. Ela prepara o indivíduo para o mercado de trabalho. Podemos prescindir da educação especializada? Obviamente não. Ela é essencial para as sociedades modernas, com seus intrincados mecanismos econômicos, seus sistemas jurídicos, e complexo aparato tecnológico e cultural. Por outro lado, a educação integral se ocupa da preparação de condições para qualquer aprendizado; não é um aprendizado propriamente dito, mas um sistema integrado de aprendizados desprovido de sentido prático imediato: o único fim é a formação de uma mentalidade munida de raciocínio original e imersa num cenário de alta cultura (é o ambiente próprio para o processo genuinamente criativo). O mercado de trabalho não possui sentido algum para a educação integral. É evidente que as pessoas devem constantemente receber educação específica, mas também é interessante notar que só a educação integral possui o poder de melhorá-la de um modo realmente diferenciado. Afinal, precisamos melhorar a educação específica? Certamente sim. Essa necessidade é imperativa, particularmente no ensino de física (e ciências de modo geral). No Brasil, praticamente não existe trabalho em periódico científico sobre esse tema. Por outro lado, o leitor pode verificar alguns textos isolados que defendem a concepção Adleriana da educação integral (veja por exemplo as refs. [2-4]. 1 O leitor pode identificar aqui um aspecto da concepção holística do mundo. Veja por exemplo [1], cujo enfoque dado a vários aspectos interdisciplinares em física teórica pressupõe essa visão.

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 3 1.2 Dificuldades no ensino da física Já são corriqueiras as queixas de professores com relação ao fraco desempenho do aluno médio, que vem se agravando sistematicamente com o avanço dos anos. O problema se agrava ainda mais no ensino público fundamental, onde a maioria nem sequer será incluída no ensino superior. E mesmo no ensino superior (público e privado), a impressão geral dos docentes é que o aluno médio possui sérias dificuldades no processo de leitura, interpretação de textos e raciocínio de modo geral, advindas de buracos na sua formação acadêmica ao longo de sua história. Dentre inúmeros casos que costumamos ouvir, podemos citar um episódio envolvendo um aluno do último período do curso de bacharelado em física, que ao ser interrogado sobre uma determinada questão conceitual de física, perguntou se devia responder de acordo com a física ou com o que ele achava de fato. Isso sugere a existência de sérias fragmentações presentes na mentalidade do aluno de modo geral. Ele não reconhece a física como uma estrutura lógica, que possui um significado histórico e um papel concreto no conhecimento humano, mas sim uma estrutura fabricada sob encomenda, fragmentada e que consiste num depositório de fórmulas e algoritmos caídos do céu. Nesse cenário, é óbvio que qualquer mente saudável necessariamente vai providenciar a ruptura entre essa física monstruosa e seu senso próprio de julgamento. A figura quase mitológica do bicho de sete cabeças, quase sempre representando a física ou a matemática, é reveladora: trata-se de um monstro que tem várias faces. Somente a educação integral é capaz de colocar toda a individualidade intelectual do aluno a serviço do aprendizado da física. 2. A PROPOSTA PAIDEIA PARA A EDUCAÇÃO INTEGRAL A concepção de Adler da educação tem exercido, há décadas, uma considerável influência na comunidade intelectual norte-americana, se estendendo à sociedade através da proposta Paideia. Destacamos dois dos principais princípios da proposta Paideia [2], traduzido para o Português: 1. A causa primária do aprendizado genuíno é a atividade mental exclusiva do aprendiz, muitas vezes com a ajuda do professor atuando como uma causa secundária e cooperativa. 2. Os três tipos de ensinamento que devem ocorrer nas nossas escolas são o ensinamento didático do objeto a ser aprendido; o acompanhamento direcionado a criar uma habilidade de aprendizado; e o questionamento Socrático em seminários.

