Artigo Original. Celso Blacher, Paulo Ernesto Leães, Adriana Parisotto, André Luís Bendl, Jorge Boeira, Fernando A. Lucchese

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Transcrição:

Artigo Original 243 Comprometimento da Função Pulmonar em Pacientes Submetidos à Cirurgia de Rotação de Retalho do Músculo Peitoral para Correção de Complicações do Esterno Pós-Cirurgia Cardíaca Celso Blacher, Paulo Ernesto Leães, Adriana Parisotto, André Luís Bendl, Jorge Boeira, Fernando A. Lucchese Porto Alegre, RS Objetivo - Avaliar a repercussão da técnica de rotação de retalho muscular sobre a função pulmonar dos pacientes submetidos à cirurgia para tratamento de mediastinite. Métodos - Foram estudados 15 pacientes submetidos à cirurgia de rotação de retalho muscular e comparados com 26 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea, que não apresentavam complicações de ferida operatória. Os grupos foram estudados quanto à idade, sexo, peso, altura, tipo de cirurgia realizada, capacidade vital forçada (CVF), volume expiratório no 1º segundo (VEF1) e relação VEF1/CVF, em seus valores absolutos e percentuais, conclusão das espirometrias e evidência clínica de pneumopatia. Resultados - Não houve diferença estatística significativa entre os valores da CVF (p=0,98) e VEF1 (p=0,68) e VEF1/CVF (p=0,30) no grupo controle. A capacidade vital forçada média, valor absoluto, do grupo controle foi de 3907±1053,25 e do grupo de estudo foi de 2818±766,86 (p=0,0015). A média do volume expiratório forçado no 1º segundo, valores absolutos, no grupo controle, foi de 2995± 855,68 e, no grupo de estudo, foi de 2232±617,68 (p=0,0046). Os dados percentuais relativos previstos para CVF (104,78±21,73 e 82,04±21,16) e VEF1 (99±22,67 e 79,04±19,17) no gr upo controle e no grupo de estudo, também tiveram significância estatística (p=0,0026 e p=0,0067, respectivamente), o que não ocorreu com a relação VEF1/CVF. O grupo de estudo teve cinco casos de insuficiência ventilatória restritiva contra nenhum grupo controle (p=0,0031). Conclusão - Os portadores de complicações infecciosas esterno-mediastinais, tratados com a rotação de retalho do músculo peitoral, apresentaram comprometimento da ventilação pulmonar do tipo restritivo, de grau moderado, que deve ser considerada perante esta situação. Palavras-chave: mediastinite, cirurgia de retalho do músculo peitoral, função pulmonar Worsening of Pulmonary Function in Patients Submitted to Muscle Flap Surgery for Treatment of Sternal Wound Complications After Heart Surgery Purpose - To evaluate pulmonary function of patients submitted to muscle flap for treatment of mediastinitis. Methods - Fifteen patients operated with the muscle flap technique were compared with 26 consecutive patients submitted to heart surgery with extracorporeal circulation, that did not present wound complications. Both groups were evaluated for age, sex, body weight, height, surgery, forced vital capacity (FVC), forced expiratory volume in first second (FEV1) and the relation (FEV1/FVC) in absolute and percentual values, espirometry conclusions and clinical evidences of lung disease. Results - There was no statistical difference between preoperative and postoperative period for FVC (p=0.98), FEV1 (p=0.68) and FEV1/FVC (p=0.30) in the group with no sternal complications. In the control group, the median of FVC was 3907±1053.25 and in the study group was 2818±766.86 in absolute values (p=0.0015). The median of FEV1, in the control group, was 2995±855.68 and in the study group was 2232±617.68 in absolute values (p=0.0046). There was statistical difference, between groups, in FVC (104.78±21.73 and 82.04±21.16) and FEV1 (99±22.67 and 79.04±19.17) in percentual (p=0.0026 and 0.0067) values. There was no statistical difference for the ratio FEV1/FVC. The study group had five patients diagnosed as having restrictive ventilatory insufficiency by espirometry against none in the control group (p=0.0031). Conclusion - Patients