Tese principal. I. Reificação em Lukács

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Transcrição:

Reificação (2005), de Axel Honneth Referência do texto base: HONNETH, Axel. Verdinglichung. Eine anerkennungstheoretische Studie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2005. Textos de referência: Reificação e a consciência do proletariado, de Lukács; Ser e Tempo, de Heidegger; Pensamento qualitativo e Pensamento afetivo, de Dewey. Tema: Conceito de reificação em Georg Lukács, Martin Heidegger e John Dewey, lido e problematizado pela teoria do reconhecimento de Honneth. Problema: Como o conceito de reificação pode ser reformulado, levando em conta, na medida do possível, o prosseguimento da intuição original de Lukács? (p.62) Faz sentido reatualizar o conceito de reificação como um estado de coisas de distorção ou atrofia de uma prática humana original? Objetivo: Reelaborar o conceito de reificação com base na teoria do reconhecimento. Tese principal O conceito de reificação pode ser descrito, por Honneth, como esquecimento do reconhecimento: o reconhecimento teria uma precedência ontogenética, mas, em um contexto prático, pode ser ignorado nas relações de um indivíduo com o outro, com seu meio circundante e consigo mesmo. Para demonstrar isso, Honneth esclarece o conceito de reificação em Lukács (i), para posteriormente relacioná-lo com as teorias de Heidegger e Dewey (ii), esboçar a sua concepção de reificação como esquecimento do reconhecimento (iii) e discutir as fontes sociais da reificação (iv). Como conclusão debate-se a questão da totalidade em Honneth que pode ser percebida no texto (v). I. Reificação em Lukács O conceito de reificação de Lukács no ensaio A reificação e a consciência do proletariado (1923), feito através da leitura de Marx, significa que uma relação entre pessoas possui o caráter coisificante (p.19). Este padrão de relação reificada tem lugar tanto nas relações do sujeito com outros sujeitos, quanto com o meio circundante e consigo mesmo. Em Lukács a origem da reificação é a expansão da forma da mercadoria (das trocas) na sociedade capitalista, o que ele descreve parcialmente com a ideia de fetichismo da mercadoria (p.20,21). Mesmo com a forte raiz marxista, Lukács oscila entre a tese de que a reificação advém da expansão do capitalismo e a tese weberiana de racionalização crescente, na leitura de Honneth. A partir disso ele dá um salto da consequência do capitalismo nas relações para uma segunda natureza humana: todo sujeito que participa da forma de vida capitalista precisa se voltar para o costume habitual de se perceber e perceber o mundo circundante 1

de acordo com o esquema de objetos puramente coisificados (p.21). Em Lukács esse problema aparece através do indivíduo que se vê como sujeito passivo dos processos sociais. De acordo com tal percepção reificada, o indivíduo só conhece o mundo, aos outros e a si mesmo nas características de valorização quantitativas (p.22,23). O fenômeno social da reificação pode ser visto, segundo Honneth, de três modos distintos: como uma falha epistêmica, como uma ação moralmente censurável ou como uma forma distorcida da práxis social. Esta última parece prevalecer na análise que Honneth intenta sobre o tema, pois não se trata de uma predisposição cognitiva, nem de uma falha de caráter, mas sim de um modo de agir já socialmente conformado. Se reificação é uma postura ou comportamento distorcido, que foi tão difundida no capitalismo que se transformou em uma segunda natureza humana, ela não é uma questão puramente cognitiva, nem moral, porque falta o desígnio humano: todos são socializados em um sistema de comportamentos reificantes (p.24,25) isso representa antes um fato social que uma injustiça moral. Mesmo assim esse conceito de reificação possui implicações normativas, pois se contrapõe a formas verdadeiras ou reais das práticas sociais. Moral não significa, portanto, contrariedade a princípios morais legitimados, mas a práticas humanas corretas, o que depende de premissas de ontologia social ou de antropologia filosófica, que não ofereçam, porém, um dever-ser abstrato, mas concreto, como pretendeu Lukács. II. Lukács, Heidegger, Dewey e Honneth Haveria duas alternativas para fundamentar a forma verdadeira, não distorcida, da práxis humana em Lukács: a reificação é tratada como segunda natureza na tese oficial, pela premissa idealista de que toda efetividade é produzida pela atividade do trabalho do gênero humano. A tese não oficial, mas que Honneth entende ser comprovada no texto de Lukács, é aquela que traz o modus observante em contraposição à forma ativa e envolvimento existencial. Esta segunda tese traria um surpreendente parentesco com as teorias de Heidegger em Ser e Tempo e de Dewey, principalmente em Pensamento qualitativo (p.29). Os três autores partem da crítica ao dualismo entre sujeito e objeto da filosofia moderna. O primado da representação de uma apreensão neutra da realidade seria responsável pelo ofuscamento ontológico. Lukács e Heidegger se afastam em seus objetivos, mas têm uma intenção em comum: o da destruição da representação de um sujeito neutro frente ao mundo. Segundo Honneth, para ambos as relações reificadas representam apenas um falso quadro de interpretação, um véu ontológico, atrás do qual se encobre a faticidade do real modo de existência do homem (p.33). De todo modo, para 2

