ABORDAGEM PEDAGÓGICA PARA UM SISTEMA DE MEDIDAS UTILIZADO NO SERTÃO PERNAMBUCANO: LITRO, CUIA E SACA



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Transcrição:

ABORDAGEM PEDAGÓGICA PARA UM SISTEMA DE MEDIDAS UTILIZADO NO SERTÃO PERNAMBUCANO: LITRO, CUIA E SACA Jorge Antônio Cavalcante Lima jorgeantoniocavalcante@bol.com.br Zita Maria da Silva Nascimento zitamariaeduc.@hotmail.com Ernani Martins dos Santos ernani.santos@upe.br RESUMO O presente artigo propõe uma abordagem pedagógica para um sistema de medidas utilizado no sertão de Pernambuco, retomando as discussões dos etnoconhecimentos propostos originalmente por Lima; Nascimento e Santos (2005). Nessa abordagem focamos no trabalho com a Matemática Escolar, discutindo a concepção da Etnomatemática, como campo de conhecimento da Educação Matemática, trabalhando a visão de ticas de matema, descrita por D Ambrósio (1993), de alguns comerciantes do município de Tacaratu em Pernambuco. A partir dessa discussão, propomos uma compreensão do conhecimento matemático a partir do ponto de vista cultural e de como, a partir dele, podemos agir sobre nossa realidade com intuito de transformá-la ou preservá-la a partir do trabalho com a Matemática em sala de aula. Palavras-Chave: Sistema de Medidas; Etnomatemática; Matemática Escolar. 1. INTRODUÇÃO/JUSTIFICATIVA: ESTADO DA ARTE Neste trabalho retomamos um estudo etnomatemático de um sistema de quantificar grãos, utilizado no sertão pernambucano. A descoberta do sistema e suas relações matemáticas foram apresentadas e discutidas originalmente por Lima e Nascimento sob a orientação de Santos (2005), numa pesquisa maior sobre as abordagens de etnoconhecimentos utilizados em Tacaratú - Pernambuco e apresentadas no intuito de discussão científica por Santos (2006a), Santos (2006b) e Santos (2007). Neste artigo, além do resgate do trabalho inicialmente discutido e apresentado, tratamos do viés histórico do sistema de medidas, de suas possíveis relações com o sistema oficial adotado no Brasil e de como é possível trabalhá-lo na sala de aula de Matemática. Sabemos que o conhecimento matemático foi desenvolvido seguindo caminhos diferentes nas diversas culturas, provocado pela experiência própria e a prática em si, através de movimentos de idas e vindas, com rupturas de paradigmas, frutos da

2 construção de constantes conhecimentos a partir do contexto natural, social e cultural. Neste sentido temos a Matemática, enquanto ciência, sendo considerada necessária e indispensável à humanidade, a matemática é parte integrante de nosso viver e, por consequência, de qualquer proposta curricular (MENDES, 2004, p. 15). Percebemos que é a partir da busca de significados e explicações que o homem desenvolve saberes e fazeres matemáticos, na tentativa de conviver e compreender sua realidade e seu ambiente, considerando aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos. Ao falarmos de conhecimento matemático associado a formas culturais distintas, é possível se chegar a um conceito a respeito do que se entende por etnomatemática: Etno é hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto cultural, e, portanto, inclui considerações como linguagem, jargão, códigos de comportamentos e símbolos; matema é uma raiz difícil que vai à direção de explicar, de conhecer, de entender; a tica vem sem dúvidas de tchne, que é a mesma raiz da raiz de técnica (D AMBRÓSIO 1998, p. 05). Assim, podemos dizer que a Etnomatemática estuda a matemática culturalmente produzida, ou seja, que este ramo da Educação Matemática é arte ou técnica de explicar, de conhecer e de entender os processos matemáticos nos diversos contextos culturais. A Etnomatemática problematiza as diferentes maneiras de se lidar matematicamente com o mundo, trazendo os diversos modos de calcular, medir, estimar, inferir e raciocinar, problematizando o conhecimento que tem sido considerado como o conhecimento acumulado pela humanidade (KNIJINIK, 2004). A perspectiva que Knijnik (1996) denominou Abordagem Etnomatemática pode ser vista como uma proposta para o ensino da Matemática, procurando resgatar a intencionalidade do sujeito através do seu fazer matemático, ao se preocupar com que a motivação seja gerada por uma situação-problema a ser selecionada por ele, com a valorização e o encorajamento às manifestações das ideias e opiniões de todos. Essa abordagem proposta por Knijnik (1996) avança em alguns pontos cruciais, tais como na discussão do critério de seleção dos conteúdos e, principalmente, no tratamento que confere aos saberes populares: não se busca usar os saberes populares unicamente como material intelectual, ponte a partir da qual os saberes acadêmicos seriam aprendidos. Segundo a pesquisadora, o processo pedagógico é orientado num duplo sentido: por um lado, o propósito de ensinar Matemática Acadêmica, socialmente legitimada, cujo domínio os próprios grupos subordinados colocam como condição para