with infectious complications of sternum and mediastinum, treated surgically with muscle flap rotation may present restrictive pulmonary insufficiency in moderate degree, that must be considered in this situation. Key-words: mediastinitis, muscle flap surgery, pulmonary function Arq Bras Cardiol, volume 67 (nº4), 243-247, 1996 Hospital São Francisco da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre Correspondência: Celso Blacher - Av. Carlos Gomes, 1801/404-90480-005 - Porto Alegre, RS Recebido para publicação em 9/1/96 Aceito em 10/7/96 A mediastinite é uma complicação grave da cirurgia cardíaca por esternotomia que incide em 0,7 a 2% dos pacientes, com mortalidade descrita de 13 a 33% 1. Os fatores de risco que concorrem para mediastinite podem estar relacionados às condições do paciente, ao ato cirúrgico e a intercorrências no transoperatório. Os fatores

244 Arq Bras Cardiol dependentes do paciente são a idade (quanto mais avançada), sexo feminino, obesidade, diabetes melito, bronquite crônica, insuficiência renal, outras esternotomias anteriores. São fatores de risco transoperatórios a natureza da intervenção (cirurgia de revascularização miocárdica e correção de valvulopatia aórtica), utilização das artérias mamárias internas, duração da intervenção, tempo de circulação extracorpórea (CEC), cirurgia de urgência e a técnica de abertura e fechamento do esterno 2,3. Desde o início da década de 80, ficou demonstrado que a correção de infecções pós-esternotomia com a utilização de retalho do músculo peitoral apresenta melhores resultados em relação à mortalidade e morbidade do que as técnicas anteriormente utilizadas 4-8, que incluíam apenas debridamento e irrigação com substâncias antimicrobianas, em que a ferida operatória podia ser mantida aberta por longos períodos, ou fechada, com lavagem contínua por drenos 9-11. Há descrição de comprometimento da função pulmonar em pacientes acometidos por mediastinite pós-cirurgia cardíaca anterior ao uso do retalho muscular 12. Estudos realizados em pacientes tratados com rotação de retalho muscular não mostraram comprometimento da função pulmonar a longo prazo 13. O presente trabalho visa avaliar a repercussão sobre a função pulmonar dos pacientes submetidos à cirurgia para tratamento de mediastinite pela técnica de rotação de retalho muscular. Métodos Em estudo observacional, contemporâneo e comparado, foram estudados um grupo de 15 pacientes sucessivos submetidos à cirurgia de rotação de retalho muscular por complicação do esterno e/ou mediastino pós-cirurgia cardíaca, e um grupo controle, com 26 pacientes consecutivos submetidos à cirurgia cardíaca com CEC, que não apresentaram complicações de ferida operatória. Os indivíduos selecionados para o grupo de estudo foram aqueles que realizaram cirurgia de rotação de retalho do músculo peitoral por complicações infecciosas de esterno após cirurgia cardíaca, entre 1991 a 1993 no Serviço de Cardiologia e Cirurgia Cardíaca do Hospital São Francisco. A técnica operatória utilizada foi a usual, descrita na literatura 4,14 sendo utilizado um único músculo em 12 pacientes e dois músculos em três pacientes. Ao todo, foram contactados 23 pacientes, destes, dois haviam falecido por problemas não relacionados à cirurgia e seis não aceitaram participar do estudo, permanecendo, ao final, 15 pacientes. Os pacientes foram chamados para avaliação clínica e espirometria e reavaliados em prazo superior a 90 dias da última cirurgia. Todas as pessoas que compareciam para avaliação ambulatorial pré-operatória de cirurgia cardíaca eram convidadas a participar do grupo controle. Quarenta e nove pacientes aceitaram e foram incluídos, sendo que 26 completaram o protocolo, que consistia de avaliação clínica préoperatória e espirometria, e reavaliação, após 90 dias do pós-operatório, com nova espirometria. O grupo controle foi avaliado em relação aos valores espirométricos pré e pós-operatórios. Os grupos foram estudados e