ESTEREÓTIPOS, IDENTIDADE CULTURAL E A RESISTÊNCIA NO ROMANCE AMERICANAH DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

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Transcrição:

IV Encontro Internacional de Literaturas, Histórias e Culturas Afro-brasileiras e Africanas Universidade Estadual do Piauí UESPI ISBN: 978-85-8320-162-5 ESTEREÓTIPOS, IDENTIDADE CULTURAL E A RESISTÊNCIA NO ROMANCE AMERICANAH DE CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE Ana Claudia Oliveira Neri Alves (IFPI) Áurea Regina do Nascimento Santos (IFPI/UESPI) Caio César Viana de Almeida (IFPI) RESUMO Este artigo discute o registro ficcional do choque de culturas quando Ifemelu, uma jovem negra nigeriana, vai viver nos EUA para estudar e se depara com questões raciais e de gênero, representados em Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie. As tensões entre a percepção da personagem sobre sua própria identidade e a visão estereotipada e silenciadora que os americanos tem a respeito dos negros nãoamericanos como ela, são articuladas pelo conflito de ideologias, que nasce do embate entre a resistência frente a dominação da cultura branca e da perda da identidade africana. Principalmente, invisibilidade da mulher negra. Constatam-se os resíduos da herança colonial agora oriundos da globalização e da tentativa de supressão do multiculturalismo. Concomitantemente, percebe-se a forte representação do poder feminino em novas rupturas e intervenções pelas quais a mulher negra ousa propagar sua voz e tomar seu lugar autônomo no mundo contemporâneo. Palavras-chave: Identidade Cultural; Vozes Femininas; Pós-colonialismo; Neoimperialismo; Adichie. Este artigo discute o registro ficcional do choque de culturas quando Ifemelu, uma jovem negra nigeriana, vai viver nos EUA para estudar e se depara com a questões raciais e de gênero representados em Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie. Chimamanda Ngozi Adichie, nascida em Enugu, Nigéria, no ano de 1977, é filha de Grace Ifeoma e James Nwoye Adichie. Morou com a família em Nsukka, onde o pai foi reitor da universidade, lecionava Estatística e a mãe trabalhava como secretária. Iniciou os cursos de Medicina e Farmácia na Universidade da Nigéria (Nsukka), mas, aos dezenove anos, partiu para os Estados Unidos da América a fim de estudar Comunicação e Ciência Política na Drexel University, na Philadelphia. Em 2003, 1

completou seu mestrado em Redação Literária na Universidade Johns Hopkins e, em 2008, tornou-se mestre em Estudos Africanos pela Universidade de Yale. Adichie teve sua primeira obra, Purple hibiscus, publicada em 2003. Em 2006, publica Half of a Yellow Sun e, com este, recebe o Orange Prize de ficção em 2007. Sua publicação seguinte foi um livro de contos intitulado The thing around your neck (2009). A mais recente produção de Adichie é o romance Americanah (2013). Uma das preocupações de Adichie como escritora é negar os estereótipos africanos criados pelo imaginário ocidental, que tem uma influência significativa em sua experiência de vida, pois ela teve contato com um mundo africano diferente daquele reconhecido somente por miséria e guerras. Nesse sentido, a autora vê a escrita como um ato político, assim, manifesta-se sobre o modo como a África é vista pelo mundo e aponta a literatura como meio para combater tais estereótipos. A África tem sido nos últimos anos assunto da moda nos Estados Unidos e Europa, e essa nova moda afro é baseada em parte no estereótipo dos pobres africanos famintos que precisam da salvação do Ocidente (ADICHIE, 2008, p. 99). O principal foco de Adichie é nas classes média e alta de nigerianos universitários. Em Americanah, a protagonista, Ifemelu, vem de uma respeitável família de classe média de Lagos. Ifemelu é uma jovem nigeriana, parte da elite metropolitana Igbo que cresce em Lagos, vai estudar em uma faculdade nos Estados Unidos e termina como uma imigrante que não se rebaixa diante da experiência intimidadora de tentar construir uma nova vida e uma nova identidade em uma sociedade que ela mal entende e que é comandada por pessoas brancas. É uma situação familiar para a maioria dos habitantes de países do terceiro mundo pós-colonial que acreditam que a vida boa deve ser encontrada além das fronteiras dos seus países corruptos e atrasados: de preferência, no Ocidente, na terra onde há abundância, onde anos de imperialismo e colonialismo permitiram que seus sujeitos aproveitassem a liberdade, água potável da torneira, e abundância de comida em prateleiras de supermercados. A narrativa de Chimamanda é claramente direcionada para a construção de um discurso político que leve o leitor, de qualquer parte do mundo, a conhecer a visão não ocidentalizada da Nigéria e de seu povo. Ania Loomba afirma que o pós-colonial: 2

