Alergia a veneno de himenópteros na criança

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Relato de Caso / Case Report Alergia a veneno de himenópteros na criança Hymenoptera venom allergy in children Sónia Santos 1, Carla Chaves Loureiro 2, Sónia Lemos 2, José António Pinheiro 2 1 Interna Complementar de Pediatria do Centro Hospitalar Tondela - Viseu, EPE, Viseu, Portugal. 2 Clínica de Alergologia, Hospital Pediátrico, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, EPE, Coimbra, Portugal. RESUMO Objetivos: A alergia a veneno de himenópteros pode condicionar a vida da criança de forma significativa. Pretende-se, com a exposição de dois casos clínicos e uma breve revisão do tema, salientar a importância da referenciação dessas crianças a consultas especializadas, para início de dessensibilização. Descrição dos casos: Duas crianças, aos três e aos seis anos, tiveram anafilaxia a picada de vespa e abelha, respectivamente. Em ambas, após a determinação de IgE específica e confirmação alergológica, iniciou-se dessensibilização com veneno de himenópteros em esquema ultra-rush, sem intercorrências relevantes, apenas edema no local da injeção. Após doze meses de injeções a cada quatro semanas, recebem agora manutenção com injeções a cada seis semanas. No primeiro caso, a criança foi picada por vespa aos dez meses de imunoterapia, desencadeando apenas reação local diminuta. Conclusões: Em ambos os casos, a imunoterapia específica subcutânea com veneno em esquema ultra-rush foi segura e eficaz, oferecendo o conforto de um menor número de injeções e de deslocamentos ao hospital na fase de indução. A manutenção da terapêutica já demonstrou efeito protetor na reexposição ao veneno em uma das crianças. DESCRITORES: ALERGIA; HIPERSENSIBILIDADE; IMUNOTERAPIA; DESSENSIBILIZAÇÃO IMUNOLÓGICA; VENENO DE VESPA; VENENO DE ABELHA; HIMENÓPTEROS; ULTRA-RUSH. ABSTRACT Aims: Allergy to hymenoptera venom may restrict a child s life significantly. It is intended, with the exposure of two clinical cases and a brief review on the topic, emphasizing the importance of referral of these children to specialized care for early desensitization. Cases description: Two children, at three and six years, had anaphylactic reaction to wasp and bee stings, respectively. In both cases, after the determination of specific IgE and allergologic confirmation, desensitization with hymenoptera venom in ultra-rush regimen was done, without relevant side effect apart from swelling at the injection site. After twelve months of injections every four weeks, the children are now receiving maintenance injections every six weeks. In the first case, the child was stung by wasp at ten months of immunotherapy, triggering only small local reaction. Conclusions: In both cases, the subcutaneous venom immunotherapy with ultra-rush regimen was safe and effective, providing the comfort of a smaller number of injections and hospital visits during the induction phase. Maintenance therapy has demonstrated a protective effect on re-exposure to the poison in one child. KEY WORDS: ALLERGY; HYPERSENSITIVITY; IMMUNOTHERAPY; DESENSITIZATION, IMMUNOLOGIC; WASP VENOMS; BEE VENOMS; HYMENOPTERA; ULTRA-RUSH. Recebido em 12/02/12. Aceito em 01/08/12. Endereço para correspondência/corresponding Author: Sónia Santos Centro Hospitalar Tondela Viseu, EPE Avenida Rei D. Duarte 3504-509 Viseu, Portugal Telefone: 964184081 E-mail: soniafmuc@gmail.com Scientia Medica (Porto Alegre) 2012; volume 22, número 4, p. 203-207

