ILUSTRAÇÃO DE CONTOS AFRICANOS: UM NOVO CONCEITO CONCÍSIA LOPES DOS SANTOS UFRN A história da ilustração se confunde com a história das artes plásticas. Isso porque ilustrar é também fazer Arte. É através do contato com a ilustração do livro que a criança, muitas vezes, começa a estabelecer relações com o mundo da arte. Por isso, o trabalho de criar as imagens para um livro infantil deve surgir de uma empatia, algo essencial ao artista. Sem isso, uma obra torna-se superficial e não atende às necessidades da criança. Além disso, a ilustração de um livro deve compartilhar algo com a criança, não ensinar ou explicar. Se não compartilha, essa ilustração estará produzindo qualquer coisa (que poderá ser ensino ou condicionamento), mas não estará fazendo Arte. Em um livro, ilustrado ou de imagens, a ilustração tem várias funções. Através dela é possível também entender o estilo de um autor, de um grupo de autores, de uma região ou de um período histórico. Os elementos narrativos e os elementos plásticos em uma ilustração podem sugerir desde elementos narrativos até modos de comportamento e atitudes. Assim sendo, este estudo pretende analisar as ideias produzidas a partir das ilustrações feitas por Denise Nascimento em dois livros escritos pelo nigeriano Sunny, os quais trazem contos africanos. Palavras-chaves: ilustração; literatura infanto-juvenil; contos africanos; Denise Nascimento. 1 INTRODUÇÃO A história da ilustração se confunde com a história das artes plásticas. Isso porque ilustrar é também fazer Arte. Marisa Mokarzel, em seu artigo Primeiro foi a imagem... faz um retorno à origem da arte de ilustrar. Para isso, ela escolhe a História da Arte como ponto de partida, pois através desse canal é possível conhecer a origem, discutir as tendências e pensar o conteúdo dessa forma de fazer are, a ilustração. O artigo começa analisando a arte na Idade Média, com as iluminuras, passa pela Renascença, pela fotografia, pela pintura abstrata, até chegar aos ilustradores brasileiros atuantes naquele período. Tudo isso para mostrar que o nervo ótico da ilustração encontra-se na Idade Média (MOKARZEL, 1991: 06). Isso é importante na medida em que se reconhece que é através do contato com a ilustração do livro que a criança, muitas vezes, começa a estabelecer relações com o mundo da arte. Por isso, o trabalho de criar as imagens para um livro infantil deve surgir de uma empatia, algo essencial ao artista. Não se pode esquecer que a ilustração de um livro infantil deve compartilhar algo com a criança, não ensinar ou explicar algo. Se esse propósito não for atingido, o ilustrador estará fazendo qualquer coisa (ensinando, condicionando), menos Arte. E isso é preocupante. A ilustração não pode ter um caráter meramente ilustrativo, ela deve permitir a criação de imagens capazes de fazer refletir sobre o que está por trás delas. As ilustrações escolhidas para compor este estudo, que não é definitivo nem acabado, são da ilustradora Denise Nascimento designer graduada pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) que desde 1998 tem se dedicado à arte de ilustrar
livros para crianças. Tais ilustrações compõem dois livros infanto-juvenis escritos pelo nigeriano Sunny. São eles: Ulomma: A Casa da Beleza e outros contos (2006) e Contos da lua e da beleza perdida (2008), ambos publicados pela editora Paulinas. Assim sendo, este estudo pretende analisar as ideias e imagens produzidas palas ilustrações e procurar perceber como elas possibilitam a construção de novos olhares, novos sentidos e novos conceitos. 2 A IMAGEM A PARTIR DA ILUSTRAÇÃO A ilustração que acompanha (ou não) um texto escrito permite a representação mental de um objeto ou pessoa que a ela esteja associada. Essa representação poderá se configurar como um dos elementos construtores de novos valores e de novas éticas. Por isso, ela possui imenso poder. Uma imagem vale mais do que mil palavras, diz o ditado popular. Não. Cada imagem tem seu valor, assim como cada palavra tem o seu. Mas, não se pode negar que uma imagem pode sim reforçar uma palavra, uma ideia, um conceito, um préconceito. E quando falamos de livros infantis ilustrados falamos de obras nas quais a imagem tem uma força narrativa igual ou em muitos casos maior que o texto (VILELA, 2008: 53). Não é novidade dizer que a representatividade de negros e índios vem crescendo a cada dia no Brasil, não seria diferente na literatura. Atualmente, na seção infanto-juvenil de livrarias e de bibliotecas, os retratos não são apenas de personagens brancos. Crianças e jovens negros, mulatos, orientais e curumins também estão