3 que possam participar da vida social, cultural e econômica de modo menos desvantajoso. Por outro lado, a Matemática Popular não é considerada meramente um folclore, algo que merece ser resgatado para que o povo se sinta valorizado, embora esta operação possa produzir tal efeito. As práticas matemáticas populares são interpretadas e decodificadas, tendo em vista a apreensão de sua coerência interna e sua estreita conexão com o mundo prático, o que as habilita a continuarem sendo utilizadas em situações que o aluno saberá julgar adequadas (KNIJNIK, 1996, p. 62). Destacamos, ainda, um ponto principal do processo pedagógico que Knijnik destaca em seu trabalho: os saberes acadêmicos e populares não devem ser tratados de modo dicotômico. Suas relações devem ser continuamente examinadas, tendo como parâmetro de análise as relações de poder envolvidas no uso de cada um desses saberes. Esta visão não dicotômica é também posta por Meira (1993), que defende a ideia de que é possível estabelecer relações entre a Matemática Escolar e a Matemática Extraescolar 1 de forma a propor uma Educação Matemática mais significativa, sem que seja necessário buscar uma correspondência ingênua entre os conceitos matemáticos praticados na escola e os conceitos presentes na vida extraescolar como posto em Spinillo (2005). Acreditamos que a produção do conhecimento matemático não pode estar desvinculada dos movimentos sociais e da cultura de quem produz essa Matemática. Nesse sentido, podemos afirmar que há um entrelaçamento entre a Matemática produzida, a sociedade que a produz e a cultura que subsidia essa produção. Tal entrelaçamento é construído através de um processo cognitivo, mediado pela ação criativa de diversos operadores mentais, impulsionados pela necessidade de ler, compreender e explicar a realidade inventada e validada pela sociedade humana. A Matemática vai se construindo e reconstruindo, sendo ressignificada a cada momento histórico e de acordo com as exigências da sociedade. Segundo Mendes (2004) essas exigências se configuram nas atividades socioculturais que vão se formulando no processo de adaptabilidade cognitiva que é característico da sociedade humana. Com isso, vamos exigindo de nós mesmos, enquanto sociedade, uma produção ou reprodução da Matemática, de acordo com as necessidades evidenciadas nas atividades praticadas nos contextos sociais nos quais estamos inseridos e, para isso, 1 Tratamos a Matemática escolar e extraescolar aqui comungando com a ideia de Spinillo (2005), que diz que a primeira é considerada de natureza formal, científica, sistematizada, associada a contextos de sala de aula e a segunda como informal, espontânea, como conhecimento do dia a dia, associada às ruas, a casa e a contextos sociais.

4 necessitamos produzir ou reproduzir a Matemática existente dos nossos antepassados, dos povos antigos. Nesse sentido, é necessário procurarmos entender o processo epistemológico da Matemática, ou seja, o processo gerativo desse conhecimento, o porquê de sua organização e sistematização. Um dos caminhos mais pertinentes para se chegar à compreensão do conceito posto acima e, por consequência, dar melhor significado ao conhecimento matemático atual é o da própria História da Matemática. Nela vemos que durante muitos anos se desprezou toda e qualquer visão que não derivasse do modelo matemático europeu. Todo conjunto de saberes que não se enquadrava no modelo eurocêntrico não foi admitido pelas elites como conhecimento científico. Desta forma, a própria Matemática foi produzindo uma linguagem universal, mas seu verdadeiro sentido acabou sendo encoberto para boa parte das comunidades que não se enquadravam ao modelo imposto, como evidenciado nos trabalhos de Bicudo e Garnica (2003), e D Ambrósio (2005, 2002, 1998). Em princípio, isto causou muitos entraves no desenvolvimento da Matemática enquanto ciência, uma vez que a visão eurocêntrica despreza o fato de que todas as pessoas, todos os povos, em diferentes culturas, possuem formas de lidar com o conhecimento matemático que lhes são próprias. Isto pode ser observado em grupos indígenas brasileiros, em comunidades agrícolas do interior do Brasil, em moradores de centros urbanos, dentre outros. Todos produzem alguma forma de conhecimento matemático, como vemos em pesquisas como as de Santos (2011), Rodrigues (2010), Brito, Lucena e Silva (2006); Pereira (2006); Costa e Silva (2005); Esquincalha (2004); Bandeira (2004); Bandeira e Morey (2002), dentre muitos outros. É claro que estes conhecimentos estão fortemente ligados às práticas, vivências e às necessidades de cada um destes grupos em questão. O cotidiano está impregnado de saberes e fazeres próprios da cultura. A todo instante os indivíduos estão comparando, classificando, quantificando, medindo, explicando, generalizando, inferindo e de algum modo avaliando, usando assim os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios à sua cultura. As raízes culturais que compõem a sociedade são as mais variadas. A Matemática é uma forma cultural, do ponto de vista da Etnomatemática, que tem suas origens num modo de trabalhar quantidades, medidas, formas e operações, características de um modo de pensar, de raciocinar e de seguir uma lógica localizada num determinado sistema de pensamento. Esta visão serviu para quebrar muitos paradigmas acerca da Educação Matemática.