INTRODUÇÃO A ordem Hymenoptera inclui numerosas espécies de insetos, entre as quais se incluem abelhas, vespas e formigas. A primeira descrição de uma reação alérgica fatal provocada pela picada de uma vespa data de 2641 AC e está representada nos hieróglifos do túmulo do faraó Menes do Egito. 1 Os himenópteros produzem venenos com diferentes componentes alergênicos. As abelhas injetam entre 50 e 100 μg de veneno por picada, mas quando esvaziado o saco de veneno, esse valor pode atingir cerca de 300 μg. 2 Após a picada, a abelha morre. Já a vespa injeta de 1,7 a 3 μg de veneno, podendo infligir várias picadas sem morrer. 2 Na Europa, a prevalência de alergia a veneno de himenópteros (reações locais e sistêmicas) fica em torno de 20%. 1 A prevalência de reações sistêmicas nas crianças é de 0,4-0,8% e a mortalidade anual associada a esta alergia é de 0,03-0,48 mortes por um milhão de habitantes. 2-5 As reações a picadas de himenópteros são classificadas em tóxicas (não imunológicas), que provocam reação local; alérgicas (imunológicas), que podem ser locais, loco-regionais e sistêmicas (Quadro 1); e reações mais raras, como doença soro-like, glomerulonefrite, síndrome nefrótica e síndrome de Guillain-Barré. 2,3,6 O diagnóstico de alergia a veneno de himenópteros baseia-se inicialmente na história clínica: número e localização das picadas, identificação do inseto, início e tipo de clínica, antecedentes patológicos e farmacológicos, tratamento efetuado e fatores de risco associados. Todos os pacientes com história de reação sistêmica devem ser referenciados a consulta de Alergologia, para aconselhamento, eventual estudo alergológico e imunoterapia específica. A alergia pode ser confirmada por testes cutâneos (prick-teste, intradérmicos) e/ou por dosagem de IgE específica. Quando confirmada a alergia, os doentes devem ser orientados sobre as formas de evitar picadas e ensinados a remover imediatamente o inseto e/ou o ferrão da pele (pois quanto mais tempo permanecer maior será a inoculação de veneno) e a se auto-administrar adrenalina subcutânea. Em meio hospitalar, a abordagem varia conforme o tipo de reação, podendo ser necessário recorrer a adrenalina intramuscular, nebulizações de salbutamol e a corticóides e anti-histamínicos endovenosos. 1-4,7,8 Apresentam-se dois casos ilustrativos de crianças com anafilaxia a veneno de himenópteros, acompanhadas em clínica de Alergologia, que iniciaram imunoterapia específica subcutânea com veneno em esquema ultra-rush. É realizada também uma breve revisão da literatura sobre o assunto. Foi obtido o consentimento informado dos pais antes de iniciar o tratamento, feito com base nas recomendações vigentes. A publicação foi aprovada pelo Comitê de Ética para a Saúde do Hospital Pediátrico. RELATO DOS CASOS Caso 1 Um menino de cinco anos apresentava reação a picada de himenóptero desde os três anos de idade, tendo tido três picadas nos últimos dois meses com reações progressivamente mais graves. A última picada ocorrera na região retroauricular, evoluindo para edema da face e da língua, urticária na região inguino-escrotal e hipotonia, com necessidade de administração de adrenalina intramuscular em meio hospitalar. A história era sugestiva de picada de vespa. Como antecedente pessoal relevante tinha um sopro cardíaco e habitava em meio rural. Apresentava IgE específica para vespa de 2,93 kua/l (classe dois/ligeira) e IgE específica negativa para abelha. Pelos antecedentes de sopro cardíaco, foi excluída doença cardíaca antes do início da imunoterapia. Iniciou imunoterapia específica subcutânea com veneno em esquema ultra-rush em hospital dia, desenvolvendo apenas edema no local da injeção, sem outros efeitos colaterais. Após doze meses de administrações mensais, encontra-se atualmente em fase de manutenção com administração de imunoterapia de seis em seis