é uma palavra que é útil apenas se usada com cuidado e qualificações. Ela é útil em indicar um processo geral com algumas características compartilhadas pelo mundo. Mas se for arrancado de locais específicos, não pode ser significativamente investigado, e, em vez disso, o prazo começa a obscurecer as relações de dominação que pretende descobrir. (LOOMBA, 1998, p. 19) Um destaque importante que se faz na obra de Chimamanda refere-se à caracterização das mulheres em seus romances, onde ela revela estratégias destinadas a discutir o papel destas na ordem pública e no reforço do protagonismo feminino nesse âmbito. A autora nos mostra as mulheres em sua diversidade, desde representações da mulher nigeriana moderna, que adquiriu autonomia, a outras que apresentam a mulher tribal, presa a tradições. Ifemelu é uma mulher rara que não esconde que é bastante segura em seu próprio senso de atração e valor. Ela sabe que é bonita, mas Adichie habilmente mostra como o racismo trabalha para minar o senso de confiança até mesmo de Ifemelu com toda a apatia das observações e olhares cotidianos sobre seu cabelo e o que as pessoas consideram como sua projeção de africanidade. Adichie soberbamente descreve as variáveis em narrativas de migração ao longo de linhas de gênero: como monstruosa a situação pode ser para os negros e pardos que viajam para os EUA ou Europa. A mulher tem ocupado o espaço do outro em muitos contextos culturais, fator este que a aproxima do colonizado, pois ambos estão estruturalmente fora do grupo que detém o poder, sendo, portanto, marginalizados. A estrutura de classe que separa os povos como colonizados e colonizadores também produz a opressão sofrida pela mulher, que além de colonizada, sofre com o fato de ser mulher em um sistema que privilegia o masculino. Ao observar esses pontos de contato, o feminismo explorará conceitos antes circunscritos ao interesse da crítica pós-colonial, como voz, linguagem, discurso e silêncio. Bonnici (2006, p.154) aponta que o feminismo descobre que o valor estético do texto junto com a teoria e crítica literárias foram construídos histórica e culturalmente sob a égide do patriarcalismo. A maturidade dessa corrente de pensamento se reflete na busca pela desmistificação de estereótipos e revisão do cânone literário. 3

Em nossa análise de Americanah, observamos a influência do feminismo na escrita da autora e identificamos os aspectos da teoria feminista contemporânea na história da personagem principal do romance, Ifemelu, e como eles se relacionam com o contexto histórico pós-colonial, bem como as características da obra que a enquadrariam na chamada terceira fase da literatura pós-colonial, no tocante ao uso dos processos de descolonização cultural que, segundo Bonnici (2000) seriam a ab-rogação (rejeição e conscientização de que a cultura metropolitana é alheia à realidade dos colonizados) e a apropriação (utilização de elementos da cultura colonial, porém dialogando com a tradição). Ifemelu é uma jovem Nigeriana de classe média que ao chegar aos EUA para estudar se depara com a diferença dos valores culturais e sociais e principalmente na questão racial. Como uma estrangeira que nunca percebeu hostilidade por conta de sua raça, Ifemelu observa minuciosa e criticamente atitudes que passam despercebidas por aqueles que estão habituados a elas. Dada sua personalidade forte, seu senso crítico e sua língua afiada, Ifemelu começa um blog intitulado: Recteenth ou Observações Diversas sobre Negros Americanos (Antigamente Conhecidos como crioulos) Feitas por uma Negra Não-Americana (ADICHIE, 2013, p. 07) onde faz relatos e observações acerca das questões raciais, principalmente sobre o apagamento da cultura africana junto à comunidade negra americana e a invisibilidade social da mulher negra. Através das postagens no blog, Ifemelu pode liberar seu lado mais polêmico e fazer valer suas opiniões e sua voz. Na primeira página, ela nos diz que "...neste lugar de facilidade afluente, ela poderia fingir ser outra pessoa" (ADICHIE, 2013,p. 06). Sim, mas, não ela mesma, a que usa cabelo natural. Já que ela está a caminho de Trenton para trançar seu cabelo, porque não existem salões de trança em Princeton. Ifemelu torna um olhar questionador sobre colegas imigrantes nigerianos também, que conversam muito nostalgicamente em fóruns on-line sobre uma pátria que eles realmente conhecem mais. Estes nigerianos economizam para viagens de volta para casa durante as férias, quando eles enchem suas famílias com sapatos e relógios comprados nos Estados Unidos na esperança de fazer seus parentes parecerem um pouco mais americanos. Ainda mais triste, ela vê em nigerianos que vivem nos EUA, como ela, um excesso de vontade de abraçar os padrões do seu novo país, especialmente em matéria de raça e etnia. 4