5 Não muito diferente das demais civilizações, o homem sertanejo também desenvolveu um conhecimento matemático bastante interessante, que pode facilitar a compreensão de diversos conceitos e subsidiar a prática pedagógica da Matemática, uma vez que estes saberes são concretos e fazem parte do convívio de alguns adultos, jovens e crianças sertanejas, ao menos em parte do sertão pernambucano, como ocorre na cidade de Tacaratu, sertão do São Francisco. A este tipo de conhecimento matemático, a essas habilidades de um determinado povo, de uma determinada cultura, damos o nome de ticas de matema que seria a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender, de agir numa situação (D Ambrósio, 1993, p. 91). Nesse sentido, os processos de efetuar um cálculo, de realizar contagens, medições, ordenações e classificações encontradas em grupos culturais seriam também necessários para o desenvolvimento do conhecimento matemático. 2. AS TICAS DE MATEMA DOS COMERCIANTES DE TACARATU 2 Um sistema adotado durante muito tempo para medir e quantificar cereais no sertão é ainda encontrado em Tacaratu. Esta cidade dista 453 quilômetros de Recife, capital do estado de Pernambuco, e está em um vale ao sul da ribeira do Rio Moxotó, no alto da serra de mesmo nome. Tacaratu significa na língua Pindaé serras de muitas pontas ou cabeças. O município assinala sua existência desde o século XVII, tendo como origem uma maloca de índios, denominada Cana Brava. Ele foi alvo de uma missão dirigida por padres da Congregação de São Felipe Nery, dando lugar a aldeia chamada de Brejo dos Padres, que futuramente veio a se tornar a cidade de Tacaratu. O município atualmente é composto por dois distritos e noventa povoados, sendo o primeiro distrito a sede do município de Tacaratu e o segundo distrito a Vila de Caraibeiras. Hoje em dia ainda existem algumas tribos indígenas na região e estas contribuíram e contribuem para o surgimento e formação da cultura local. A partir de uma abordagem etnográfica e de convívio na região, identificamos indícios de atividades etnomatemáticas nesse município. A utilização da cuia no comércio local de Tacaratu se refere a uma forma de quantificar grãos, comumente vendidos nas feiras livres do nordeste, tais como feijão, milho, arroz, etc. e também outros produtos de consumo da alimentação do sertanejo como a farinha de mandioca, por exemplo. Esses alimentos são comumente vendidos por quilo e grama (unidades de 2 As ticas de matema descritas nesse artigo são fruto da pesquisa de Lima; Nascimento; Santos (2005).

6 medidas de massa) nos supermercados, mercadinhos e feiras de todo o Brasil. O referido sistema de medidas de massa utiliza a cuia, nome utilizado na região, que se refere a uma caixa cúbica de madeira. A pesquisa de campo (pesquisa empírica) aconteceu entre os meses de julho e dezembro de 2005. A mesma foi realizada apenas nos dois distritos da cidade (Centro e Vila Caraibeiras), uma vez que nessas regiões é que se encontram o comércio e as feiras da cidade, onde ainda é comum localizar alguns comerciantes que trabalham com a cuia. Procuramos trabalhar no dia em que ocorre a feira da região, entrevistando e questionando todos os comerciantes de trabalhavam com a cuia e que aceitavam participar deste processo da pesquisa. O passo inicial foi identificar e se familiarizar com os nomes do sistema por eles utilizado e o do instrumento de medidas já citado, a cuia. A primeira descoberta interessante foi que ao invés de serem pesados, os produtos eram medidos em recipientes padronizados e assim eram comercializados por toda a região. Esta prática foi uma ideia desenvolvida para suprir carência de balanças, que a mais de um século atrás era um instrumento muito caro e um bem de poucos. Por outro lado vinha também a desconfiança dos produtores, pois as balanças mais primitivas não eram tão precisas e muitos atravessadores se aproveitavam disto para levar vantagem em cima dos agricultores. Desta forma, medir seus produtos em recipientes ao invés de pesá-los tornou-se uma solução segura e viável para o homem do campo no momento de comercializar seus produtos. A criação do sistema de medidas nasceu com base numa unidade de volume do sistema internacional de medidas, o litro. Neste sistema de medida o recipiente litro é uma medida padronizada formada por uma caixa de madeira cúbica, cujo interior mede 10 centímetros de lado, perfazendo um volume de 1.000 cm 3, o que corresponde a 1dm 3, que é exatamente igual a 1 litro. Figura 01 Descrição do Litro