expostos e, nessas obras, passaram de coadjuvantes a protagonistas. (RIZZI, 2008: 40-41) A reivindicação de uma literatura representativa de outros grupos étnicos, além dos brancos, que fosse direcionada às crianças vem de tempos longínquos. Teve atenção especial na década de 1950, quando começaram a ser investigadas as questões de raça em livros didáticos e paradidáticos. Nos anos da década de 1970, começaram as análises com o objetivo de identificar estereótipos e preconceitos implícitos nas obras escritas. Mas foi só a partir de 1980 que começou a ser realizada a análise das obras da literatura dedicada às crianças e jovens. Em todos esses momentos, um ponto comum: a constatação da desvalorização de outras raças e culturas que não a branca. Principalmente a negra, no limbo das publicações, quase nunca protagonista, cercada pelo preconceito, sem representantes famosos nem históricos. (RIZZI, 2008: 41) Esse comportamento apenas reforça a ideia anteriormente expressa: as ilustrações permitem a criação de imagens que podem formar ou deformar um conceito já estabelecido. Mas, felizmente isso vem sendo modificado. Há algumas explicações para essa mudança. Em 1997, a discussão sobre igualdade racial tocou a esfera governamental, que criou o programa de biblioteca nas escolas. Entre os livros propostos estavam títulos de temática indígena e negra, embora em menor número. Em 2003, surge uma
secretaria com status de ministério cujo objetivo era promover a igualdade racial. Nesse mesmo ano a Lei no. 10.639 instituiu o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo escolar do ensino básico (níveis fundamental e médio). E, mais recentemente, em 2008, foi instituída a Lei no. 11.645 1, que determina a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena no âmbito de todo currículo escolar, especialmente nas áreas de educação artística, literatura e histórias brasileiras. Tais determinações fazem crescer ainda mais a preocupação com o modo como essas culturas chegarão às nossas crianças. Mesmo após tantas determinações, é ainda comum encontrar obras que reproduzem conteúdos racistas entre aqueles títulos que são aprovados por programas nacionais que avaliam livros didáticos e paradidáticos. E surge a questão: Como essas imagens serão discutidas em sala de aula, com as crianças? É importante conhecer a análise feita por Fanny Abramovich das imagens que compunham algumas obras infantis brasileiras publicadas até o ano de 1997, quando da publicação do livro: É incrível como se confundem e até se reforçam, nos livros infantis, o ético e o estético. [...] O preto? Ora, somente ocupa funções de serviçal (setor doméstico ou industrial, e aí pode ter um uniforme profissional que o defina enquanto tal e que o limite nessa atividade, seja mordomo ou operário). Normalmente é desempregado, subalterno, tornando claro que é coadjuvante na ação e, por consequência, coadjuvante na vida... Se mulher, é cozinheira ou lavadeira, gordona e bunduda. Seu ótimo coração e seu colo amigo são expressos no texto ou talvez nas entrelinhas... Importa que sua apresentação física não seja das mais agradáveis, das mais audaciosas ou belas... Altivos e elegantes?? Nunquinha... (ABRAMOVICH, 1997: 36-37) Sabe-se, no entanto, que no Brasil há ilustradores de primeira qualidade. Convém reforçar que não se está analisando aqui a qualidade artística das ilustrações feitas nos livros infantis. Muito menos se defende os desenhos de tipo realista (pois para isso bastaria se utilizar fotografias), sem magia nem encantamento. O que se propõe é que as imagens trazidas por tais livros permitam uma nova maneira de enxergá-las, de refleti-las. É importante observar se não estão sendo criados estereótipos, pois estes estreitam a visão, a forma de agir e de ser das pessoas. E a criança deve ser ajudada a perceber isso. AFINAL, PRECONCEITOS NÃO SE PASSAM APENAS ATRAVÉS DAS PALAVRAS, MAS TAMBÉM E MUITO ATRAVÉS DE IMAGENS. (ABRAMOVICH, 1997: 40). Como dizia o Marquês de Sade: A ética é uma questão de geografia, e a estética talvez seja uma questão de História... Saber interpretar o momento, ampliar os referenciais, não se limitar com estereótipos, não endossar os disparates impostos, não reforçar os preconceitos, é buscar talvez no estético o momento de ruptura, de transgressão, onde não haja falsas e tolas correspondências, mas descobertas de toda a sedução encoberta, da beleza e sabedoria a serem revelas, de padrões 1 Essa lei foi publicada no DOU de 11.3.2008 e divulgada também pela revista Construir Notícias, cujas referências encontram-se ao final deste estudo.