semanas, e possui autoinjetor de adrenalina. Após dez meses de terapêutica foi picado por himenóptero, desenvolvendo apenas reação local discreta. Caso 2 Uma menina, aos seis anos de idade, após primeira picada de abelha, desenvolveu sintomas de rinoconjuntivite, dificuldade respiratória com tiragem global, sibilos, urticária, edema da face e membros, melhorando em meio hospitalar com adrenalina intramuscular e nebulização de salbutamol. Tinha como antecedentes pessoais rinoconjuntivite e asma alérgicas a ácaros e gramíneas. Habitava perto de um apicultor que tinha uma colmeia no jardim. Apresentou IgE específica positiva para abelha de 50,1 kua/l (classe cinco/muito alto) e para vespa de 1,05 kua/l (classe dois/ligeiro). Aos sete anos iniciou imunoterapia específica com extrato de veneno de abelha em esquema ultra-rush em hospital dia, apresentando reação local ligeira no local das injeções. Encontra-se atualmente em fase de manutenção da imunoterapia a cada seis semanas e tem autoinjetor de adrenalina. Não voltou a ser picada por abelha, tendo havido remoção da colmeia vizinha. 204 Sci Med. 2012;22(4):203-207

DISCUSSÃO Ambos os casos descritos desenvolveram uma reação sistêmica de grau III, segundo classificação de Müeller (Quadro 1). Têm sido descritos vários fatores de risco para o desenvolvimento de uma reação sistêmica grave ao veneno de himenóptero: 2,3,5,6 1) idade quanto menor a idade, menor a gravidade da reação; 2) gravidade da reação sistêmica prévia; 3) tempo decorrido entre duas picadas quanto menor o tempo decorrido, maior o risco de reação sistêmica grave futura; 4) picada de abelha; 5) doenças cardiovasculares associadas; 6) ingestão de beta-bloqueadores (reduzem a eficácia da adrenalina utilizada no tratamento da anafilaxia) e inibidores da enzima de conversão da angiotensina (agravam a hipotensão que ocorre durante a anafilaxia); 7) mastocitose sistêmica a anafilaxia pode ser a manifestação inaugural desta doença; 8) triptase sérica basal elevada exige sempre o despiste de mastocitose sistêmica. Nos casos apresentados, identificam-se como fatores de risco de reações sistêmicas futuras a gravidade da reação em ambos e, no segundo caso, a picada de abelha. Embora neste existissem antecedentes de rinoconjuntivite e asma alérgica, a atopia não parece constituir um fator de risco para reação sistêmica futura a picada de himenóptero. É importante referir que os doentes com reações locais e loco-regionais têm um risco inferior a 5% de desenvolver uma reação sistêmica futura, enquanto os que desenvolvem uma reação sistêmica grave têm um risco calculado em 50% de desenvolver nova reação sistêmica grave. 4,6 Os casos com reação sistêmica moderada a grave (grau III e IV segundo classificação de Müeller) poderão ter indicação para imunoterapia específica, pelo que a realização de estudo alergológico é mandatória, como se verificou nos casos descritos. Quando a reação é limitada à pele, com urticária/angioedema, deve-se ponderar caso a caso, com base no local de residência (elevado grau de exposição a himenópteros/ proximidade com colmeias), ansiedade associada e na ocorrência de reações prévias, pois o risco de reação sistêmica grave futura é inferior a 3%. 7 Reações locais, ou existência de familiares que desenvolveram uma reação sistêmica grave, não são indicações para exames complementares/alergológicos, pois cerca de 25-30% da população adulta está sensibilizada ao veneno de himenóptero, não sendo um fator preditivo para o desenvolvimento de uma reação sistêmica grave futura. 3,7 No estudo alergológico, nem o diâmetro da pápula dos testes cutâneos, nem o nível sérico da IgE predizem a severidade da reação sistêmica futura. 