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Transcrição:

Linhas Críticas ISSN: 1516-4896 rvlinhas@unb.br Universidade de Brasília Brasil Oliveira, Amurabi Apresentação: Antropologia e Educação Linhas Críticas, vol. 21, núm. 44, enero-abril, 2015, pp. 11-17 Universidade de Brasília Brasília, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=193538270002 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe, Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Apresentação: Antropologia e Educação Amurabi Oliveira Universidade Federal de Santa Catarina A Educação enquanto campo científico tem se consolidado historicamente por meio de um amplo diálogo com outras ciências, destacando-se a sociologia, filosofia, psicologia e história. Todavia, desde meados dos anos 80 do século passado, com a chamada crise de paradigmas, com certo esgotamento das investigações quantitativas que vão dando lugar à pesquisa qualitativa e à explosão da diversidade cultural no cenário pós-moderno, nota-se um crescente interesse por parte de pesquisadores da educação pela antropologia num primeiro momento, visando a superação de uma visão dicotômica que concebe a segunda como ciência e a primeira como prática (Gusmão, 1997). Posteriormente, tal interesse também se direciona à busca de suporte teórico e, especialmente, metodológico com a etnografia, tendo em vista a discussão das culturas na educação e na escola. Apesar de parecer um diálogo recente no Brasil, que remeteria aos anos de 1970 com o advento dos estudos de comunidade, quando há uma profusão de pesquisas antropológicas voltadas para as sociedades complexas (Peirano, 2006), essa interface é substancialmente anterior. Remete à constituição dos Gabinetes de Antropologia e Psicologia Pedagógica na passagem do século XIX para o XX nas Escolas Normais, voltadas para a formação de professores (Oliveira, 2012, 2013a). E ainda que o paradigma que se constituiu como predominante na antropologia brasileira, vinculado à antropologia social e cultural, se diferencie substancialmente daquele praticado em tais gabinetes, marcados pela influência da antropologia física, não é menos relevante o fato de que surja junto a estes espaços de formação docente uma preocupação em conhecer o outro, reflexão norteadora da antropologia. No plano internacional, na consolidação da antropologia como ciência, sempre houve uma preocupação com a questão da infância e, por conseguinte, com as aprendizagens (Rocha, Tosta, 2009), norteando a construção de interfaces entre esses dois campos do saber. Nessa direção mostra-se emblemática a obra da antropóloga americana Margaret Mead (1901-1978), que, desde seus primeiros trabalhos de campo produzidos junto a culturas africanas, a exemplo dos célebres textos, Coming of Age in Samoa (1961 [1928]), e Growing up in New Guinea (2001 [1930]), apontou a educação como um aspecto relevante para a compreensão das 11

sociedades estudadas. Por ser a cultura o objeto por excelência da antropologia, os pesquisadores não poderiam se furtar a compreender a educação também como uma vivência cultural, e a própria cultura como uma prática educativa. Aqueles que se debruçarem sobre os referidos textos etnográficos de Mead certamente estranharão ao não encontrar referências a instituições escolares formais a não ser nos momentos em que a autora realiza um esforço comparativo com a sociedade americana. Porém, reside nisso uma das contribuições mais notáveis da antropologia para essa discussão, que é o alargamento do conceito de educação, pensando-o como aprendizagens que ocorrem nas inúmeras experiências que permeiam e fazem a vida cotidiana, para além dos muros escolares. Pensando a educação deste modo, faz-se importante, então, o entendimento de que socializar e aprender como intenções precípuas da escola só é possível quando colocados como fatos das culturas que se realizam nas culturas. Ora, se é assim, o diálogo com a antropologia que toma a si o estudo das culturas é amplamente necessário. Além de uma substancial contribuição em termos teórico-conceituais, a antropologia possibilita interfaces com a educação por meio de seu debate metodológico, centrado principalmente na questão da etnografia, que emerge dos padrões que conhecemos hoje, a partir da publicação de Os Argonautas do Pacífico Sul, em 1922, por Malinoswski (1884-1942). Reconhecemos, ainda, que esse diálogo não ocorre sem o estabelecimento de tensões entre esses campos disciplinares, dado que a apropriação da antropologia pela educação vem se dando frequentemente de forma aligeirada, havendo uma separação entre o método e o substrato teórico que o norteia (Valente, 1996). São diálogos equivocados que se amparam na difusão de perspectivas que propagam a ideia da existência de trabalhos de inspiração etnográfica (André, 1995), sem que haja uma delimitação do que esta viria a ser (Oliveira, 2013b). Os trabalhos reunidos nesse dossiê posicionam-se a favor do desenvolvimento de pesquisas etnográficas no campo educacional, justamente por compreenderem ser esta uma das interfaces mais frutíferas entre esses dois campos. No que concerne mais especificamente a uma possível antropologia da educação que vem se desenvolvendo na América Latina, ressalta-se a grande importância dada à temática da educação indígena, que reflete tanto a agenda de pesquisa da antropologia nos países dessa região, na qual a etnologia sempre se afigurou como um campo privilegiado, quanto na visibilidade que os direitos indígenas têm ganhado, no caso brasileiro principalmente a partir da Constituição Federal de 1988 (Cunha, 2013). Em todo caso, por se tratar de um campo explorado de forma mais intensa por pesquisadores ligados à antropologia e à educação, optou-se nesse dossiê por explorar outras temáticas emergentes. 12 Amurabi OLIVEIRA. Apresentação