que não são dos chamados países desenvolvidos. Afinal, vivemos na América Latina e pertencemos ao Terceiro Mundo!!! (ABRAMOVICH, 1997: 41). E é isso o que se vê proposto nas imagens criadas a partir das ilustrações de Denise Nascimento. Ela consegue, através de sua arte, interpretar o momento, ampliando referenciais para os pequenos leitores, sem reproduzir estereótipos nem preconceitos. Suas imagens buscam o estético nesse momento de absoluta ruptura e transgressão, sem buscar falsas correspondências; deformando o preconceito existente contra o negro africano ou brasileiro e criando um novo conceito, a partir do qual consegue mostrar a beleza e a riqueza da cultura desse povo que tanto contribuiu e contribui para a formação do nosso povo brasileiro. 3 AS IMAGENS DE DENISE NASCIMENTO NO LIVRO INFANTIL DE CONTOS AFRICANOS O texto verbal é um desenho na página de um livro. Do mesmo modo, a imagem dentro de um livro é um texto, uma vez que possui um papel narrativo. Por outro lado, a imagem dentro de um livro é texto também, porque tem um papel narrativo. A ilustração imagem narrativa pode dar outros tons ao texto. Ela pode dar um tom suave, doce, triste ou dramático a uma história, assim como o texto pode dar novas significações à ilustração. É da semântica da relação da ilustração com o texto que se faz o livro ilustrado. (VILELA, 2008: 53) Assim, as imagens criadas pelo leitor podem ser as mais variadas, assim como sua leitura e seu comportamento. Vejamos a primeira ilustração de Denise, capa do livro Ulomma: Vemos que é uma ilustração pontual, pois destaca vários aspectos: a personagem cujo nome dá título à obra; sua gravidez, que dará o conflito principal do conto; alguns detalhes da cultura africana, como as cores fortes e alegres das roupas, o colorido colar que a personagem leva ao pescoço, o brinco que enfeita sua orelha e o
cabelo raspado, provavelmente uma questão de costume. Tais adornos são colocados em primeiro plano na página 05 do livro: Além da pontuação, essa ilustração também passa a ser descritiva, pois mostra com clareza a tristeza da protagonista, colocando-a em destaque e em segundo plano, o qual contaria outro momento da narrativa. As ilustrações presentes nas páginas 06 e 07 compõem uma só, contando a história junto com o texto. Vê-se a figura do rei, do tanturime, colocados sobre fortes cores de fundo. Observe-se que os desenhos ultrapassam a página, assim como acontece nas páginas 18 e 19:
Nesta última, a ilustração torna-se expressiva e ética, pois expressa emoções e gestos essenciais à narrativa, que não as descreve, além de expressar valores: o amor que se espera entre mãe e filho. As ilustrações que compõem as páginas 11, 13 e 14 são simbólicas, pois representam uma ideia, a de alegria. Na primeira, o menino brinca; na segunda, pai e filho se reencontram; na terceira, essa alegria invade a todos, pois é um dia muito especial e que merece uma grande comemoração. Uma ilustração pode estabelecer diversas relações com o texto. Na arte produzida por Denise Nascimento pode-se dizer que ela é dialógica, uma vez que cria novas maneiras de produzir sentido ao relacionar texto com imagem. As imagens criadas narram com o texto, colaborando para uma nova maneira de ler a cultura africana no Brasil.