3 Os testes de sensibilidade cutânea apenas devem ser realizados duas semanas após a picada de himenóptero, devido aos eventuais falsos durante o período refratário. Esse período pode ser mais longo, devendo os testes ser repetidos após um a dois meses. 2 A positividade para vespa e abelha pode resultar de uma verdadeira sensibilização dupla ou de uma reação cruzada entre os anticorpos IgE que reconhecem epitopos semelhantes dos diferentes venenos. A distinção entre reatividade cruzada e dupla sensibilização é importante na escolha do veneno para imunoterapia. 2 A realização de um teste RAST (radioallergosorbent) de inibição pode ser útil para distinguir as situações descritas. 2 A imunoterapia específica com veneno tem indicações precisas e a sua eficácia é de 91-100% nos casos de alergia ao veneno de vespa e de 77-80% nos casos de alergia ao veneno de abelha 4,6,8 (Figura 1). Quadro 1. Caraterísticas clínicas dos tipos de reação alérgica a picada de himenópteros. Reação local 1,2 Reação loco-regional 1,2 Reação Sistêmica 2,3,9 (classificação de Müeller) Dor, eritema e edema local. Persiste algumas horas. Edema estende-se a um grande diâmetro (superior a 10 cm). Reação máxima entre as 24-48 h. Persiste até 7-10 dias. Grau 1 Sintomas cutâneos (urticária, prurido), mal-estar, ansiedade. Grau 2 Sintomas do Grau 1 e pelo menos dois ou mais dos seguintes: angioedema, opressão torácica, náuseas, vômitos, diarreia, dor abdominal e tonturas. Grau 3 Sintomas do Grau 2 e pelo menos dois ou mais dos seguintes: dispneia, sibilância, estridor, disartria, disfonia, astenia, confusão, sensação de morte eminente. Grau 4 Sintomas do Grau 3 e pelo menos dois ou mais dos seguintes: hipotensão, choque, cianose, incontinência de esfíncteres e perda de consciência. Morte Sci Med. 2012;22(4):203-207 205

Picada de Himenóptero Reação local ou loco-regional Sem indicação para imunoterapia específica Grau 1 Reação sistêmica (classificação de Müeller graus 1 a 4): investigar (testes cutâneos e/ou IgE específica) Graus 2 ou 3 (moderada) Imunoterapia específica pode estar indicada* Reinvestigar em 2 a 3 meses Grau 4 (severa) Imunoterapia específica indicada * Dependendo da gravidade do quadro clínico e dos fatores de risco. Figura 1. Critérios de imunoterapia com base na clínica e em testes alergológicos. 6,8 Desde 1974, quando foi utilizada pela primeira vez a imunoterapia com extrato de veneno, surgiram vários protocolos de dessensibilização. A imunoterapia específica subcutânea para himenópteros deve ser efetuada em meio hospitalar, podendo ser prescrita na criança acima dos cinco anos de idade. 3 Os protocolos de dessensibilização rápidos (rush) ou ultrarrápidos (ultra-rush) trazem vantagens francas para o doente. Ambos são esquemas seguros e bem tolerados na criança. 9,10 Nos dois casos apresentados, o esquema ultra-rush foi o escolhido e o procedimento decorreu sem intercorrências significativas. Os esquemas rápidos permitem atingir uma dose protetora de forma imediata, com benefício claro para a criança e para a família, pelo baixo absenteísmo escolar e laboral e pelo menor número de injeções administradas. Uma vez atingida a dose de manutenção de 100 μg de veneno, esta é repetida a cada quatro semanas durante o primeiro ano de tratamento e, depois, a cada seis semanas nos anos seguintes. 1,8 A duração da imunoterapia específica subcutânea é ainda controversa, mas nunca deve ser inferior a 3 anos, havendo casos em que, pelo risco elevado de exposição e recidiva após suspensão da imunoterapia, poderá ser mantida indefinidamente. 