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 4 O processo da leitura constitui o elemento essencial através do qual esses princípios vão se realizar. Primeiramente, deve-se preparar o aluno dando-lhe subsídios e estímulos à sua atividade mental, para que ele tenha as condições necessárias para aprender genuinamente as matérias. Em outras palavras, deve-se preparar o aluno para a leitura num nível culturalmente aceitável. Como consequência natural, o aluno estará apto e preparado a aprender de fato, com o uso de toda a sua capacidade de raciocínio original, alcançando graus de entendimento do mundo cada vez mais elevados. Portanto, a unidade operacional, teórica, formal e pedagógica da proposta Paideia e do presente trabalho pode ser resumida na arte de ler. O famoso livro de Adler [5] é um clássico que aborda o processo da leitura de modo sério, seguindo a perspectiva individualizada e construtivista do aprendizado real. 2.1 A arte de ler No seu livro A arte de ler [5], Adler classifica sistematicamente os tipos de leitura em diferentes níveis qualitativos: Leitura Elementar, Leitura Inspecional, Leitura Analítica e Leitura Sintópica. Seus níveis são crescentes em qualidade, de modo que, por exemplo, é impossível ocorrer a leitura inspecional sem a leitura elementar. A leitura elementar é a leitura vulgarmente concebida, compreendendo o processo da comunicação no seu nível mais simples. O requisito fundamental para a leitura elementar é o conhecimento completo da língua. Quando lemos um texto escrito numa língua estrangeira, a leitura elementar se torna mais difícil. É notável que a maioria dos alunos do ensino médio e superior ainda tem sérios problemas nesse estágio de leitura (na língua nativa!). Normalmente, aquele que demonstra realizar a leitura elementar na sua plenitude é considerado portador de boa capacidade intelectual. No entanto, esse é apenas o estágio inicial para uma preparação séria e minimamente intelectual: aquele que só domina a leitura elementar é antes de mais nada um principiante. A leitura inspecional requer alto grau de concentração: como o próprio nome diz, o leitor deve fazer uma inspeção em determinado livro, de modo que em dez a vinte minutos ele tenha a capacidade de saber de que tipo é o livro, do que se trata o livro, quem é o autor, etc. Uma certa experiência e bom poder de síntese são elementos importantes para esse nível de atividade. A leitura analítica é a leitura propriamente dita. É uma atividade extremamente ativa, que requer esforço mental direcionado especificamente àquilo que se lê. Na leitura analítica, se faz a análise conceitual, racional e formal do que está escrito. Aqui o livro é mastigado e digerido. O

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 5 leitor deve elaborar perguntas, durante a leitura, e também fornecer respostas. Qual é o argumento do autor? Parece coerente? Qual a importância? Na leitura analítica, o leitor tem um papel tão ativo quanto o escritor: ele não lê passivamente, como se fosse um receptáculo e tradutor de sinais gráficos, mas também escreve, apenas lendo. Por fim, a leitura sintópica é o estágio final de uma leitura exigente. Ela requer uma análise crítica de vários livros simultaneamente, com sínteses sobre suas relações, normalmente ausentes em qualquer outro livro. O indivíduo treinado até esse estágio tem capacidade para fazer pesquisa original e independente. É interessante mencionar que esse seria o estágio intelectual normalmente esperado do aluno formado em qualquer curso superior. Hoje em dia, infelizmente, esse requisito raramente é preenchido, e sequer exigido, seja em cursos superiores ou até em programas de mestrado ou doutorado. Atualmente, os cursos superiores (que se multiplicaram de um modo extraordinário, não só em diversidade de cursos mas também pela quantidade de estabelecimentos) desempenham o papel de adestramento técnico para o mercado de trabalho. Trata-se de uma educação específica patológica, pois está desacompanhada de qualquer mecanismo educacional voltado à formação integral, o que daria legitimidade única ao uso do termo curso superior. 3 PROPOSTA PARA O ENSINO DA FÍSICA A leitura nos quatro níveis acima abordados é suficiente? O que devemos ler? Quais são os livros relevantes para uma educação integral? Existem dois tipos de textos, segundo Adler: i) textos informativos ou para entretenimento são os textos que fornecem informação ou diversão, normalmente lidos como passatempo e divertimento; ii) textos educativos são textos que mudam o grau de entendimento do mundo. Normalmente são textos difíceis, acima da compreensão do leitor. Os livros dignos de uma leitura exigente devem pertencer à classe dos livros educativos. A coleção The great books of the western world [6] reúne em torno de 50 volumes que definem os livros essenciais para a compreensão da cultura ocidental. Autores como Homero, Platão, Euclides, Santo Agostinho, Descartes, Dostoievsky, Sartre e Einstein formam uma pequena amostra desse conteúdo. Com a leitura de grandes obras, o aluno experimenta um crescimento intelectual ímpar à medida que ele vai reconstruindo o conhecimento e a cultura humana, fortalecendo seu poder de

