Arquivos Catarinenses de Medicina ISSN (impresso) 0004-2773 ISSN (online) 1806-4280 ARTIGO ORIGINAL Perfil epidemiológico das anestesias por bloqueio subaracnóide em um serviço de residência em anestesiologia: estudo prospectivo Epidemiological profile of spinal anesthesia in an anaesthesiology residence service: a prospective study Thiago Mamôru Sakae 1, Mariana Duarte Tschumi 2, Carlos Alexandre Machado 2, Alexandre Carlos Buffon 3, Roberto Henrique Benedetti 4 Resumo Introdução: A anestesia subaracnóide produz analgesia e relaxamento muscular com o uso de pequenas quantidades de anestésico local. Objetivo: Descrever o perfil epidemiológico das raquianestesias em um serviço de residência em Anestesiologia no Sul do Brasil. Métodos: Estudo transversal, prospectivo, envolvendo 572 raquianestesias ao longo de dez meses incluindo anestesiologistas experientes e iniciantes. Resultados: A taxa de falhas foi de 4,7%. Os pacientes tinham idade média de 42,7 anos, peso médio de 74,9 kg e índice de massa corpórea médio de 26,7kg/m2, sendo 42,5% do sexo masculino. A dose média de bupivacaína utilizada foi de 11,3 mg, de morfina de 70,1 mcg, de clonidina de 60,4 mcg e de sufentanil de 4,4mcg. A incidência de hipotensão foi de 31,6% e de bradicardia de 8,6%. Discussão: A raquianestesia é uma técnica anestésica segura com necessidade de cuidados com hipotensão e bradicardia além da baixa taxa de falhas. Abstract Background: Subarachnoid anesthesia produces analgesia and muscle relaxation with the use of small quantities of local anesthetic. Objectives: To describe the epidemiological profile of spinal anesthesia in an Anaesthesiology Residence service in South Brazil. Methods: Cross-sectional, prospective study involving 572 spinal anesthesias over ten months including beginners and experienced anesthesiologists. Results: The failure rate was 4.7%. Patients had a mean age 42.7 years, mean weight 74.9 kg, and mean body mass index of 26.7 kg/m2, with 42.5% male. The mean dose of bupivacaine used was 11.3 mg, 70.1 mcg of morphine, clonidine and 60.4 mcg of sufentanil 4.4 mcg. The incidence of hypotension was 31.6% and 8.6% bradycardia. Discussion: Spinal anesthesia is a safe anesthetic technique and need care about hypotension and bradycardia beyond low failure rate. Descritores: Anestesiologia. Anestesia subaracnóide. Adjuvantes intratecais. Perfil epidemiológico. Keywords: Anaesthesiology. Spinal anestesia. Intrathecal adjuvants. Epidemiological profile. 1. Doutor em Ciências Médicas UFSC, Mestre em Saúde Pública UFSC, Médico Residente em Anestesiologia pelo Hospital Florianópolis-SC. 2. Médico Residente em Anestesiologia pelo Hospital Florianópolis-SC. 3. TSA, Médico Anestesiologista. Chefe do Serviço de Anestesiologia do Hospital Infantil Joana de Gusmão, Florianópolis-SC. 4. TSA, Médico Anestesiologista. Coordenador do Serviço de Residência em Anestesiologia do Hospital Florianópolis-SC. 71
Introdução A anestesia subaracnóidea é comumente utilizada para operações dos membros inferiores e abdômen inferior. É uma técnica relativamente fácil de ser realizada, proporcionando analgesia e relaxamento muscular com o uso de pequenas quantidades de anestésico local. 1 A raquianestesia é uma anestesia que promove diferentes efeitos no organismo, alguns desejáveis, outros não. Entre as alterações mais importantes está a diminuição da pressão arterial, quando ocorre redução do retorno venoso, reflexo da vasodilatação e aumento da capacitância do leito vascular venoso, em cerca de 30% dos pacientes. 1-3 Por todos estes efeitos associados à sua técnica, a preocupação com a taxa de falhas em raquianestesias levou alguns pesquisadores a tentar descrever sua incidência e possíveis fatores associados à mesma nas décadas de 1980 e 1990. Alguns estudos nacionais e internacionais relatam incidências de falhas em raquianestesias entre 3 e 17%. 1, 4-7 Estudo multicêntrico recente demonstrou uma taxa de falha de 3,2% (IC95%: 2,2 a 4,2). 8 O objetivo deste estudo foi descrever a incidência e os fatores associados às falhas de raquianestesias em um serviço de residência em Anestesiologia no Sul do Brasil. Métodos Foi realizado um estudo do tipo transversal, com coleta de dados prospectiva, envolvendo um total de 572 anestesias subaracnóides no período entre 10/03/2012 e 31/12/2013. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Infantil Joana de Gusmão protocolo 023/2013. Na sala de operações após monitorização da pressão arterial (esfigmomanometria), ECG contínuo e da saturação de oxigênio, foi iniciada a infusão venosa de solução de soro fisiológico a 0,9%. As variáveis sociodemográficas analisadas foram: sexo, idade, peso, altura e índice de massa corporal. As variáveis envolvendo a localização do espaço subaracnoideo incluíram posição do paciente, calibre da agulha, espaço de punção e presença do LCR. Também foram analisados o tipo de anestésico, baricidade, adição de agente adjuvante, falha na raquianestesia, desenvolvimento de hipotensão ou bradicardia. Todas as anestesias subaracnóideas foram realizadas utilizando agulhas descartáveis (25G, 26G e 27G) tipo Quincke (BD-Becton Dickinson de 8,89 cm de comprimento) com anestésico puro ou contendo glicose. Os agentes anestésicos usados foram bupivacaína 0,5% hiperbárica ou bupivacaína 0,5% isobárica com adição ou não de agentes adjuvantes. Para os objetivos deste estudo as falhas da anestesia subaracnóidea foram classificadas de acordo com os critérios de Imbelloni 1 em: 1) ausência de analgesia; 2) nível insuficiente de analgesia; 3) dor à tração do peritôneo e 4) término do bloqueio antes da cirurgia (tempo insuficiente). Nos dois primeiros casos, repetia-se o bloqueio antes do início da operação e nos dois últimos, complementava- -se com anestesia geral (venosa ou inalatória). A análise estatística foi realizada com o software SPSS 15.0, utilizando-se os testes t de Student para as variáveis numéricas e X2 ou prova exata de Fisher para verificar a associação entre variáveis categóricas. As associações das variáveis independentes foram testadas através de análises bivariadas. O nível de significância adotado foi de 95%. Resultados A amostra foi composta por 572 raquianestesias, sendo 42,5% realizadas em pacientes do sexo masculino, com média de idade de 42,7 anos (desvio padrão=16,3), peso médio de 74,9 kg e índice de massa corpórea (IMC) médio de 26,7 kg/m2. A maior incidência foi de pacientes com classificação ASA II (48,2%), da especialidade de Ortopedia (41,8%). (Tabela 1) Quanto às variáveis relacionadas à raquianestesia, os médicos residentes do segundo ano de formação na residência fizeram mais procedimentos (41,3%), com maior incidência na posição sentada (44,8%), acesso paramediano (69,9%), no interespaço L3-L4 (57,0%) com a quase a totalidade utilizando Bupivacaína hiperbárica como anestésico local (97,1%), assim como quase a totalidade utilizou agulha 27G. Todas as agulhas utilizadas foram do tipo Quinke. Quase ¾ das raquianestesias utilizaram adjuvantes, e o mais utilizado foi a morfina (61,9%). (Tabela 2) A dose média de bupivacaína utilizada foi de 11,3 mg, de morfina de 70,1 mcg, de clonidina de 60,4 mcg e de sufentanil de 4,4mcg. (Tabela 2). A incidência de hipotensão foi de 31,6% e de bradicardia de 8,6%. A taxa de falha em raquianestesia foi de 4,7%. As falhas não estiveram associadas à posição de bloqueio (p=0,14), sexo (p=0,54), idade (p=0,41) e à graduação do realizador do procedimento (p=0,15). As pacientes submetidas à raquianestesia para obstetrícia apresentaram mais que o dobro de risco de hipotensão quando comparadas às outras especialidades (RR=2,16; IC95%: 1,72 2,71; p<0,00001). As pacientes do sexo feminino apresentaram um risco 80% 72
maior e hipotensão em comparação ao sexo masculino (RR=1,83; IC95%: 1,39 2,41; p<0,00001). Do mesmo modo, pacientes classificação ASA III também apresentaram maior risco de hipotensão em comparação aos ASA I e II (RR=1,67; IC95%: 1,23 2,27; p=0,003). Por outro lado, hipotensão não esteve associado à idade (p=0,11), uso de morfina (p=0,87), espaço puncionado (p=0,17) e IMC (p=0,65). Nos pacientes que apresentaram hipotensão e utilizaram clonidina na raquianestesia, em média, utilizaram doses mais baixas (média=58,7 mcg; DP=24,1) em comparação aos que não apresentaram hipotensão (média=68,4 mcg; DP=22,9) (p=0,014). Os pacientes