Lukács se trata menos de uma prevalência da falsa ontologia e mais de uma generalização social da troca de mercadorias, graças às pressões que os membros de processos de cálculo de trocas exercem na interpretação habitual dos sujeitos (p.36). O problema estaria no fato de o capitalismo ter destruído as chances da práxis humana participativa interessada. Para Lukács, a superação das relações reificadas se daria pela ação da classe trabalhadora, que pode chegar à irrupção de que os objetos sociais não são as coisas, mas as relações entre humanos. Por outro lado, Heidegger enxerga este estado de coisas como algo causado pela prevalência da atividade de desvelamento do Dasein, segundo um problema da ordem da ontologia tradicional: o modo da contemplação [Vorhandenheit] teve o efeito negativo e destruidor nas práticas da vida cotidiana e na relação com os objetos à disposição [Zuhandenheit]. Em Heidegger, o cuidado [Sorge] possui uma primazia não somente genética, mas também conceitual frente à apreensão neutra da realidade (p.39). Honneth então substitui a categoria heideggeriana do cuidado pela categoria hegeliana do reconhecimento, se valendo da teoria de Dewey para essa ponte (p.39). A mesma separação apontada por Heidegger surge em Dewey através de uma elaboração secundária, que separa elementos emocionais dos cognitivos, como forma de criar um objeto de conhecimento lapidado, com a qual o indivíduo pode se confrontar de forma neutra (p.42). O engajamento prático é a forma de interação com o mundo pela qual o sujeito tem uma experiência originária, uma vivência qualitativa, que oferece ao sujeito o acesso ao mundo (p.43). Do mesmo modo, para Honneth, a postura do reconhecimento é anterior tanto genética quanto categoricamente a todas as outras representações. Segundo ele, nesse ponto, o conceito de reconhecimento compartilha não somente com o engajamento prático de Dewey, mas também com o cuidado de Heidegger e a participação interessada [Anteilnahme] de Lukács, em um nível elementar, o mesmo pensamento fundamental da precedência de um interesse existencial no mundo, que se abastece com a experiência repleta de valores (p.42). Contribuindo para a mesma intuição de Lukács, Hedeigger e Dewey, portanto, Honneth tenta demonstrar que a forma primordial de acesso à realidade é o reconhecimento [Anerkennen], que precede tanto geneticamente quanto conceitualmente o conhecimento [Erkennen] desinteressado do mundo. Para isso Honneth parte do ponto de vista genético da aquisição da capacidade de tomada de perspectiva (p.46), para depois demonstrá-la categorica e sistematicamente. O ponto de partida de Honneth é a necessidade da tomada de perspectiva como origem do pensamento simbólico, o que estaria também em Georg Mead, Winnicott, Piaget, Davidson e Freud. Mas a própria tomada de perspectiva pressupõe algo anterior, que é o reconhecimento com aquele outro. Do ponto de vista genético, Honneth pretende demonstrar isso com remissão a teorias sobre o desenvolvimento 3