7 Quando questionados sobre o conhecimento da unidade litro, os comerciantes nas feiras da região respondiam que litro correspondia a 01 (uma) cuia cheia de cereais. Quando perguntamos se o litro serviria apenas para medir quantidades de líquidos, como a água e o leite, por exemplo, eles explicavam que isto era possível também, mas litro era uma cuia cheia de feijão ou farinha, por exemplo. Isto nos revela que, de alguma forma, aquelas pessoas sabiam a correlação entre 01dm 3 e 01 litro, já que utilizam a nomenclatura litro para a cuia cheia. Porém, a unidade litro não se refere apenas às medidas de capacidade como comumente utilizamos. Neste sentido, de alguma forma, em algum tempo atrás, alguém que conhecia o nosso atual sistema formal de medidas e a nossa Matemática Formal, instituída numa visão eurocêntrica, sugeriu ou idealizou a utilização do sistema litro, para suprir questões culturais de necessidade da região, já apontadas acima. A descoberta seguinte foi a da utilização de múltiplos da unidade litro. Quando questionados sobre como faríamos para comprar uma grande quantidade de feijão, por exemplo, os comerciantes apresentaram um novo instrumento de medidas. Essa segunda medida é a cuia. Ela é uma expressão indígena que significa recipiente onde se cabem muitas unidades. Fazendo jus ao nome, o recipiente cuia, também conhecido por salamim, é uma caixa em forma de prisma cujo seu interior mede 16 cm de altura, por 25 cm de comprimento e 25 cm de largura, perfazendo um volume de 10. 000 cm 3, o que corresponde a 10 dm 3, ou seja, 10 litros. Figura 02 Descrição da Cuia (Salamim) A terceira medida é a saca, que até hoje ainda é utilizada mundialmente na comercialização do café e nacionalmente na comercialização de boa parte dos cereais e dos produtos vendidos em atacados e em grandes produtores. Porém esta saca possui algumas particularidades. Ao contrário da medida em quilogramas, que considera uma saca de feijão, por exemplo, pesando 50 kg, a saca do sistema cuia-litro não é dada

8 pela massa em quilogramas e sim pelo volume em cuias. Sendo assim, neste sistema uma saca mede 06 cuias de salamim, que correspondem a 60 dm 3, ou 60 litros. Vale salientar que a saca era um grande envelope de tecido, a maioria deles feitos em estopa, medindo cerca de 1,20 m de comprimento por 0,60 m de largura. Em função do desconfortável peso que ficava uma saca quando cheia, o que causava bastante danos físicos aos carregadores, o envelope da saca atualmente utilizado na região tem como medidas cerca 1 m de comprimento por 0,50 m de largura, comportando apenas 05 cuias, ao invés de 06. 2.1 AS MEDIDAS RENTES E AS MEDIDAS EM COCULOS As medidas deste sistema, descrito acima, são também chamadas de medidas rentes. Medida de maneira ao colocar os cereais dentro do interior do litro ou da cuia, passa-se uma régua rente à base superior para que o volume não ultrapasse a altura do recipiente. Essa medida chamada de medida rente assim como as unidades de medidas do sistema recebem também este nome, litro rente (ou litro prato) e cuia rente (ou cuia prato), ou também salamim, como é mais conhecida. Porém, a forma com que mais se utiliza esse sistema é através das medidas em coculo. A palavra coculo na verdade é um desvio de pronúncia da palavra cálculo, que neste contexto assume o significado de bem medido, de capacidade máxima, de medida calculada, como explicado não só pelos comerciantes da região. No processo de medição em coculo o conteúdo é colocado na cuia ou no litro de maneira que o volume do recipiente ultrapassa as bordas do recipiente até formar uma pirâmide com este excesso, o volume que ultrapassa as bordas do recipiente é que é o chamado coculo. Figura 03 Descrição da Medida em Coculo

9 2.2 RELAÇÕES EXISTENTES ENTRE AS MEDIDAS RENTES E AS MEDIDAS DE COCULO Existem relações matemáticas muito interessantes que podem ser encontradas entre as medidas de coculo e as medidas rasas. São elas: 10 litros de coculo constituem, juntas, um volume igual ao de um salamim de coculo (assim como na medida rasa); Uma cuia de coculo aproxima-se bastante, em muitos casos, de 11 litros rasos; O coculo de uma cuia, ou seja, o excesso de medida que ultrapassa as bordas da cuia formando uma pirâmide grande de base quadrada, possui um volume de aproximadamente 1 litro raso. 2.3 O MEIO LITRO E A MEIA CUIA Outra técnica muito interessante, que inclui também o campo da geometria, utilizada dentro deste sistema, é a maneira de medir o meio litro e a meia cuia. Inteligentemente os comerciantes perceberam que toda vez que mediam cuia de farinha, ao começar derramá-la no saco formava-se uma área plana de farinha que se estendia dos ângulos da base até o ângulo opostos superiores do recipiente. Abertura do Recipiente Farinha sendo derramada 3. LEVANDO O SISTEMA PARA A SALA DE AULA: PROPOSTA PEDAGÓGICA A formação do aluno como cidadão hoje é uma das questões contempladas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática (BRASIL, 1998). A preocupação dos educadores em geral, é a de transformar a sala de aula em um ambiente que contribua para essa formação.