Quando a tia de Ifemelu, Uju, que acaba de receber papéis para exercer a medicina nos Estados Unidos, diz que precisa desfazer as tranças de seu cabelo por causa das suas entrevistas de trabalho para que os empregadores americanos a vejam como mais profissional, Ifemelu pergunta se não há médicos com cabelo trançado nos EUA. Uju rebate: "Você está em um país que não é o seu próprio. Você faz o que tem que fazer se você quiser ter sucesso (ADICHIE, 2013, p. 69). A perplexidade diante do cabelo das mulheres negras desempenha um grande papel neste romance. Hall (2003, p. 83) comenta que as comunidades migrantes trazem as marcas da diáspora, da hibridização e da différance em sua própria constituição. Este é um exemplo que Bhabha (1998) chama de hibridismo, fenômeno no qual uma cultura influencia e sofre influência de outra, em um processo de troca, inerente à globalização, pois Hall (2003, p. 59) afirma que a globalização é um processo homogeneizante, (...), estruturado em dominância, mas não pode controlar ou saturar tudo dentro de sua órbita. Isto cria alguns momentos preocupantes, não apenas entre Ifemelu e racistas americanos brancos, mas também entre ela e os negros americanos, em especial seu namorado Blaine e a irmã dele, Shan. Em uma conversa sobre como homens brancos americanos e homens brancos europeus veem as mulheres negras de forma diferente, Ifemelu diz a Shan que percebe "muito mais interesse nela por parte de homens brancos do que dos homens afro-americanos" (ADICHIE, 2013, p. 270). Shan diz a ela que é, provavelmente, por causa da "credencial exótica, toda aquela coisa de Africana Autêntica" de Ifemelu (ADICHIE, 2013 p. 270). Esta declaração deixa Ifemelu com raiva, mas não exatamente em completo desacordo. Na infância de Ifemelu, sua mãe observa que se era para [a filha] se comportar assim, melhor se tivesse nascido menino (ADICHIE, 2013, p.13) ela se refere à mania de Ifemelu de falar o que lhe vem à cabeça, numa clara tentativa de silenciar essa voz feminina, cujo direito de se expressar foi negado no momento em que nasceu mulher. Percebemos então que algumas das mulheres retratadas por Adichie, como a mãe de Ifemelu, estão circunscritas a uma estrutura histórico-ideológica pós-colonial que aprisiona a mulher a uma subalternidade dupla, como problematiza Spivak em Pode o Subalterno Falar?: 5

É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade. (SPIVAK, 2010, p. 85) Ao observar aspectos do feminismo no romance, vamos ao encontro das respostas de Antônio Candido às suas próprias indagações em relação à influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte bem como a influência exercida pela obra de arte sobre o meio. Segundo ele, a arte é expressão da sociedade, exprime condições de cada civilização em que ocorre e é também social, interessada nos problemas sociais (CANDIDO, 2010, p. 28). A experiência de Ifemelu, a princípio, pode parecer estritamente pessoal, mas Adichie constrói a condição feminina da personagem como fruto de tensões sociais reveladas em sua luta diária contra o preconceito. Através das postagens em seu blog, Ifemelu denuncia essas tensões sociais transindividuais que afetam, na contemporaneidade, o negro nos EUA, nativo ou imigrante, e de modo especial, a mulher diaspórica, mas expõe também que a voz da mulher na sociedade tecnologicamente avançada não tem tanta força quanto querem fazer parecer. De acordo com Thomas Bonnici, A liberdade física feminina que pode ser uma camuflagem para esconder uma profunda opressão e carência da liberdade verdadeira; (4) os obstáculos profundos que as mulheres nas comunidades pós - coloniais e nas minorias nos países desenvolvidos ainda encontram para conquistar a igualdade, a autonomia e a agência, apesar de sua participação nas lutas anticoloniais ou pela igualdade de gênero; (5) a reação feminina, às vezes extrema, a qual, devido à semelhança à opressão do colonizador, torna se ambígua, efêmera e inconclusa. (BONNICI, 2006, p.23) A escrita literária é reflexo da sociedade à qual o autor pertence e através desse olhar podemos vislumbrar os aspectos sociais, culturais e identitários e perceber o local de fala do escritor. Edward Said, crítico literário, cultural e escritor palestino, em sua obra intitulada Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1987), mostra como o ocidente construiu uma imagem equivocada e estereotipada do oriente. Segundo Said, cuja obra supracitada inaugura os estudos pós-coloniais na escola americana, o 6