bloqueados na posição em decúbito lateral também apresentaram um risco 40% maior de hipotensão em comparação aos bloqueados sentados (RR=1,41; IC95%: 1,11 1,80; p=0,004). Os pacientes com hipotensão também utilizaram doses maiores de anestésico local (p=0,006), assim como os com bradicardia (p=0,009). Os pacientes do sexo masculino apresentaram um risco maior de bradicardia (RR=2,13; IC95%: 1,23 3,70; p=0,0055). Por outro lado, bradicardia não esteve associado à idade (p=0,31), uso de morfina (p=0,35), espaço puncionado (p=0,26) e IMC (p=0,67). Discussão Após o final da década de 1980, os estudos na literatura mundial descrevendo as falhas que podem ocorrer com a raquianestesia aumentaram, demonstrando a preocupação com o tema. Definir falha é uma situação difícil e depende fundamentalmente da metodologia empregada. 1 Alguns autores definem falha quando a cirurgia causa dor 9, enquanto outros se houver necessidade de anestesia geral em qualquer tempo da cirurgia. 10 Os critérios desse trabalho (ausência de analgesia, nível insuficiente, dor à tração peritoneal e tempo insuficiente para o ato cirúrgico) se assemelham aos de dois estudos importantes 1, 5 neste assunto. Vale salientar que o anestésico local só era injetado após a obtenção do LCR. A incidência total de falha foi de 4,7% ficando entre os valores de 3% 5 e 17% 10. Imbelloni 1, utilizando os mesmos critérios, encontrou uma taxa de falhas de 8,3%. Comparando a experiência dos anestesiologistas na realização da raquianestesia, foi demonstrado que o passar dos anos não garantiu a diminuição na incidência de falhas. 7 Este fato também esteve em concordância com o presente estudo, no qual as falhas ocorreram independente da graduação dos executores do procedimento, que têm diferentes anos de experiência entre si. O sexo do paciente não afetou a incidência de falha em três trabalhos 4, 7, 10, resultados semelhantes aos nossos e em contraste com outro estudo 5, que mostrou uma maior incidência de falha nas mulheres. Nossos resultados corroboram os de outros autores 4, 5, que também não observaram diferenças entre a punção em decúbito lateral e sentada. Entretanto, a posição sentada é citada na literatura como fator de risco para falha em raquianestesia. 1 Quando a anestesia subaracnóidea é realizada nos espaços lombares mais baixos, a tendência de falha aumenta 7, principalmente com soluções isobáricas. A diferença de nos espaços de punção também não afetaram a incidência de falhas e hipotensão. É importante notar que erros de técnica resultam em falha completa, isto é, sem analgesia; enquanto que erro de julgamento resulta em falha parcial, isto é, nível de dermátomo. 1, 3 A etiologia da falha em anestesia subaracnóidea é motivo de controvérsias. Seria a certeza de que a presença do LCR no canhão da agulha deveria garantir o sucesso da injeção do anestésico local. 1 Por outro lado, tipo de agulha pode afetar o sucesso da raquianestesia. Estudando in vitro a relação entre as falhas e o desenho de diversas agulhas, os autores concluíram que nas agulhas com orifícios longos (Sprotte, Quincke e ponta de lápis) o anestésico pode ser injetado fora do espaço. 11 Diferente do que ocorre com agulhas com pequeno orifício tipo Whitacre. Em estudo de anestesia subaracnóidea em cesariana, não foi observada diferença significativa entre as agulhas de Whitacre e Quincke. 12 O presente estudo, com diferentes calibres de agulhas do tipo Quincke, associado ao tipo de seringa utilizada (luer-lock) pode ser um dos responsáveis pelo aparecimento de falhas. A agulha do tipo Quincke não causa má distribuição do anestésico local e exibe baixa prevalência de cefaléia no pós-operatório, sendo a escolhida para ser utilizada nesse estudo. 13 As incidências de hipotensão (31,6%) e bradicardia (8,6%) no presente estudo foram semelhantes às descritas na literatura. Carpenter 2 encontrou incidência de hipotensão de 33% e bradicardia de 9,2%. Este mesmo estudo descreveu, em análise multivariada, fatores de risco independentes para hipotensão e bradicardia. Para hipotensão, os fatores de risco independentes encontrados foram idade acima de 40 anos (odds ratio OR=2,5), punção acima de L3-L4 (OR=1,8) e bloqueio associado à anestesia geral (OR=1,9). Já para bradicardia, os fatores de risco encontrados foram frequência cardíaca basal inferior a 60 batimentos por minuto (OR=4,9), ASA I (OR=3,5), uso prévio de betabloqueador (OR=3,5) e idade inferior a 50 anos. Outros estudos ain- 73