10 A resistência do sistema educacional em adaptar os conteúdos matemáticos às condições determinadas pela dinâmica cultural do lugar acaba distanciando o aluno da escola. Considerando que o conhecimento construído na escola deve servir como instrumento de compreensão de questões mais amplas, a Educação Matemática tende a estar atenta à compreensão de contextos socioculturais diversificados, de modo a incluir aspectos de educação informal, contribuindo para a construção de uma proposta de Educação Matemática realmente significativa. Nesse contexto, a Etnomatemática apresenta-se como uma possibilidade real de entender o ciclo de geração, organização e difusão do conhecimento, observando o pensamento da atividade matemática de certo grupo. O cotidiano está impregnado dos saberes fazeres próprios da cultura. Os indivíduos trocam, aprendem, ensinam conhecimentos que adquirem de maneira informal, onde a escola não entra como mediadora desse conhecimento, este é fruto de sua realidade como diz Ferreira (2003, p.18): A proposta pedagógica da Etnomatemática é fazer da matemática algo vivo, lidando com situações reais no tempo (agora) e no espaço(aqui). E, através da crítica, questionar o aqui e agora. Ao fazer isso, mergulhamos nas raízes culturais e praticamos dinâmica cultural. Estamos, efetivamente, reconhecendo na educação a importância das várias culturas e tradições na formação de uma nova civilização, transcultural e transdisciplinar. (...) Por tudo isso, eu vejo a Etnomatemática como um caminho para uma educação renovada, capaz de preparar gerações futuras para uma civilização mais feliz. Quando ensinamos Matemática nas escolas, geralmente, não permitimos que os alunos tenham acesso a vivência necessária para chegar à Matemática real, pois negamos a eles uma série de atitudes e habilidades, para que eles criem um ambiente adequado para que possam fazer Matemática espontaneamente. É evidente a necessidade que as escolas têm de acelerar o processo de construção e aquisição do conhecimento que a humanidade levou milhares de anos acumulando. Porém, não podemos oferecê-lo pronto e acabado para os alunos. Devemos, portanto, dar oportunidade para que eles possam vivenciar um pouco essa experiência, refletindo sobre suas realidades, para que sejam conduzidos ao conhecimento. Por isso, devemos dar o enfoque da Etnomatemática para a Matemática, trazendo a sua contribuição para as escolas, proporcionando aos alunos uma vivência que somente faça sentido se eles estiverem em seu ambiente natural e cultural. Neste sentido estamos criando situações variadas que possam despertar e aguçar o interesse e a curiosidade que os alunos possuem naturalmente, para tornar a Matemática agradável

11 de ser aprendida, tendo como objetivo conectar a Matemática ensinada nas escolas com a Matemática presente em seu cotidiano. Nesta visão, D Ambrósio (1993, p. 327) põe que: É necessário modificarmos a imagem que a matemática possui de funcionar como uma máquina seletora que determina quais alunos irão concluir cada estágio escolar. Devemos discutir também sobre a importância da matemática para a construção da cidadania, com ênfase, principalmente, na participação crítica e autônoma dos alunos, proporcionando-lhes o estabelecimento de conexões da matemática com outros temas de sua vida cotidiana. Os professores enquanto mediadores do processo de ensino-aprendizagem da Matemática devem esclarecer ao aluno a importância desta ciência como instrumento para melhor compreensão do mundo que está a sua volta e, também, como um conhecimento que procura estimular o interesse, a curiosidade, a criatividade, a criticidade, a investigação e a resolução de problemas. Mas, para que estas habilidades sejam adequadamente desenvolvidas nós, professores e educadores, devemos explorar os conteúdos matemáticos de maneira inovadora. O conhecimento matemático construído e a sua utilização não foram feitos somente por matemáticos e cientistas, mas também, por maneiras diferentes de encarar as coisas que nos cerca, por todos os grupos sociais que, ao longo da história, desenvolveram e utilizaram as habilidades necessárias para contar; localizar; medir; representar e explicar o mundo, de acordo com as suas necessidades e interesses. Assim, a Matemática surge de acordo com as necessidades do momento histórico e por isso temos que valorizar o saber matemático culturalmente construído para que possamos aproximá-lo do saber escolar, no qual os alunos fazem parte, para que eles se tornem efetivamente o agente ativo desse processo de ensino-aprendizagem. Dessa forma, estaremos contribuindo para superar o mito que a Matemática é um conhecimento direcionado somente para uma elite que está presente em determinados grupos culturais ou em algumas sociedades desenvolvidas. Ao utilizarmos a Matemática como instrumento social e de cidadania devemos assegurar uma forte fundamentação conceitual, para evitarmos que os conteúdos sejam explorados somente sob uma forma instrumentalizada ou folclórica, desenvolvendo o raciocínio lógico e a capacidade de pensar, para que os alunos possam ir além da simples memorização, contribuindo dessa maneira para a evolução do espírito crítico e para mostrar a Matemática como um saber ligado à vida e a história dos seres humanos.

