BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR: A DESCONSTRUÇÃO DA PRINCESA E O APOGEU DA MULHER

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Transcrição:

BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR: A DESCONSTRUÇÃO DA PRINCESA E O APOGEU DA MULHER Carindia do Amarante Marques i () Resumo: este artigo pretende realizar uma comparação entre o conto tradicional Branca de Neve e sua mais recente versão fílmica, intitulada Branca de Neve e o Caçador, no intuito de verificar de que forma se dá essa atualização da história. Nesse sentido, será analisada de que maneira a figura feminina é retratada no filme, através da protagonista, bem como em que essa personagem rompe com a protagonista do conto tradicional. Para isso, serão utilizados os estudos de Camille Paglia (1993) sobre o feminino, assim como as relações de poder e sexo que envolvem o ser humano, além dos trabalhos de Bruno Bettelheim (1980) e Lichtenstein Corso e Mário Corso (2006), os quais traçam um estudo psicanalítico sobre personagens de contos de fadas e o que há de simbólico em cada um. Palavras-chave: Branca de Neve e o Caçador. Feminino. Psicanálise. 1. INTRODUÇÃO O conto Branca de Neve está entre os mais populares da literatura infantil e já recebeu inúmeras versões desde a primeira, compilada e publicada pelos Irmãos Grimm. Basicamente, o enredo gira em torno de uma madrasta que sente inveja da beleza da enteada e por isso manda matá-la, o que muda são as formas de recontá-lo, algumas versões acrescentam informações, outras retiram as cenas mais fortes da versão original. Entre essas versões, podem ser citadas tanto textos escritos quanto filmes, sendo Branca de Neve e o Caçador a mais recente adaptação fílmica do conto. Os primeiros filmes baseados nos contos de fadas foram animações. Recentemente, essas histórias, que fizeram parte da infância de muitas pessoas, estão sendo recontadas através de grandes produções, com atrizes e atores consagrados 1

protagonizando os personagens que, até então, só existiam na imaginação dos leitores e através de animações. Nesse sentido, é importante que se analise de que forma têm acontecido essas adaptações: há rompimento em relação ao texto tradicional? É possível manter o mesmo caráter ideológico em duas épocas distintas da sociedade? De que forma as mudanças sociais, culturais e ideológicas interferem na construção dessa nova versão? Para a compreensão desses questionamentos, o artigo realiza um estudo dessa atualização do conto Branca de Neve, procurando compreender de que forma o conto tradicional é atualizado, no contexto cultural e social contemporâneo, a partir da análise da protagonista, considernado de que maneira a figura feminina foi representada no filme. Para isso, serão utilizados os estudos de Camille Paglia (1993) sobre as representações da mulher na arte, suas relações de poder, sua sexualidade e algumas reflexões de Bruno Bettelheim (2005), Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso (2006), segundo uma visão psicanalítica dos contos de fadas. 2. O CONTO DE FADAS: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS Os contos de fadas tratam de questões da vida humana que são de difícil entendimento para a criança e, até mesmo, para os adultos, os quais, muitas vezes, não sabem como reagir diante de certas situações, enquanto pais ou responsáveis. O amadurecimento sexual, a aceitação de si próprio, os sentimentos que afloram na fase edípica são temas abordados por alguns contos de fadas por meio de metáforas e imagens simbólicas. De acordo com o psicanalista Bruno Bettelheim (1980, p. 23), os contos de fadas lidam de forma imaginativa com as proposições mais importantes sobre desenvolvimento em nossas vidas. Através dessas histórias tradicionais, a criança tem a possibilidade de compreender e elaborar os conflitos pelos quais passa durante seu amadurecimento. Entretanto, não são apenas os problemas das crianças que são enfocados por esse tipo de história. O conto Branca de Neve, simbolicamente, representa um conflito 2

edípico, o qual não é bem elaborado pelos pais, trazendo consequências desastrosas à vida das personagens. O medo da rainha de que sua filha (em algumas versões) ou enteada a supere é o que leva a madrasta a adotar atitudes destrutivas em relação à Branca de Neve. É importante destacar que se entende por conflito edípico ou Complexo de Épido: O conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto (LAPLANCHE; PONTALIS, 2004, p.77). Na menina, o Complexo de Édipo é caracterizado, primeiramente, por uma mudança de objeto de amor da mãe para o pai e poderá culminar na rivalidade entre mãe e filha pelo amor do pai. Conforme Laplanche e Pontalis (2004, p.78), Só na puberdade a escolha objetal se efetua plenamente e a sexualidade infantil conserva-se essencialmente auto-erótica. Nesta perspectiva, o Complexo de Édipo, embora esboçado na infância, só surgira em plena luz no momento da puberdade, para ser rapidamente ultrapassado. Branca de Neve enfrenta as mutações da adolescência, as quais provocam a inveja da madrasta. A questão edípica volta de maneira contundente à medida que se instaura o triângulo e Branca de Neve rivaliza com a rainha. No entanto, vale comentar que a menina, muito embora desenvolva um sentimento de hostilidade com a mãe, identifica-se com ela. Branca de Neve, ao mesmo tempo em que estava marcada pelo poder castrador da madrasta, identificou-se com essa, ou seja, apesar de odiá-la, ela não vai embora, mas volta para tomar o poder das mãos da rainha, já que, de certa forma, Branca de Neve também deseja o poder, assim como a madrasta, mesmo que seja para utilizar de modo diferente. Nesse caso, o conflito foi sublimado, passando a ser algo socialmente aceito, já que a rainha era má e precisava ser contida. 3