da apresentaram sexo feminino 14, IMC superior a 30kg/ m 2, 15 e uso de opióide na raquianestesia. 15 O presente estudo apresentou um risco aumentado para hipotensão em pacientes obstétricas, como também do sexo feminino. Este pode ter se apresentado como fator de confusão, já que outros estudos 16, 17 já demonstraram a especialidade Obstetrícia como fator de risco para hipotensão na raquianestesia. Entretanto, sexo feminino também já foi demonstrado como fator de risco independente para hipotensão. 14 A raquianestesia é uma técnica anestésica segura com necessidade de cuidados com hipotensão e bradicardia além da baixa taxa de falhas. Referências 1. Imbelloni LE, Sobral MGdC, Carneiro ANG. Incidência e Causas de Falhas em Anestesia Subaracnóidea em Hospital Particular: Estudo Prospectivo. Rev Bras Anestesiol. 1995; 45: 159-64. 2. Carpenter RL, Caplan RA, Brown DL, Stephenson C, Wu R. Incidence and risk factors for side effects of spinal anesthesia. Anesthesiology. 1992: 906-16. 3. Imbelloni LE, Beato L, Gouveia MA. Raquianestesia unilateral com bupivacaína hipobárica. Rev Bras Anestesiol. 2002; 52: 542-8. 4. Manchikanti L, Hadley C, Markwell SJ, Colliver JA. A retrospective analysis of failed spinal anesthetics attempts in a Community Hospital. Anesth Analg. 1987; 66: 363-6. 5. Munhall RJ, Sukhani R, Winnie AP. Incidence and etiology of failed anesthetics in a University Hospital. Anesth Analg. 1988; 67: 843-8. 6. Nocite JR. Bloqueio insuficiente em anestesia peridural ou subaracnóidea: Prevenção e tratamento. Rev Bras Anestesiol. 1993; 43: 217-20. 7. Tarkkila PJ. Incidence and causes of failed spinal anesthetics in a University Hospital: A prospective study. Reg Anesth. 1991: 48-51. 8. Fuzier R, Bataille B, Fuzier V, Richez AS, Maguès JP, et al. Spinal anesthesia failure after local anesthetic injection into cerebrospinal fluid: a multicenter prospective analysis of its incidence and related risk factors in 1214 patients. Reg Anesth Pain Med. 2011; 36: 631. 9. Moore DC. Spinal anesthesia: bupivacaine compared with tetracaine. Anesth Analg. 1980; 59: 743-50. 10. Levy JH, Islas JA, Ghia JN, Turnbull C. A retrospective study of the incidence and causes of failed spinal anesthetics in a University Hospital. Anesth Analg. 1985: 705-10. 11. Sayeed YG, Sosis MB, Braverman B, Ivankovich AD. An in vitro investigation of the relationship between spinal needle design and failed spinal anesthetics. Reg Anesth. 1993; 18. 12. Carvalho JCA, Siaulys MM, Kuriki W, Capelli EL, Mathias RS, et al. Estudo comparativo de agulhas Quincke vs Whitacre calibre 5 (25G), em anestesia subaracnóidea para cesárea. Rev Bras Anestesiol. 1993; 43: 239-43. 13. Meyer J, Enk D, Penner M. Unilateral spinal anesthesia using low-flow injection through a 29-gauge Quincke needle. Anesth Analg. 1996; 82: 1188-91. 14. Oliveira Filho GR, Garcia JHS, Goldschimidt R, Mago AJD, Cordeiro MA, et al. Fatores de previsão de hipotensão arterial precoce em anestesia subaracnóidea. Rev Bras Anestesiol. 2001; 51: 298-304. 15. Tarkkila P, Isola J. A regression model for identifying patients at high risk of hypotension, bradycardia and nausea during spinal anesthesia. Acta Anaesthesiologica Scandinavica. 1992; 36: 554 8. 16. Loubert C. Fluid and vasopressor management for Cesarean delivery under spinal anesthesia: continuing professional development. Can J Anaesth. 2012; 59: 604-19. 17. Ngan Kee WD, Lau TK, Khaw KS, Lee BB. Comparison of metaraminol and ephedrine infusions for maintaining arterial pressure during spinal anesthesia for elective cesarean section. Anesthesiology. 2001; 95: 307-13. Tabela 1. Variáveis sociodemográficas e clínicas 74
Tabela 2. Variáveis relacionadas à Raquianestesia Tabela 3. Variáveis relacionadas aos eventos após a Raquianestesia Endereço para correspondência Rua Santa Rita de Cássia, Estreito, Florianópolis-SC. Brasil. 88090-350 75