cognitivo da criança, a partir da investigação sobre as causas do autismo. Segundo autores como Peter Hobson e Michael Tomasello, a identificação emocional com uma pessoa de referência externa é uma barreira crucial no desenvolvimento de autistas. Segundo eles, a assunção de perspectiva pela criança só possível se ela antes desenvolver um sentimento de pertença/ vínculo com seu cuidador (p.50). Do ponto de vista categorial se trata da argumentação já desenvolvida com ajuda de Heidegger, Dewey e Lukács, pretensamente sobre a mesma intuição: de que o envolvimento existencial precede a relação epistêmica com o mundo. III. Reificação como esquecimento do reconhecimento Levando em conta a primazia do reconhecimento defendida por Honneth, o reconhecimento não é o exato contrário da reificação, mas sua condição de possibilidade. A compreensão objetificante de estados de coisas e de pessoas não é uma pura oposição ao reconhecimento, mas um produto posterior possível (p.65). Tal forma de esquecimento de reconhecimento, as intenções de Lukács levadas ao mais alto nível, nós podemos chamar de reificação. A partir disso se tem em mente, por conseguinte, o processo através do qual se perde a consciência sobre as outras pessoas e o sobre o conhecimento delas, na medida em que ambos se dão graças ao seu interesse anterior e ao reconhecimento (p.68). Segundo essa compreensão mais simples de reificação como esquecimento do reconhecimento, o mundo social aparece como um todo de objetos simplesmente observáveis. Esta recolocação do conceito pode trazer uma série de problemas, que Honneth pretende tratar daí em diante no seu texto. Se, para Lukács, as pessoas se convertem, por força anônima do sistema, em grandezas sociais de mercado, deve-se perguntar como que os pressupostos do reconhecimento primário podem ser esquecidos pelos agentes? Para Honneth, esquecimento aqui não tem o sentido forte de desaprender o reconhecimento, mas sim da perda ou diminuição de atenção [Aufmerksamkeitsminderung], de que o conhecido se dá graças ao reconhecimento. Honneth traz, como exemplo hipotético, o caso de um jogador de tênis que, durante o jogo, relega ao segundo plano o fato de que o seu adversário é seu melhor amigo. Aqui Honneth não está defendendo que isso devesse ser levado em conta em um jogo de tênis, mas dando um exemplo de como é simples, de acordo com um contexto prático, se reificar algo. Outro exemplo é a reificação pela existência de esquemas de pensamento preconcebidos ou estereotipados, que criam não um esquecimento, mas uma contestação ou rejeição do reconhecimento. Outra questão a ser enfrentada é se podemos tirar conclusões sobre a relação do homem com o ambiente natural desse primado do reconhecimento (p.73). Segundo Honneth, Adorno ofereceria uma resposta para essa questão, no sentido de que seria sim possível o reconhecimento em relação 4

a objetos não humanos, mas com um sentido emprestado: de respeitar os aspectos e significados especiais de cada objeto, graças aos quais foram possíveis as concepções de outras pessoas (p.76). Dando um passo a mais que Adorno, para Honneth o reconhecimento da individualidade da pessoa passa pela percepção do modo peculiar com o qual essa pessoa se liga aos objetos (p.76), ou seja, pela consideração também dos aspectos adicionais de importância da relação entre a pessoa e o mundo (p.77). Nós percebemos animais, plantas ou coisas identificadas restritamente como coisas, sem perceber que elas possuem uma diversidade de sentidos existenciais para as pessoas que estão ao nosso redor (p.77). A possibilidade da autorreificação é também questionada por essa teoria, uma vez que os objetos do mundo externo são qualitativamente distintos do objeto interior (p.80). Honneth admite a possibilidade de o indivíduo tratar com seu objeto interior de maneira reificada, desde que se possa falar da precedência do reconhecimento também para a autorrelação dos indivíduos. Um sujeito que está em condição de articular e explorar uma autorrelação expressiva, precisa, antes de tudo, poder afirmar a si mesmo que sua vivência psíquica possui valor (p.89). Desse modo, Honneth esboça as três facetas da reificação: em relação ao mundo intersubjetivo, ao mundo objetivo dos fatos naturais (p.79,80), e ao mundo da vivência interior. IV. Origens sociais da reificação A origem da reificação para Lukács, a partir da generalização da troca de mercadorias, é tratada com desconfiança por Honneth, que pretende discutir as razões sociais de uma reificação sistemática de forma mais ampla. Ele pretende desenvolver, portanto, uma etiologia social (M. Nussbaum) da reificação (p.95). Em primeiro lugar, Honneth critica o efeito totalizante da sociedade de mercado capitalista sobre as três dimensões de interação do indivíduo consigo mesmo, com o outro, com as coisas (p.96). O que se indicou nesta análise, segundo Honneth, é que os diferentes aspectos da reificação não encontram um só contexto. A análise de Lukács tem a ver com a continuidade da tese da base e superestrutura, mas ele não demonstra, por exemplo, a colonização sistêmica da família, da esfera pública, da relação entre pais e filhos, do tempo livre. Além disso, as formas de reificação como racismo e machismo não estão tematizadas na simples expansão da forma da mercadoria. Sendo assim, se reificação é o esquecimento do reconhecimento, então sua etiologia, suas causas sociais devem ser procuradas nas práticas e mecanismos que proporcionam sistematicamente a reificação (p.99). Nesse sentido, a reificação advém de um uso instrumental do outro para os próprios fins ou da adoção de um sistema de crenças, seja uma visão de mundo ou uma ideologia (p.100). No 5