3. O FEMININO: DA PRINCESA À FEMME FATALE A mulher foi representada de várias maneiras na literatura, na pintura, nas obras de artes em geral. Nos contos de fadas, a presença de personagens femininos dá-se, predominantemente, através de tipos. Segundo Coelho (1982), essas personagens são caracterizadas como imutáveis do início ao fim, não apresentando profundidade psicológica, apenas um comportamento exterior estereotipado e representando uma classe social. Nesse sentido, as personagens femininas dos contos de fadas eram todas muito semelhantes e, apesar de serem protagonistas da história, não o eram de suas vidas. A Branca de Neve do conto tradicional é um legítimo personagem tipo: a princesa sofredora que é salva pelo príncipe. Todavia, numa versão contemporânea desse conto é impossível manter a protagonista tão passiva e dependente, já que na sociedade atual a mulher tem conquistado seu espaço. Se no conto a princesa reflete, de certa forma, a posição da mulher daquela época, no filme que será analisado neste artigo, é possível que também ocorra esse fenômeno. Assim, cabe explanar um pouco a respeito da mulher, de sua posição social e de sua relação com o homem ao longo da história. Há algum tempo, a mulher tem lutado por um lugar de respeito e reconhecimento na sociedade, depois de um histórico de sofrimentos, hostilidade e mutilações. Camille Paglia (1992) em seu livro Personas sexuais arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson, explora, entre outros assuntos, o poder e a sexualidade femininos, carregados de mistérios e ligados diretamente aos instintos, sentimentos humanos em confronto com o masculino e sua racionalidade. Segundo a autora, a mulher, apresenta uma profunda relação com a natureza, identificando-se com ela por sua fertilidade, pela profunda semelhança de seu corpo com os contornos arredondados da terra, pelo seu ciclo menstrual que lembra as fases da lua. Paglia (1992) atribui à mulher as forças ctônicas, ou seja, ao poder que vem das entranhas da terra. A mulher é 4

um ser estranho, misterioso, com seus poderes de procriação, é capaz de gerar a vida; fato que, apesar de ser explicado pela ciência, assusta o homem e o lembra de suas origens, do que de animalesco há em si, de suas fraquezas em não conseguir compreender e controlar a natureza, os instintos. A mulher, para Paglia (1992), é como um vampiro, uma femme fatale, mística e misteriosa, a qual dá a vida ao homem e para a qual esse sempre volta no momento da relação sexual, uma vez que, para o homem, o sexo é um retorno à mãe, às profundezas fluidas de seu nascimento. Os contos de fadas tradicionais apresentam uma visão extremamente preconceituosa e machista a respeito da mulher, o que pode ser compreendido como um reflexo da sociedade da época. Afinal, para casar uma filha era preciso dar um dote, como se a esposa fosse um encargo, um fardo, pelo qual é necessária alguma indenização (CORSO; CORSO, 2006, p. 77). Diana Corso e Mário Corso (2006), atentam, ainda, para outro detalhe comum nos contos de fadas: a forma lisonjeira com que são tratadas as mulheres jovens e a maneira pejorativa com que são apresentadas as mulheres mais velhas, as quais são sempre as bruxas. Para os autores, isso faz com que se construa uma imagem da mulher adulta enquanto perigosa, ardil, enquanto a beleza seria sinal de inocência e passividade, atrativos para o homem. 4. PERSONAGEM BRANCA DE NEVE: A IMOBILIDADE E A DESCONSTRUÇÃO No conto, Branca de Neve é uma menina de sete anos que desperta ciúmes em sua madrasta por sua beleza exótica, a qual retoma elementos da natureza com cores bastante simbólicas. Ao analisar-se a personagem principal do filme Branca de Neve e o Caçador, num contexto enunciativo no qual o feminino vem se destacando e conquistando seu espaço, há uma profunda mudança em relação à protagonista do conto. Na versão cinematográfica que está sendo analisada, Branca de Neve é uma jovem que perdeu a mãe quando tinha em torno de sete anos. O rei casa-se, então, com Ravenna, que o mata e usurpa-lhe o trono. Na invasão ao castelo pelo exército sombrio 5