comparados quanto à idade, sexo, peso, altura, tipo de cirurgia realizada, se revascularização miocárdica (RM) quanto ao uso da artéria mamária interna e veia safena, e os seguintes parâmetros espirométricos: capacidade vital forçada (CVF), volume expiratório forçado no 1º segundo (VEF1) e relação VEF1/CVF, em seus valores absolutos e percentuais relativos a valores previstos para pacientes com a mesma idade, sexo, peso e altura. Também foi estudada a presença de evidências clínicas de pneumopatia. Este dado foi retirado da ficha de avaliação pré-operatório do serviço que exige o registro desta informação. As espirometrias foram agrupadas em resultado conclusivo normal, insuficiência respiratória restritiva (CVF <80% do valor previsto) e insuficiência respiratória obstrutiva (VEF1 <80%). Os grupos foram comparados em relação a estes resultados 15. Os dados foram analisados no programa EPI-INFO 6.0 Atlanta - Geórgia. Os testes estatísticos usados foram o qui-quadrado, teste "t" e teste de Fisher. O nível de significância aceito foi de α<5%. Resultados Ao todo, 41 pacientes foram avaliados: 26 no grupo controle e 15 no grupo de estudo. Não houve diferença significativa entre os grupos em relação à idade, sexo, peso, altura e presença clínica de pneumopatia (tab. I). Os procedimentos cirúrgicos realizados em ambos os grupos também foram semelhantes, com um número um pouco mais elevado de cirurgias valvulares no grupo controle, sem atingir significância estatística (tab. II). Na análise intragrupo, não houve diferença nos dados espirométricos no grupo controle quando comparado o período pré-operatório e pós-operatório (tab. III). A análise dos dados espirométricos pós-operatórios mostrou uma diminuição da capacidade vital forçada e do volume expiratório no 1º segundo do grupo de estudo em relação ao grupo controle, em valores absolutos e previstos (valores percentuais corrigidos para sexo, idade, peso e al- Tabela I - Características de ambos os grupos Grupo controle Grupo de estudo p Idade (anos) 52,6±15,8 47,1±17,8 0,67 Peso (kg) 69,2±13,2 73,8±15,9 0,66 Altura (m) 1,64±0,87 1,64±0,68 0,83 Sexo F=7 F=7 M=19 M=8 Presença de pneumopatia prévia 1 1 0,99 Total 26 15

Arq Bras Cardiol 245 Tabela II - Comparação dos grupos controle e estudo por procedimentos. Freqüência Cirurgia Grupo Controle Grupo de Estudo p Revascularização miocárdica 8 9 0,07 Mamária 1 0 Safena 3 7 Mamária + safena 4 2 Valvulares 17 5 0,05 Congênitas 1 1 0,99 Total 26 15 Tabela III - Dados espirométricos do grupo controle nos períodos pré e pós-operatórios. Pré-operatório Pós-operatório p CVF (ml) 3909±923,20 3907±1053 0,98 VEF1 (ml) 3089±815,23 2995±855,68 0,68 VEF1/CVF 0,78±0,086 0,77±0,083 0,30 CVF- capacidade vital forçada; VEF1- volume expiratório forçado no 1º segundo tura). Não houve diferença entre os dois grupos quanto à relação VEF1/CVF (tab. IV). Na análise comparativa dos grupos em relação ao resultado da espirometria, ficou evidenciado que o grupo de estudo possuía comprometimento restritivo significativamente mais freqüente (tab. V). Discussão Nossos resultados mostraram que não houve modificação da função pulmonar nos pacientes do grupo controle quando avaliados no período pré e pós-operatório. A comparação dos valores obtidos no pós-operatório entre pacientes submetidos à cirurgia de rotação de retalho do músculo peitoral (grupo de estudo) e aqueles que sofreram apenas a cirurgia corretiva da sua doença cardíaca básica (grupo controle) mostrou uma moderada disfunção pulmonar do tipo restritivo entre os primeiros, não encontrada no grupo controle. Não há, pelos dados analisados, características inerentes aos grupos que justifiquem os resultados obtidos. Não houve diferença quanto à idade, sexo, peso, altura e presença de dados clínicos de pneumopatia. Os pulmões são os órgãos mais freqüentemente comprometidos após a cirurgia cardíaca, embora de maneira moderada e transitória, concorrendo, para isto, vários fatores: isquemia