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 6 raciocínio crítico e inteligência criadora. Aquele aluno formado nesses parâmetros não é um aluno normal: é acima de tudo um aluno destinado aos mais altos quadros profissionais, educado para o ingresso numa elite intelectual genuína. Para a física, esse programa de educação integral possui uma importância e um poder de penetração muito maiores do que se supõe. Um aluno que conhece aspectos da história da física, da física Aristotélica e da filosofia de Descartes, está numa posição de expressiva vantagem com relação àquele aluno que desconhece esses assuntos, diante do aprendizado da física Newtoniana. Os conceitos, as argumentações e por conseqüência os aspectos técnicos apresentados ao aluno mais erudito ganham significados substancialmente mais profundos, com contextualização genuína, ao mesmo tempo que para o aluno comum esse material cai do céu, com significações fragmentadas que serão incorporadas à mente através de processos artificiais de memorização, do mesmo modo que a areia enche o caminhão. É conveniente ressaltar a necessidade de leituras mais abrangentes, além das mais intimamente relacionadas ao desenvolvimento da ciência. Ainda que o aluno se proponha a seguir a carreira de cientista, ou professor de ciências, seu livre trânsito por outras áreas do pensamento humano, como literatura, história, latim, psicanálise, metafísica, política, estética e lógica, será um diferencial considerável na sua formação intelectual e preparação para a atividade científica. Todas essas matérias refletem facetas do filé mignon da experiência humana, passada de gerações a gerações. Um automóvel com defeito no motor continuará com o mesmo defeito mesmo que todos os demais constituintes sejam substituídos por peças e equipamentos excepcionais. A atividade do aprendizado ou geração de conhecimento não segue a mesma lógica: todas as peças da engrenagem mental integram uma mecânica indecifrável, num oceano de redes ocultas de interconexões. É evidente que a etapa primordial para a educação integral, conforme sugerido na seção precedente, compreende um adequado letramento do aluno, que para aprender qualquer coisa deve saber ler e interpretar corretamente os textos. Embora essa exigência aparente ser uma redundância, ela é uma exigência ambiciosa, lamentavelmente. A maior parte dos universitários brasileiros não domina a leitura no seu nível mais básico, a leitura elementar. Acreditamos que o ensino sólido da física, dentro da concepção adotada pela proposta Paideia, admite várias possibilidades na escolha das obras clássicas. Podemos sugerir, a título ilustrativo, a leitura dos textos de Aristóteles, especialmente sobre Lógica e Metafísica. Em seguida, o aluno já familiarizado com o sistema Aristotélico pode partir para obras de Descartes, Galileu e