8,11 O risco de desenvolver reações sistêmicas durante a imunoterapia específica subcutânea (sobretudo na fase de aumento gradual da dose de veneno) está relacionado com idade (menor risco na criança), veneno de abelha, nível de triptase sérica basal elevada e severidade das reações pré-imunoterapia. O nível de triptase sérica basal permite, além de avaliar o risco de novas reações sistêmicas graves, avaliar o risco de reação sistêmica à imunoterapia. 12 Não foi efetuada nestes pacientes, o que poderia ser útil na determinação do risco de reação secundária à imunoterapia. Com o tratamento, verifica-se diminuição da IgE específica e da reatividade cutânea, que, embora constituam dados favoráveis, não se correlacionam de forma absoluta com o sucesso terapêutico, pelo que a sua monitorização não é mandatória. A única forma de confirmar o sucesso terapêutico será a resposta a um novo contacto com o veneno, como demonstrado no primeiro caso. 4,13 A alergia ao veneno de himenópteros, além de interferir na qualidade de vida dos indivíduos afetados, pode desencadear reações sistêmicas graves e até mesmo a morte. O diagnóstico de uma reação sistêmica ao veneno de himenópteros deve determinar orientação 206 Sci Med. 2012;22(4):203-207

do paciente para uma consulta especializada, uma vez que a imunoterapia específica é a única terapêutica eficaz no seu tratamento. REFERÊNCIAS 1. Pedro ME. Alergia a veneno de Himenópteros. Rev Port Imunoalergol. 1999;7:191-4. 2. Biló BM, Rueff F, Mosbech H, et al. The EAACI interest group on insect venom hypersentivity. Diagnosis of Hymenoptera venom allergy. Allergy. 2005;60:1339-49. 3. Falcó SN, Clavero MG. Hipersensibilidad a veneno de himenópteros [Internet]. Protocolos de la AEP 2003 [cited 2011 December 29]. Available from: http://www.aeped.es/ sites/default/files/documentos/11-himenopteros.pdf 4. Tomé S, Reis G, Guedes M, et al. Imunoterapia com veneno de himenópteros: a experiência de uma consulta. Acta Pediatr Port. 2009;40:30-2. 5. Bilò MB. Anaphylaxis caused by Hymenoptera stings: from epidemiology to treatment. Allergy. 2011;66:35-7. 6. Krishna MT, Ewan PW, Diwakar L, et al. Diagnosis and management of hymenoptera venom allergy: British Society for allergy and clinical immunology (BSACI) guidelines. Clin Exp Allergy. 2011;41:1201-20. 7. Tracy JM. Diagnosis of Hymenoptera venom allergy [Internet]. The UptoDate website [updated 2011 June 10; cited 2011 December 29]. Available from: http://www. uptodate.com 8. Bonifazi F, Jutel M, Biló M, et al; the EAACI interest group on insect venom hypersensitivity. Prevention and treatment of hymenoptera venom allergy: guidelines for clinical practice. Allergy. 2005;60:1459-70. 9. Köhli-Wiesner A, Stahlberger L, Bieli C, et al. Induction of specific immunotherapy with hymenoptera venoms using ultrarush regimen in children: safety and tolerance. J Allergy. vol. 2012, article ID 790910, doi.:10.1155/2012/790910. 10. Schiavino D, Nucera E, Pollastrini E, et al. Specific ultrarush desensitization in hymenoptera venom-allergic patients. Annals of Allergy, Asthma & Immunology. 2004;92:409-13. 11. Peláez A. Evolución de la hipersensibilidad a venenos de himenópteros trás suspender la inmunoterapia: duración del tratamiento. Rev Port Imunoalergol. 2004;12:359-64. 12. Ruëff F, Przybilla B, Biló MB, et al. Predictors of side effects during the buildup phase of venom immunotherapy for Hymenoptera venom allergy: the importance of baseline serum tryptase. J Allergy Clin Immunol. 2010;126:105-11. 13. Graft DF. Hymenoptera venom immunotherapy: technical issues, protocols, adverse effects, and monitoring [Internet]. The UptoDate website [updated 2011 June 10; cited 2011 December 29]. Available from: http://www.uptodate.com Sci Med. 2012;22(4):203-207 207