e esvaziamento pulmonar durante a CEC, reação inflamatória na circulação pulmonar, mudanças da permeabilidade da membrana alvéolo-capilar, atelectasias, trauma pulmonar e acúmulo de secreções. Estas alterações são mais evidentes logo após a extubação. Pacientes com evolução normal apresentam disfunção pulmonar moderada que melhora gradualmente sem nenhuma terapêutica específica, a não ser deambulação e exercícios respiratórios, contudo, resíduos de disfunção podem estar presentes 10 dias após a cirurgia 16. Os volumes pulmonares normalmente estão diminuídos após a cirurgia cardíaca, mas usualmente revertem a valores normais em 3-6 meses 16. Estudo realizado em pacientes submetidos a cirurgia de revascularização miocárdica 17 avaliou a função pulmonar no período pré-operatório, após a extubação, na alta e três meses após a cirurgia. Logo após a cirurgia, estava presente um padrão pulmonar restritivo afetando todos os volumes pulmonares. Na alta, com exceção do volume residual, todos os outros volumes estavam ainda reduzidos na ordem de 19% a 33% em relação aos valores pré-operatórios. Após três meses, apenas mínimas alterações estavam presentes. Todas as medidas haviam retornado aos valores basais, a não ser a CVF e VEF1 que ainda estavam reduzidas. Em números percentuais referentes a valores normais previstos, a média de CVF caíra de 95,2% para 88%, e VEF1, de 93,9% para 87,9%. A dissecção de artérias mamárias mostrou-se como fator independente que significativamente influiu nas mudanças da função pulmonar no pós-operatório imediato e na alta, mas não após três meses. Em nossos casos, na avaliação pré-operatória e após três meses, no grupo controle, não houve diferença significativa entre as médias de CVF (3909±932,2 e 3907±1053) e VEF1 (3089±815,2 e 2995±855,7, tab. III). Shapira e col 17 comentam que seus valores de volumes pulmonares de pré-operatório são uma pouco abaixo dos normais, denotando uma população com algum grau de disfunção pulmonar prévia, enquanto os valores encontrados em nossos pacientes estão dentro da normalidade. Acreditamos que aqueles pacientes, com pneumopatia prévia, teriam uma recuperação mais lenta ou não tão completa, enquanto os nossos doentes, com pulmões sãos, evoluíram mais rapidamente para o retorno à normalidade. Não cremos que o maior número de cirurgias de revascularização miocárdica em nosso grupo de estudo Tabela IV - Valores espirométricos absolutos e previstos para o grupo controle e de estudo Absolutos Previstos (%) Controle Estudo p Controle Estudo p CVF (ml) 3907±1053,25 2818±766,86 0,0015 104,78±21,73 82,04±21,16 0,0026 VEF1 (ml) 2995±855,68 2232±617,68 0,0046 99±22,67 79,04±19,17 0,0067 VEF1/CVF 0,77±0,083 0,80±0,12 0,61 0,76±0,08 0,77±0,15 0,29

246 Arq Bras Cardiol Tabela V - Conclusão dos exames espirométricos Resultado Controle Estudo p Normal 17 5 0,05 Obstrutivo 9 5 0,46 Restritivo 0 5 0,0031 possa ter influenciado os resultados, mesmo com a utilização das artérias mamárias, já que a influência deste procedimento na função pulmonar, desaparece na avaliação tardia (três meses) 17, e também porque o número de pacientes submetidos à revascularização miocárdica em que se usou implante de artérias mamárias foi menor no grupo de estudo do que no grupo controle. Pensamos que o grupo de pacientes valvulopatas pudesse ter maior comprometimento pulmonar por serem normalmente portadores de insuficiência cardíaca crônica, muitas vezes com hipertensão pulmonar. Porém, estando os valvulopatas em maior número no grupo controle, não vemos que possa ter havido interferência deste fator nos resultados obtidos. Antes da disseminação do uso dos retalhos musculares para tratamento de mediastinites, foi estudado um grupo de pacientes previamente tratados com debridamento de esterno, irrigação fechada e antibioticoterapia e avaliados pela CVF num tempo médio de 50 meses. Os valores obtidos foram comparados aos encontrados na avaliação préoperatória. Os pacientes apresentavam