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 7 Newton 2. Esse programa fornece uma idéia bastante sólida sobre o que era a filosofia natural e como essa disciplina evoluiu para a física moderna. A obra de Euclides é uma importante leitura nesse estágio, pois, sendo a primeira obra da humanidade sobre matemática, coloca em evidência a significação precisa da matemática, como um sistema axiomático que contém julgamentos que podem ser classificados de verdadeiros ou falsos, para toda a eternidade. Aqui o aluno se depara com o argumento de uma demonstração matemática, percebendo um sentido transcendental no conceito de teorema. O aluno mais adiantado deve prosseguir seus estudos e ler obras mais modernas, como por exemplo, livros de autores como Einstein, Feynman (e.g. Eletrodinâmica Quântica: A estranha teoria da luz e da matéria ), Paul Davies, Stephen Hawking, Bertrand Russell, Karl Popper e outros. 3.1 Dificuldades operacionais A despeito da grande necessidade e importância de um programa educacional Adleriano, devemos reconhecer algumas dificuldades no seu processo de implantação, em particular quando concebido num domínio global e abrangente. O programa aplicado em larga escala requer um grande número de profissionais qualificados para supervisão e coordenação (aqueles que vão selecionar livros, por exemplo). Ao mesmo tempo que uma ação demasiadamente centralizada oferece sério risco de eventuais distorções oriundas do contraste com as diferentes realidades locais, uma ação muito abrangente e descentralizada pode representar um sistema fora do controle e sujeito a imperfeições aleatórias que potencialmente podem descaracterizar o projeto, esbarrando também em problemas de ordem prática como dificuldades na compra de livros, ou falta de tempo livre para determinado grupo de alunos. Desta forma, é prudente e razoável imaginar a versão brasileira da proposta Paideia como uma ação provisória de teste em poucos centros de educação, preferencialmente reconhecidos pela sua excelência acadêmica. É bom lembrar que não se deve limitar o emprego do projeto unicamente ao ensino médio ou superior, mas apenas sua parte inicial no ensino médio e a sua conclusão no ensino superior (por exemplo, treinar o aluno do ensino médio para a leitura elementar e inspecional, e o aluno universitário para os demais níveis de leitura). O material utilizado para o desenvolvimento dessas habilidades seriam algumas das obras clássicas pré-selecionadas (veja por exemplo algumas sugestões em [5]). 2 A obra Princípios Matemáticos de Filosofia Natural, de Newton, pode ser considerada como o primeiro livro de física moderna da humanidade.

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 8 4 CONCLUSÕES O método baseado na proposta Paideia é um dos métodos mais confiáveis para uma educação integral, a julgar pela sua extensa maturidade. Através do contato direto com as fontes da alta cultura (os autores célebres), o aluno desenvolve o que há de mais fundamental em termos educacionais, que é o poder de raciocínio original sobre objetos culturalmente relevantes. Devemos lembrar sempre que a aprendizagem é um processo solitário por essência. O domínio sobre a linguagem formal e a familiaridade com as obras importantes da civilização ocidental são condições fundamentais para uma boa aprendizagem de qualquer matéria específica, em particular a física, objeto tratado neste trabalho. Quanto mais se cultivar a educação integral, melhor será a educação específica. A necessidade desse programa é imperativa, dado o cenário atual do sistema educacional brasileiro como um todo; o nível de preparo dos alunos vêm sistematicamente sofrendo um processo degenerativo, que corrói não só a motivação ao estudo como também o raciocínio bem fundamentado na lógica e na utilização correta da linguagem formal. Essa crise assume grandes proporções no ensino da física, com efeitos colaterais seríssimos na formação dos professores de física, alimentando um ciclo perverso. AGRADECIMENTO Este trabalho foi produzido com o financiamento da FAPEMIG. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] DAVIES, Paul, God and the new physics. Nova Iorque: Simon and Schuster, 1984. 256 p. [2] PAIDEIA History, 1991. Disponível em: http://hometown.aol.com/paideiapgi/paideia-history- Paideia-Principles/index.htm. Acesso em: 22 abr. 2003. [3] PAIM, Antônio. O papel do diretor na revolução da educação. In: O papel do diretor da escola segundo a proposta Paideia, Rio Estudos n. 30, 2001, Coleção Estudos da Cidade. [4] FLEMING, Henrique. Interdisciplinaridade. Disponível em: http://hfleming.com/papers/inter.html. Acesso em: 21 abr. 2004.

IX ENCONTRO N ACIONAL DE P ESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA 9 [5] ADLER, M.; VAN DOREN, C. A arte de ler. Rio de Janeiro: Agir, 1974. 393 p. [6] HUTCHINS, R. (ed). The great books of the western world (54 vol), 30. ed. Chicago: Universidade de Chicago, 1997.