12 É no sentido do que foi discutido acima, nesta parte do artigo, que propomos uma alternativa de trabalhar o sistema de medidas existente em Tacaratu (que utiliza a cuia como medida de massa), ao menos nas escolas da região. O sistema Litro, Cuia e Saca pode ser trabalhado para dar mais significado ao nosso sistema de medidas de massa e de capacidade, que é baseado no Sistema Internacional de medidas. Antes, porém, sugerimos um trabalho bem feito entre os conceitos de peso e massa 3 que não abordaremos neste trabalho. Seria importante que, ao iniciar o trabalho, todos os alunos estivessem familiarizados com sistema de medidas da cuia, pois podem existir alunos que não conheçam o sistema apesar de viverem em Tacaratu. Neste caso, o professor pode realizar visitas às feiras livres da região mostrando aos alunos como o sistema funciona. Isto serviria não só como informação para os que desconhecem o sistema, mas também, como campo de pesquisa para os estudantes. Eles poderiam questionar os comerciantes da região sobre o sistema, que produtos mais vendem, qual dos recipientes é mais utilizados, etc. Outra alternativa mais voltada para a sala de aula seria trabalhar o sistema no próprio ambiente da sala, fazendo manipulações e medições com os alunos utilizando as caixas de medidas. Após esta fase, o professor trabalharia a unidade fundamental do sistema, o litro, e os seus múltiplos, o salamim e a saca e o significado da palavra cuia no sistema, geralmente adotada a partir do recipiente salamim. Dando continuidade ao estudo, o próximo passo seria trabalhar as medidas rentes e as medidas de coculo, já mencionadas, bem como a maneira de se medir meia cuia. Estando bem familiarizados com o sistema, o trabalho seguinte seria com o Sistema Internacional de medidas adotado pelo Brasil, assim como em outros países latinos, que utiliza o grama como unidade fundamental. O pontapé inicial seria apresentar o sistema adotado em nosso país e, em seguida, levantar questionamentos do tipo: Trabalhamos este sistema de medidas na nossa cidade? Em que situações? Por que será que nas feiras existem comerciantes que trabalham com a cuia e não com o quilo? Conhecido o nosso sistema de medidas de massa e esclarecidas às possíveis dúvidas e análises com relação ao sistema cuia, é hora de apresentar os múltiplos e 3 Massa é a quantidade de matéria que um corpo possui, sendo, portanto, constante em qualquer lugar da terra ou fora dela. Peso de um corpo é a força com que esse corpo é atraído (gravidade) para o centro da terra.

13 submúltiplos do grama. O ideal, neste processo é esclarecer ou apontar pistas que mostrem o quilograma como a outra unidade mais trabalhada nesse sistema, após o grama. Nessa fase das explicações, caso não tenha acontecido, seria interessante apresentar tópicos históricos da região, com possível auxílio do professor de história da turma, mostrando, inclusive, a necessidade e o surgimento do sistema cuia em Tacaratu, já comentado anteriormente. De crucial importância, pegando o viés histórico do trabalho, o professor deve esclarecer que este sistema de medidas que adotamos no nosso país foi imposto ao Brasil em 1862 e idealizado pelo governo francês em 1795. Possivelmente, a idealização do sistema parte da necessidade de trabalhar os sistemas de medidas atrelados ao sistema de numeração decimal, uma vez que as contagens também são feitas com múltiplos de dez. Antes, as estimativas de volume eram o punhado que foi substituído pela cuia de cinco litros. A imposição foi feita pelo governo português da época, na tentativa de eliminar as raízes culturais de nosso povo (utilização do punhado e cuia), como mostrado por Senna, apud Bandeira (2004, p. 49). Em hipótese, como Tacaratu surgiu no século XVII, o idealizador do sistema na região, que já deveria conhecer o sistema imposto por Portugal, fez as adaptações necessárias e continuou a trabalhar com a cuia como unidade de medida, porém com capacidade diferente. Isto preservou as raízes culturais na região. Para trabalharmos as medidas de capacidade, o sistema Litro, Cuia e Saca nos fornece a correlação fundamental entre volume e medidas de capacidade do sistema adotado no Brasil: 1l (um litro) equivale a 1dcm 3 (um decímetro cúbico). O professor pode trabalhar o conceito de volume, partindo dos recipientes litro, salamim e saca, inclusive resgatando as correlações existentes: 10 litros equivale a 01 salamim e 01 saca comporta 05 cuias ou salamins. Esta abordagem sobre volume poderá esclarecer a questão do por que utilizamos o litro, unidade fundamental, para medidas de capacidade e não de volume. O aluno deve perceber que há a necessidade de preenchermos todo o espaço dentro de um recipiente qualquer para termos realmente o volume de um sólido (o que não acontece quando preenchemos um recipiente com sólidos de qualquer gênero). Por isso, os líquidos são utilizados nas medidas de capacidade e assim, a razão de termos leite, óleo, refrigerante, suco, dentre outros, como medidas de capacidade, utilizando o litro como unidade fundamental. Uma boa experimentação seria utilizar um recipiente transparente de 01 (um) litro e preenchê-lo com vários sólidos (grãos, pedras, sólidos menores, etc.) e também com vários líquidos (água, óleo, etc.). Eles perceberão facilmente que com os líquidos o volume permanece constante, ou seja, o recipiente fica