É importante observar também, de maneira particular, como a ilustradora representa os tipos humanos. Nas ilustrações anteriores e nas que se seguirão pode-se reconhecer a imagem do povo que a artista pretende mostrar 2. Havia uma moça de extraordinária beleza chamada Okpija. Sua pele era tão macia quanto a lã. Seus olhos brilhavam como dois diamantes. Era tão bonita que as deusas africanas a invejavam, pois ela recebia elogios e era galanteada por todos os homens. (SUNNY, 2006: 31) Em uma terra longínqua, morava um homem bonito, forte e alto. Seu nome era Dinta, um caçador destemido, conhecido em toda a África. (SUNNY, 2008: 07) 2 Foram colocados trechos dos livros a fim de que o leitor possa relacionar imagem e narração.
Era uma vez, em tempos não tão antigos, quando os homens já eram perversos e só faziam maldade contra o próximo... Quando as pessoas da família eram as nossas únicas amigas... Nessa época, havia uma menina muito bonita e amável, chamada Onyia, que respeitava os pais e os mais idosos, ajudava nas tarefas domésticas e também no cultivo do campo. (SUNNY, 2008: 19) Há muito tempo, em país bem distante, havia um menino bonito e inteligente que se chamava Ikeputa Obuluele. O nome traduzia sua qualidade mais marcante: significava força (SUNNY, 2008: 25). Era uma vez um país longínquo, onde havia um rei que governava com amor e bondade. Antes dele, o povo sofria com a fome e a escassez, mas, desde que o soberano subira ao trono, aquele lugar se transformou (SUNNY, 2008: 41). A coroa do rei, na imagem, foi baseada na coroa de miçangas da etnia iorubá, da Nigéria. Quando se observa as imagens sugeridas pela ilustradora, pode-se perceber que elas representam novas ideias, novos olhares para um povo e para uma cultura tão desconhecida e desvalorizada por algumas pessoas, que há tempos é estereotipada, a cultura africana. Percebe-se, também, que em sua arte há a valorização desse povo, representada pelos elementos plásticos, tais como a forma, a maneira de representar, as cores e o enquadramento utilizados. Em todas as imagens que cria para ilustrar esses contos, Denise expressa gestos, mas também valores.
Imagens como essas permitem a meditação a partir delas mesmas, possibilita leituras, criando ou transformando novos e velhos leitores. Assim, elas realizam a criação de novos valores e a discussão de outros, antigos e ultrapassados. Mas, para isso, é necessário que a imagem seja utilizada com o objetivo de ser explorada, analisada, compreendida e reconhecida como importante na construção do saber, seja na escola ou na academia. A imagem não deve ser compreendida como um fim em si mesma, mas como o início de um novo olhar, de uma nova maneira de compreender o mundo em que vivemos e o ambiente e os valores que nos cercam. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para concluir (em parte) este estudo não conclusivo, ficam algumas considerações. Primeiro, o suporte imagético no ensino de humanidades, seja na escola ou na academia, não deve ser apenas ilustrativo, como elemento secundário. Segundo, a imagem deve ser compreendida como uma construção que se faz em movimento, possível apenas a partir da reflexão sobre essa construção. E por fim, a leitura que se faz de uma imagem vai depender da posição em que se encontra o seu leitor. Assim sendo, a imagem que se constrói a partir de uma ilustração diz muito sobre o artista que a produziu, sobre a história que se conta no livro e sobre o leitor que elabora tal imagem. A imagem pode e deve ser entendida como um objeto de sensibilização, capaz de mudar e reorganizar comportamentos individuais e coletivos, assim como criar e fazer crescer novos valores e conceitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices, 1997. CONSTRUIR NOTÍCIAS, No. 42, Ano 07, set./out. 2008. MOKARZEL, Marisa. Primeiro foi a imagem... In: Revista Releitura, n. 0 Belo Horizonte, Agosto/Setembro de 1991. RIZZI, Raquel. Páginas para todos. In: Discutindo Literatura Especial. Ano 1, n.03. São Paulo: Escala Educacional, 2008. SUNNY. Contos da lua e da beleza perdida. Ilustrações: Denise Nascimento. São Paulo: Paulinas, 2008.. Ulomma: A Casa da Beleza e outros contos. Ilustrações: Denise Nascimento. São Paulo: Paulinas, 2006. VILELA, Fernando. Literatura em imagem. In: Discutindo Literatura Especial. Ano 1, n.03. São Paulo: Escala Educacional, 2008.