ocidente se constituiu culturalmente a partir do contato com o não-europeu quando diante de hábitos culturais distintos dos seus pode se julgar e se autoafirmar o detentor de uma cultura superior e construir sua própria identidade. Adichie traz as reflexões do romance sobre raça e desejo de preenchimento. Enquanto alguns homens brancos americanos podem considerá-la inteligente, engraçada e bonita, eles realmente não a veem, não a desejam, porque a identidade moldou e disciplinou o seu sentimento de desejo. O romance se estende para uma avaliação escaldante da Nigéria, um país muito orgulhoso de ter paciência com Americanahs, que retornam do exterior para menosprezar seus compatriotas e apoiar os valores estrangeiros. Em um cenário de inverno no desfile de Natal de uma escola, um pai pergunta: "Eles estão ensinando as crianças que um Natal não é um verdadeiro Natal, a menos que a neve caia como acontece no exterior? (ADICHIE, 2013). As literaturas africanas buscam a afirmação das identidades de seus países através de movimentos nacionalistas e de resistência, onde as obras literárias são ferramentas básicas utilizadas por diversos autores no processo de descolonização. Chimamanda é hoje uma das vozes do continente africano na construção da sua nova identidade e atua na tentativa de desconstrução dos estereótipos acerca de seu povo, escrevendo sobre a África em uma perspectiva transcultural, em que as diversas identidades dos sujeitos africanos são compreendidas nas relações de alteridade, nos conflitos internos marcados pela experiência da independência e pela influência externa da modernização. A vida moderna na maior cidade da Nigéria, Lagos, quase se torna um personagem no romance Americanah de Chimamanda Ngozi Adichie, ao revelar a história de imigrantes nigerianos e sua luta para se tornarem americanos. Americanah é tanto intelectualmente expansiva quanto íntima, uma história sobre a experiência devastadora de encontrar seu próprio caminho em uma nova terra, e os longos caminhos físicos e emocionais que eles percorrem para se sentirem plenos novamente. Em Americanah, Adichie usa o debate sobre a alteridade como um caminho que leva o leitor a compreender a contemporaneidade dos debates sociais e culturais africanos. A partir das relações pessoais e sociais vividas pelos personagens, a autora busca aproximar o leitor, familiarizá-lo e humanizar a visão sobre os sujeitos africanos 7

e, dessa forma, construir uma nova identidade para esses sujeitos perante os olhos do mundo. Adichie se preocupa em representar os vários lugares de uma Nigéria constituída pela diversidade, ao caracterizar os espaços urbanos e os indivíduos escolarizados e, muitas vezes, eurocêntricos. Ao fazer isso, ela instala a modernidade nas literaturas africanas, uma modernidade que não tenta se igualar à homogeneização proposta pelos processos de modernização impostos pelo Ocidente, mas uma modernidade local, própria, marcada pelos processos decorrentes da globalização, mas que também negocia com o global a partir de suas singularidades locais, instaurando uma modernidade complexa, transcultural e problemática (TEOTÔNIO, 2013, p. 63). Americanah questiona as fronteiras que desenhamos entre as raças, os gêneros e as nações. Ele não se foca completamente na Nigéria durante as décadas iniciais póscoloniais, mas sim em duas experiências nigerianas em um mundo global e transnacional, moldado pela imigração, raça, amor, ocidentalização. Os personagens lutam para criar suas próprias identidades ao invés de imitar os estilos e as definições ocidentais de espaço urbano e vida. O romance examina raça, identidade e pertencimento nas paisagens globais de africanos e americanos por diferentes continentes. A literatura mistura valores locais com desejos e ansiedades globais para assinalar o que Bhabha (1998) chama de espaços intersticiais, locais nos quais as práticas pré-coloniais não se separam da modernidade colonial, mas são mediadas através de troca mútua. A cultura europeia metropolitana é também um manuscrito na sua composição. Assim, examinar literaturas coloniais e pós-coloniais é experimentar camadas de práticas inter-relacionadas porque seus textos reconstituem culturas que são em si sobrepostas de uma forma complexa. Constatam-se os resíduos da herança colonial agora oriundos da globalização e da tentativa de supressão do multiculturalismo. Concomitantemente, percebe-se a forte representação do poder feminino em novas rupturas e intervenções pelas quais a mulher negra ousa propagar sua voz e tomar seu lugar autônomo no mundo contemporâneo. REFERÊNCIAS 8

ADICHIE, C. N. Americanah. London: Fourth Estate, 2013.. African Authenticity and the Biafran Experience. Transitions, n 99, p. 42-53. Indiana University Press, 2008. BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Trad: Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2000.. Pós-colonialismo e representação feminina na literatura pós-colonial em inglês. Revista Maringá, v. 28, n.1, p.13-25, 2006. CANDIDO, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010, p.13-82. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende...let all. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasilia: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. LOOMBA, A. Colonialism/Postcolonialism. New York: Routledge, 1998. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. TEOTÔNIO, Rafaella Cristina Alves. Por uma modernidade própria: o transcultural nas obras Hibisco roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie e O sétimo juramento, de Paulina Chiziane. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-graduação em Literatura e Interculturalidade, Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande, 2013. 9