de Ravenna, muitos morrem e outros conseguem fugir. A princesa, que a princípio havia simpatizado com a madrasta, é surpreendida com todos esses acontecimentos e não consegue escapar, sendo trancada na mais alta torre do castelo. A menina vive muitos anos nesse cárcere e somente passa a ser uma ameaça à rainha, após se tornar uma moça. Ravenna descobre que já não é a mais bela através do espelho, objeto que para Bettelheim (1980) pode ser compreendido como a voz da enteada: quando pequena, a menina idolatra a mãe, achando-a a mulher mais bela de todas fase em que o espelho diz que não há ninguém mais linda do que a rainha porém, quando adolescente, a menina considera-se muito mais bonita do que a mãe no filme o espelho diz que Branca de Neve superou Ravenna apenas depois que a menina se tornou uma moça. Já para Diana Corso e Mário Corso (2006), o espelho pode ser compreendido como a voz do pai, o qual percebe que sua filha cresceu e se transformou numa mulher. Já não há apenas uma mulher na casa e, para agravar a situação, a mãe está envelhecendo justo no momento em que a filha alcança o ápice da juventude. A morte do pai de Branca de Neve, no filme, justifica a sua não intervenção, diferente do conto, no qual o pai está vivo, mas não se posiciona. Além disso, a personagem fílmica Branca de Neve, ao contrário da protagonista do conto, não espera que um príncipe a salve. Ela consegue fugir da torre por seus próprios meios, com o auxílio de alguns animais. No decorrer do filme, demonstra-se muito corajosa, decidida e quase totalmente independente do auxílio masculino. Na verdade, é a ela que cabe o papel de heroína, tanto que, numa cena na Floresta Negra é ela quem salva o suposto herói, o Caçador. Branca de Neve, apesar de depender de um beijo para viver novamente, não se envolve amorosamente nem com o Caçador, nem com William, seu foco não é o casamento, mas reaver seu trono, sua posição social, seu lugar de rainha. O filme inova e surpreende ao finalizar numa cena em que Branca de Neve é coroada rainha de seu reino, diferentemente do conto, no qual ela somente consegue uma posição na sociedade por ter se casado com o príncipe. 6

As personagens, assim como a mulher descrita por Paglia (1992), apresentam profunda relação com a natureza. Ravenna é o lado sombrio, das trevas, sua presença destrói, mata, seca. No filme, isso é claramente percebido pelo modo como são trabalhados os espaços: inicia tudo branco, muita neve, imagens claras, porém, quando Ravenna aparece na história, as imagens se tornam mais sombrias e a escuridão prevalece quando a rainha conquista o reino, fato que não por acaso acontece durante a noite. O lado obscuro, sombrio está diretamente ligado à personagem Ravenna. A natureza responde prontamente à presença de Ravenna, tornando-se um reflexo de sua personalidade. Da mesma forma, a personagem Branca de Neve demonstra profunda relação com os elementos naturais, porém, ao contrário de Ravenna, representa a vida, a luz, o dia. Sua presença é capaz de vencer as sombras, o que se percebe em determinada cena, quando as flores começam a desabrochar, tudo revive e o sol volta a iluminar a terra quando Branca de Neve chega. Essa relação com elementos naturais é evidenciada, ainda, através dos nomes das duas personagens: Branca de Neve, cujo elemento neve faz parte da natureza, simboliza a pureza, bem com uma das estações do ano, na qual os elementos vivos morrem para renascerem em breve, mais fortes e renovados; e Ravenna, cujo nome contém a palavra corvo, em inglês raven. A brancura da neve e a escuridão do corvo: o dualismo e a rivalidade estão presentes até nos nomes das personagens. CONSIDERAÇÕES FINAIS O filme Branca de Neve e o Caçador atualiza o conto Branca de Neve, porém com significativas mudanças. Entre essas, a mais importante a ser considerada está a desconstrução da protagonista enquanto uma princesa tradicional dos contos de fadas. A protagonista passa de princesa indefesa para heroína que salva todo um reino, o que permite considerar o lugar da mulher na sociedade contemporânea e as mudanças que vem sofrendo ao longo dos anos. O fato de Branca de Neve reaver seus bens pode ser 7

comparado à mulher, retomando a posição que sempre foi sua, mas a qual lhe usurparam durante milhares anos. REFERÊNCIAS BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR. Rupert Sanders. Joe Roth. USA: Roth Films, 2012. DVD. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 19 ed. São Paulo: Paz e terra, 2005. COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história teoria análise (Das origens orientais ao Brasil de hoje). 2. ed. São Paulo: Global; Quirón, 1982. CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006. LAPLANCHE, Jean. Novos fundamentos para a Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J. Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. PAGLIA, Camille. Personas sexuais: Arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. Trad: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras: 1992 i (Graduada em Letras, aluna do PPGL, Brasil) E-mail: carindiam@yahoo.com.br 8