Corpos Marcados: Adolescência, Identidade e Cuidados com o Corpo na Contemporaneidade Marcela Rezende Géa A adolescência é caracterizada por ser um período intermediário entre a infância e o mundo adulto, constituindo-se como um lugar de passagem e um momento de inserção num ambiente social distinto, marcado por angústias de perda, separação e invasão, que exigem um trabalho de reinvenção do indivíduo e de reconstrução de ideais abalados. O equilíbrio psíquico, momentaneamente conquistado na latência, é estremecido pela revolução da puberdade. Durante a adolescência, nas tentativas de reconstruir este equilíbrio, ou de estabilizar uma outra forma de bem-estar, o indivíduo reviverá situações passadas, frente as quais também será exigida a edificação de novos recursos e a construção de novas alternativas de resolução. As modificações físicas trazidas no momento pubertário impulsionam as transformações psíquicas. Dessa forma, em meio a um turbilhão de desejos, sentimentos e medos, os jovens promovem uma profunda revisão de seu mundo interno e experiências infantis, buscando dar conta das transformações físicas da puberdade e da demanda de trabalho psíquico que invade seu território. Num viés psicanalítico, a ênfase é depositada nas repercussões psíquicas provocadas em função da chegada nesta etapa da vida. Apesar de não utilizar o termo adolescência, Freud abordou o assunto das transformações pubertárias especialmente no terceiro ensaio pertencente aos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, no qual, mesmo partindo de uma visão ancorada nas transformações corporais, os pontos fundamentais envolvidos no desenvolvimento pubertário são observados enquanto momentos de ruptura, à luz de uma experiência subjetiva.
Neste cenário de desacomodação, o sujeito vê-se diversas vezes frente à exigência de processar psiquicamente um excesso que ora o invade de fora, ora o ataca de dentro. No corpo, o excesso encontra formas de descarga, mas não necessariamente formas de elaboração. Segundo a teoria psicanalítica, de acordo com Maria Helena Fernandes 1, o corpo é compreendido como um espaço de exposição das temáticas biológicas atravessadas pelo psiquismo. Neste sentido, podemos pensar que, neste momento, o corpo evidencia as manifestações da mudança e das diferenças em relação à infância, constituindo um território privilegiado de expressão. Num ato de reconhecimento do adolescente em relação ao seu próprio corpo, encaminhando-se à sua maneira a elaboração psíquica dos excessos que o envolvem, as marcas corporais podem ter seu lugar, num ato concreto de apropriação traçado em sua própria pele. Nossa época é marcada pelo denominado culto ao corpo e pela intensa discussão em torno deste tema. É caracterizada ainda por uma inédita fabricação de artefatos, medicamentos e publicações destinados à majoração de uma saúde padronizada, aumento da sedução e da fruição das sensações que o corpo pode proporcionar. Contudo, segundo Denise Sant Anna, as liberdades adquiridas pelo corpo implicam necessariamente em novas responsabilidades assumidas. As formas de controle sobre o corpo, criadas com o apoio técnico e cientifico, ocorrem de modo paralelo a descoberta de novas coações a serem vividas, de novas zonas de descontrole, de mistério e de risco 2. Este crescente ímpeto de uma domesticação corporal requer uma reflexão interdisciplinar sobre os limites desta normatização, assim como acerca das repercussões psíquicas decorrentes de potenciais alterações na economia libidinal do sujeito 1 FERNANDES, M.H. Corpo. Coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 2 SANT ANNA, D.B. (org.) Políticas do Corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995.