primeiro caso, se trata da reificação como entre duas partes de um contrato, mas no segundo caso, um sistema de crenças ideológico se dá pela criação de estereótipos reificados. V. Totalidade em Honneth Em todo o texto há uma crítica explícita de Honneth à totalização da reificação em Lukács, pela expansão do capitalismo, à marcha totalizante da sociedade de mercado capitalista em todas as três dimensões (p.97). Para Honneth, a reificação não seria um fenômeno tão expansivo e, portanto, uma crítica à reificação não deveria se proceder, como em Lukács, de modo tão totalizante de antemão, mas ela deveria se limitar às esferas sociais nas quais cada comportamento observador passivo, indiferente, possui um lugar totalmente legítimo (p.28). Portanto, a leitura da totalidade negativa da reificação em Lukács tem a expansão da forma mercadoria, por um lado, e a conformação desse modo distorcido, atrofiado da prática humana enquanto segunda natureza, por outro lado. Por isso, a reificação totaliza também a relação do homem consigo mesmo e com o mundo circundante. A totalidade só existe enquanto patologia nessa leitura que Honneth faz de Lukács, mas só se sustenta em face da representação de uma prática social real, verdadeira. Honneth caracteriza a reificação de forma mais básica e geral, cujas causas sociais são tratadas como completamente diferentes, desde que resulte no esquecimento do reconhecimento que é a base primária da socialização humana. Portanto a crítica à totalização da reificação em Lukács parte de uma totalidade social em um sentido forte, pois o reconhecimento consiste não somente em um mecanismo fundamental que origina o social (HONNETH, 2006) e que instaura tudo que é humano, porque é a condição de possibilidade inscrita geneticamente no homem, mas consiste também em padrão de uma socialização bem sucedida. Esta relação entre o reconhecimento primário geneticamente inscrito e categoricamente anterior e o retorno ao reconhecimento enquanto deverser social, como padrão saudável de socialização, é a totalidade que permeia a análise de Honneth. A totalização não está em se defender que o conhecimento, a consciência, depende geneticamente e conceitualmente do reconhecimento, como mecanismo fundamental da existência social (HONNETH, 2006), do reconhecimento, portanto, como categoria, mas no retorno ao reconhecimento como forma bem sucedida de integração social. Nesse caso, apesar de se pretender genetica e ontologicamente ancorada, o reconhecimento em Honneth é uma totalidade social e normativa, tanto que é possível se negar o reconhecimento pela reificação. A totalidade de Honneth parece ser o oposto da totalidade de Lukács, pois o reconhecimento em Honneth é a totalidade positiva (moralmente boa) que se experimenta em negativo (pelo seu 6

esquecimento) e a reificação em Lukács é a totalidade negativa (moralmente ruim) que se experimenta de forma positiva (como práxis social da sociedade capitalista, conformada como segunda natureza humana). Referências bibliográficas: HONNETH, Axel. Verdinglichung. Eine anerkennungstheoretische Studie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2005. HONNETH, Axel. Die Anerkennung ist ein Grundmechanismus sozialer Existenz. Axel Honneth im Gesprach mit Krassimir Stojanov. In: Critique & Humanism, 22, 2006. p. 139-153 7