14 totalmente preenchido. Colocando material sólido no recipiente irão aparecer pequenos espaços entre os sólidos, não preenchendo todo o volume do recipiente. Quanto maior for o volume do sólido posto no recipiente menor será a ocupação do espaço do mesmo (volume do recipiente). A partir deste entendimento, os alunos podem ter contato com a convenção: 01 kg (um quilograma) equivale a 01 1dcm 3 (um decímetro cúbico) que também equivale a 01 l (um litro). O professor deve esclarecer que isto só é possível utilizando-se água pura (destilada), com uma temperatura constante de 4º C e que esta condição foi estabelecida para relacionar as medidas de massa, com as medidas de capacidade e volume. Importante dar pequenos esclarecimentos sobre água destilada 4 e sobre a medida de temperatura Celsius 5. Com isto, pretende-se esclarecer aos alunos que há uma relação entre as medidas de massa, de capacidade e volume, mas esta difere da que acontece no sistema Cuia, Litro e Saca. A diferença se dá exatamente porque não se trabalha apenas com água destilada com litro no sistema de medidas de Tacaratu e sim com farinha e outros grãos de consumo da população. Então, as pessoas ao comprarem 01 l (um litro) de feijão ou farinha, por exemplo, não estariam levando um quilo deste alimento, como comumente encontramos estes produtos em mercados e supermercados, já empacotados, ou quando pedimos para pesá-los em alguma balança. Um litro, a partir da cuia, tem mais que um quilograma no nosso sistema, uma vez que essa correlação só é possível com a água destilada. Esse seria mais um momento de experimentação do professor com os alunos. Sugerimos que eles efetuem o preenchimento de um litro de vários grãos comprados com a cuia e depois efetuem a pesagem, em qualquer tipo de balança, com as devidas explicações pertinentes a balança utilizada, verificando a quantidade de massa, vulgarmente chamada de peso, de um litro de cada tipo de grão. Isso abriria uma boa discussão para o trabalho do conceito de densidade pelo professor de ciências, o que não será comentado neste trabalho. O professor a partir de então, deve deixa claro que trabalhar com a cuia não está errado, que ninguém quer levar vantagem com isto. Comprar um litro de feijão ao invés de um quilo, por exemplo, seria mais vantajoso em termos de volume, de quantidade do produto, porém eles devem verificar o que é economicamente melhor. Será que um litro 4 Água destilada é água que foi obtida através da destilação (condensação do vapor de água obtido pela ebulição) de água normal que contém, em geral, outras substâncias dissolvidas. 5 Celsius ( C) designa a unidade de temperatura, assim denominada em homenagem ao astrônomo sueco Anders Celsius (1701 1744), que foi o primeiro a propô-la em 1742.

15 com a cuia é mais barato que um quilo? Este seria um trabalho interessante e que não foi objeto de estudo neste trabalho. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo nos evidenciou que mesmo conhecendo o sistema de medidas de massas utilizado oficialmente no Brasil e que é exaustivamente estudado e trabalhado nas escolas, existem pessoas de Tacaratu que ainda utiliza um velho sistema de medidas da região, que perdura desde o início das atividades comerciais no município. Isso evidencia que as raízes culturais desses cidadãos influenciam os procedimentos matemáticos práticos por eles utilizados, independentemente do que é aprendido nas escolas, trazendo muitas vezes a cultura imposta por outros povos. O presente abre espaço analisarmos as possíveis correlações entre a cuia e as unidades de medidas de massa do nosso sistema, principalmente as mais utilizadas como o quilo e a grama, com indagações do tipo: Quantos quilos e/ou gramas há numa cuia? Isto nos abre espaço, também, para detalhar melhor as relações de volume e aprofundar as correlações com o sistema de medidas de massa. Esses e muitos outros saberes populares podem ser utilizados como instrumentos pedagógicos pelo professor e pode facilitar muito a compreensão de conceitos matemáticos pelos estudantes da região, uma vez que os mesmos estão em contato direto com estes conhecimentos e poderiam ser aproveitados na sala de aula. A Etnomatemática privilegia o raciocínio qualitativo. Um enfoque etnomatemático está ligado a uma questão maior, raramente desvinculado de outras manifestações culturais tais como religião, arte ou conhecimento popular. A Etnomatemática traz, assim, uma concepção multicultural e holística da Educação. A etnomatemática pode ser uma ferramenta impressionantemente simples e eficaz na tarefa de desmistificar a Matemática e aproximá-la das necessidades locais. Procuramos neste estudo trabalhar a Etnomatemática como recurso facilitador, para que o aluno compreenda problemas matemáticos. É preciso, neste sentido, que ele mergulhe em sua cultura e entenda sua origem. Porém, para que isto ocorra, é necessário que as escolas respeitem as concepções de mundo que nossos alunos possuem. Assim, nossos alunos compreenderão que a Matemática existe dentro de uma cultura e por meio dela nós agimos sobre nossa realidade, com intuito de transformá-la ou preservá-la.