um período de evolução muito prolongado e havia a preocupação de que pudesse haver uma grande distorção das estruturas do mediastino, no processo cicatricial. Foi encontrada uma diminuição da CVF de 9,75±10,4% dos valores previstos para a idade e sexo, sem significância estatística (p=0,55). Os autores consideraram, na ocasião, que estes achados não diferiam muito dos obtidos em cirurgias cardíacas normais, e concluíram que a ausência de comprometimento importante da função cardiopulmonar validava aquela proposta terapêutica 12. Ficou então evidenciado que o processo infeccioso e cicatricial do mediastino não é suficiente para provocar alteração ventilatória de importância clínica. Kohman e col 13, comparando um grupo de pacientes submetidos à cirurgia de rotação de retalho muscular, com um grupo controle, não encontraram diferenças significativas quanto à evolução pós-operatória em relação às provas de função pulmonar. Estudando mais atentamente seus dados, vamos encontrar um valor de CVF de 68,1±22,3% e de VEF1 de 71,3±18,9% (valores percentuais relativos à normalidade), na avaliação tardia pós-operatória, que são valores até inferiores aos nossos. Apenas, que seus pacientes do grupo controle tiveram também uma redução dos volumes pulmonares, não da mesma intensidade, mas suficientes para impedirem que se chegasse à significância estatística. Os autores, em sua discussão dos resultados, comentam que um número maior de pacientes poderia levar à significância estatística e ressaltam que, quando atribuído um valor inferior limite para CVF, e comparados os grupos, no grupo de estudo foram registrados cinco em 13 pacientes na faixa anormal, enquanto o grupo controle apresentava apenas um em 15 pacientes, com um valor de p muito próximo à significância estatística (p=0,06). Nosso grupo apresentou um comportamento muito semelhante, porém nossos pacientes do grupo controle apresentavam média de valores normais na avaliação pré-operatória e retornaram a números praticamente idênticos após a cirurgia, o que tornou mais evidente o comprometimento específico, motivado pela cirurgia de correção dos problemas infecciosos de esterno e mediastino com uso de retalhos musculares. Não cremos que a composição do grupo controle possa ter afetado os resultados, porque os pacientes foram escolhidos aleatoriamente e nenhum dos dados avaliados mostrou diferenças entre este e o grupo de estudo. Acreditamos que o comportamento do grupo controle represente o comportamento geral dos pacientes em nosso serviço, para cirurgias com CEC, sem complicações infecciosas de esterno e mediastino. Entre outros fatores descritos como predisponentes à instalação de infecção grave de esterno, a presença de pneumopatia teve importância como dado preditivo estatisticamente independente 1. Seria de se esperar que o grupo de estudo tivesse, por isso, um maior número de pacientes pneumopatas, que comparado ao grupo controle, totalmente normal, explicasse a diferença dos achados espirométricos. Foi realizada uma avaliação clínica e radiológica previamente à primeira cirurgia em todos os pacientes, que não mostrou diferença entre os grupos. Infelizmente não temos uma avaliação mais específica, com dados espirométricos prévios à primeira cirurgia no grupo de estudo, por não ser esta a rotina em nosso serviço em todos os pacientes submetidos à cirurgia cardíaca. A avaliação prévia à cirurgia de correção do processo infeccioso não seria útil, pois os pacientes geralmente apresentam, nesta fase, dificuldades ventilatórias severas motivadas, principalmente, por dor torácica e também por instabilidade do esterno, e os dados obtidos nesta fase da doença não representariam a situação pneumológica basal. A técnica cirúrgica utilizada não sofreu nenhuma modificação importante em relação ao usualmente descrito 4,14. Em apenas três pacientes foram utilizados os dois músculos peitorais, portanto, cirurgias bem mais conservadoras do que as utilizadas no grupo de pacientes descritos por Kohlman e col 13, que utilizou mais freqüentemente os dois músculos e também o reto abdominal, o que talvez pudesse ter influenciado de maneira diferente a ventilação pulmonar. Os valores espirométricos (CVF e VEF1) foram considerados anormais quando <80% dos índices previstos. Esta é uma proposta que simplifica a avaliação, utilizada em muitas clínicas que trabalham com provas de função pulmonar e teria apenas o inconveniente de distorcer os números nos extremos etários 15. Como os dois grupos não