contemporâneo. Estes fatores chamam ainda mais a atenção se pensarmos no crítico momento de reconhecimento corporal característico da adolescência, assim como seu intenso trabalho de elaboração psíquica e sua reestruturação egóica. Segundo David Le Breton 3, no discurso científico contemporâneo o corpo é pensado como uma matéria indiferente, como um simples suporte para o indivíduo. Este se torna um objeto passível de ser melhorado e não mais a matriz identitária do homem. O corpo é normalmente colocado como um alter ego consagrado ao rancor dos cientistas. Subtraído do homem que o encarna a maneira de um objeto, esvaziado de seu caráter simbólico, o corpo também é esvaziado de qualquer valor. 4 Estrutura cujas peças podem ser substituídas, melhoradas, conjuntura que dá sustento a presença, contudo sem lhe ser fundamentalmente necessária, o corpo hoje é moldado em nome de uma purificação técnica da aparência e de condutas, uma retificação do ser-no-mundo, um rascunho a ser corrigido. O corpo desejado é visto como acessório da presença, implicado em uma encenação de si construída a partir da montagem de uma identidade provisória mais favorável aos interesses do momento. Para isso há a incansável submissão do corpo a uma série de técnicas: body building, marcas corporais, cirurgias estéticas, transexualismo, que representam as possibilidades de uma identidade manejável, ao gosto da afirmação de uma estética de presença.. Não é mais o caso de contentar-se com o corpo que se tem, mas de modificar suas bases para completá-lo ou torná-lo conforme a idéia que dele se faz 5.Sem o comportamento induzido pelo indivíduo, sem a padronização de um estilo de vida destinado a um fim específico, o corpo seria uma forma decepcionante, insuficiente para 3 LE BRETON, D. Antropologia del cuerpo y modernidad. Buenos Aires: Nueva Visión, 1995. 4 LE BRETON, D. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Campinas, PAPIRUS Editora, 2003. 5 Idem.
representar o novo indivíduo no cotidiano a ser enfrentado. A partir da constante vigilância acerca desta suspeita do corpo, este deixa de representar a unidade identitária primordial do homem para se tornar um elemento moldável de reivindicação de si perante sua afirmação pessoal e perante as possibilidades de mudanças em sua própria história. Segundo Jurandir Freire Costa 6, o despotismo do corpo perfeito se exerce pelo constante policiamento e exigência de renúncia dos hábitos contraídos na organização do esquema corporal. Assinala ainda que a subjetividade do indivíduo na sociedade ocidental contemporânea está assentada no corpo, de forma que sua autoconservação se tornou um fim em si mesmo e garantia de consideração moral na sociedade. Sendo assim, a felicidade na moral do espetáculo estaria articulada à obtenção do corpo ideal proclamado pela mídia assim como suas respectivas sensações. Exaltando o prazer das sensações e implicando em uma satisfação de caráter narcísico, a sociedade contemporânea incita um uso arriscado do corpo superinvestido libidinalmente da puberdade, na medida que este se torna um estrangeiro, portador de uma ruptura com seu passado. Neste contexto, as modificações corporais como tatuagens e piercings podem significar para o portador do corpo pubertário uma marca da apropriação, do encarnar da libido em seu redespertar num corpo cindido de seu passado. Na contemporaneidade, certos valores podem intensificar repercussões que dizem respeito à economia psíquica e a mediação da pulsionalidade na adolescência, podendo assim funcionar como incentivo a um uso arriscado desse corpo. A dualidade entre a busca por uma suposta singularidade, marcada por dinâmica que oscila entre a busca de identidade, de reconhecimento e de sentido, e entre uma adesão a marcação do corpo como fenômeno de identificação social, 6 COSTA, J. F. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
lógica esta transpassada pelo modo de consumir, também fazem parte de um contexto que conduz a reflexão. A adolescência, enquanto momento de desacomodação de valores e reapropriação do corpo, chama a atenção no que diz respeito ao significado da adesão às marcas corporais. A marca, que pode simbolizar uma inscrição concreta, na própria pele, de uma significação pessoal da dinâmica de crescimento, emancipação e entrada na comunidade social pelo indivíduo, também agrega em seu conjunto de sentidos o entrelaçamento do significado singular atribuído a vivência da corporalidade na contemporaneidade. Nesse sentido, a vivência individual e o circuito social interagem, não ficando restritos a um campo específico, mas sim interagindo no campo simbólico das significações e ressignificações empreendidas pelo adolescente. Cabe a psicanálise refletir e dar ouvidos aos testemunhos inquietos desta juventude, que age também como porta-voz de um mal estar ao se encontrar diante dos chamados de seu próprio âmbito corporal e das invocações de uma sociedade que o sobrevaloriza, de modo a estar alerta aos limites desta normatização, assim como de suas repercussões psíquicas sobre o indivíduo contemporâneo.