16 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA, Francisco de Assis. Um caminho para uma pesquisa em Etnomatemática: o caso dos horticultores da comunidade de Gramorezinho in: Educação (Etno) Matemática Pesquisa e Experiências. Natal, Flecha do Tempo, 2004. BANDEIRA, Francisco de Assis; MOREY, Bernadete Barbosa. A matemática e a cultura de hortaliças: Uma pesquisa em etnomatemática in: Anais do V EPEM, Garanhuns, 2002. CD-ROM. BICUDO, Maria Aparecida Viggiani; GARNICA, Antonio Vicente Marafioti. Etnoargumentações: ultrapassando o panorama eurocêntrico in: Filosofia da Educação Matemática. Belo Horizonte, Autêntica, 2003. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais de matemática. Brasília, MEC: SNEF, 1998. BRITO, Maria A; LUCENA, Isabel; SILVA, Francisco Hermes da. Etnomatemática e a Cultura Amazônica: Um caminho para fazer Matemática em sala de aula in: Anais do I SIPEMAT, Recife, 2006. CD-ROM. COSTA, Wanderleya Nara Gonçalves; SILVA, Evanisio da. Matemática do negro no Brasil in: Scientific American Brasil. Edição Especial: Etnomatemática. São Paulo, Duetto, 2005. D AMBRÓSIO, Ubiratan. Volta ao mundo em 80 matemáticas in: Scientific American Brasil. Edição Especial: Etnomatemática. São Paulo, Duetto, 2005. Etnomatemática: Elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2002. Etnomatemática. São Paulo, Ática, 1998. A transdisciplinaridade como acesso a uma história holística in: Rumo a nova transdisciplinaridade: sistemas abertos de conhecimento. São Paulo, Summus, 1993. ESQUINCALHA, Agnaldo C. Etnomatemática: Um estudo da evolução das idéias in: Anais do VIII ENEM, Recife, 2004. CD-ROM. FERREIRA, Eduardo Sebastiani. Cidadania e Educação Matemática. Revista da SBEM, ano 1, número 1, 2º semestre 2003. KNIJNIK, Gelsa. Exclusão e resistência: educação matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.. Itinerários da etnomatemática: questões e desafios sobre o cultural, o social e o político na educação matemática. In: KNIJNIK, Gelsa; WANDERER,

17 Fernanda; OLIVEIRA, Claúdio José de (Org.). Etnomaremática, currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. LIMA, Jorge Antônio; Nascimento, Zita Maria da Silva; SANTOS, Ernani Martins dos. A etnomatemática e as suas contribuições para o homem sertanejo em Tacaratu. Monografia de Especialização em Programação do Ensino de Matemática. FFPG, 2005. MEIRA, Luciano. O mundo real e o dia-a-dia no ensino da matemática in: A educação matemática em revista. Ano 01, nº. 1, SBEM, p. 19-27, 1993. MENDES, Iran de Abreu. Matemática: Ciência, Saber e Educação in: Educação (Etno) Matemática Pesquisa e Experiências. Natal, Flecha do Tempo, 2004. PEREIRA, Franz K. A Matemática entre a floresta e o rio: Uma experiência de Etnomatemática em classes multiseriadas no Marajó PA in: Anais do I SIPEMAT, Recife, 2006. CD-ROM. RODRIGUES, Thiago Donda. A Etnomatemática no contexto do ensino inclusivo. Curitiba: CRV, 2010. SANTOS, E. M. A Etnomatemática como aporte às práticas de ensino de jovens e adultos. São Cristóvão: Anais do V Colóquio Internacional de Educação e Contemporaneidade, 2011.. Uma proposta de como abordar na sala de aula o litro, a cuia e a saca um sistema de medidas utilizado no sertão de pernambucano. Belo Horizonte: IX Encontro Nacional de Educação Matemática, 2007.. Cuia e litro: Um estudo etnomatemático no município de Tacaratu. Recife: Simpósio Internacional de Pesquisa em Educação Matemática, 2006a.. Cuia e litro: Um estudo etnomatemático no município de Tacaratu. Caruaru: VI Encontro Pernambucano de Educação Matemática, 2006b. SPINILLO, Alina Galvão. Concepções do professor sobre o conhecimento extra-escolar do aluno e suas implicações para o ensino da matemática in: Boletim GEPEM. Nº. 47 Julho/Dezembro, p. 11-30 2005.