Arq Bras Cardiol 247 apresentam diferença quanto à idade (médias em torno de 50 anos) consideramos tal avaliação adequada para a finalidade proposta. Concluímos que a cirurgia para correção de complicações infecciosas de esterno e mediastino com a utilização de retalhos de músculo peitoral, acarreta alterações tardias da função pulmonar do tipo restritivo, alterações estas de grau moderado que não costumam trazer manifestações clínicas importantes, mas devem ser lembradas sempre que houver necessidade de se utilizar este procedimento. Agradecimentos Aos Drs Tatiana Statlober, Eduardo Garcia, José R. Goldim, Wagner Pereira, José D. Frota Fº, Roberto Chem, Luís C. C. da Silva, José Felicetti, Eraldo Lúcio, Gládis Semensatto, pelas idéias, incentivo e participações nos cuidados dos pacientes. Referências 1. Demmy TL, Park SB, Liebler GA, et al - Recent experience with major sternal wound complications. Ann Thorac Surg 1990; 49: 458-62. 2. Breyer RH, Mills SA, Hudspeth AS, Johnston FR, Cordell AR - A prospective study of sternal wound complications. Ann Thorac Surg. 1984; 37: 412-16. 3. Medot M, Fissete J, Limet R - Mediastinites: diagnostic, facteurs de risque et traitment. Ann Chir Thorac Cardio-Vasc 1993; 47: 752-65. 4. Jurkiewicz MJ, Bostwick J, Hester TR, Bishop JB, Craver J - Infected median sternotomy wound: successful treatment by muscle flaps. Ann Surg 1980; 191: 738-43. 5. Nahai F, Rand RP, Hester TR, Bostwick J, Jurkiewicz MJ - Primary treatment of the infected sternotomy wound with muscle flaps: a review of 211 consecutive cases. Plast Reconstr Surg. 1989; 84: 434-41. 6. Scully HE, Leclerc Y, Martin RD et al - Comparison between antibiotic irrigation and mobilization of pectoral muscle flaps in treatment of deep sternal infections. J Thorac Cardiovasc Surg 1985; 90: 523-31. 7. Majure JA, Albin RE, O Donnell RS, Arganese TJ - Reconstruction of the infected median sternotomy wound. Ann Thorac Surg 1986; 42: 9-12. 8. Herrera HR, Ginsburg ME - The pectoralis major myocutaneous flap and omental transposition for closure of infected median sternotomy wounds. Plast Reconstr Surg 1982; 70: 465-70. 9. Sarr MG, Gott VL, Towsend TR - Mediastinal infection after cardiac surgery. Ann Thorac Surg 1984; 38: 415-23. 10. Serry C, Bleck PC, Javid H et al - Sternal wound complications: management and results. J Thorac Cardiovasc Surg. 1980; 80: 861-67. 11. Grossi EA, Culliford AT, Krieger KH et al - A survey of 77 major infectious complications of median sternotomy: a review of 7.949 consecutive cases operative procedures. Ann Thorac Surg 1985; 40: 214-23. 12. Grigas D, Bor DH, Kosinski E, Costello P, Rose RM - Cardiopulmonary function following post-cardiac surgical mediastinitis. Chest 1984; 85: 729-32. 13. Kohman LJ, Auchinloss JH, Gilbert R, Beshara M - Functional results of muscle falp closure for sternal infection. Ann Thorac Surg 1991; 52: 102-106. 14. Tobin GR - Retalho muscular-miocutâneo do grande peitoral na reconstrução da parede torácica. Clin Cir Am Nort 1989; 5: 1079-95. 15. American Thoracic Society - Lung function test: selection of reference values and interpretative strategies. Am Rev Respir Dis 1991; 144: 1202-18. 16. Kirklin JW, Barrat-Boyes BG - Cardiac Surgery. New York: Churchil Livingstone, 1993: 210-15. 17. Shapira N, Zabatino SM, Ahmed S et al - Determinants of pulmonary function in patients undergoing corornary bypass operations. Ann Thorac Surg 1990; 50: 268-73.