Pode-se ainda ressaltar a grande ênfase que vem sendo dada à questão da diversidade cultural nas políticas públicas para a educação no Brasil, principalmente a partir dos anos de 1990 e com um impulso ainda maior a partir dos anos 2000. Nos movimentos e ações que reivindicam tais políticas identitárias, é notável a intensa participação de antropólogos no debate público em torno, por exemplo, da implementação das ações afirmativas no ensino superior, da Lei nº. 10.639/03 e 11.645/08 e de outras políticas públicas que estão imbricadas às questões de gênero, étnico-raciais, de diversidade religiosa etc. Em todo caso, parece-me evidente que a necessidade de pensar nossa realidade educacional a partir da perspectiva antropológica se mostra cada vez mais urgente pelo alargamento da compreensão desta. Conceitos-chave que esta ciência vem desenvolvendo ao longo de sua história propiciam uma reflexão sistemática referente aos grupos étnicos, aos sistemas simbólicos, à dimensão corporal, à cultura de forma ampla, enfim, que são cada vez mais fundamentais para profissionais da educação escolar e não escolar. Soma-se a esta constatação o dado empírico de que vivemos numa sociedade onde tornam-se intensamente visibilizados a desigualdade e pluralidade em termos étnicos, religiosos e de gênero no espaço público, o que tem sido evidenciado progressivamente pelos últimos censos e implica evidentemente uma escola cada vez mais multicultural, compreendida aqui numa perspectiva crítica e não apenas de tolerância às diferenças. (McLaren, 2000) Tal cenário aponta, indubitavelmente, para a necessária elaboração de um substancial diálogo entre os campos da antropologia e da educação, o que possibilitaria o lançamento de novos olhares sobre esse campo marcado por inúmeras tensões. Sendo assim, o desenvolvimento desse dossiê temático Antropologia e Educação adquire muita relevância, considerando, justamente, tanto o aspecto normativo quanto a realidade empírica da educação, que contrasta profundamente com a incipiência desse campo, ainda pouco articulado e em processo de consolidação no Brasil e na América Latina. São ainda poucos as coletâneas, os dossiês e mesmo artigos pontuais que se dedicam exclusivamente à discussão no campo da antropologia e da educação, o que por si só já justificaria a elaboração deste número temático. Acredito que as múltiplas interfaces possíveis entre a antropologia e a educação produzem discussões fundamentais para a formação de professores, possibilitando a superação de uma perspectiva estática acerca dos agentes envolvidos na prática pedagógica, e uma compreensão destes a partir de seu contexto cultural. A ideia germinal da proposta deste dossiê surge nos diversos espaços de reflexão e divulgação científica que têm surgido no Brasil e na América Latina, Linhas Críticas, Brasília, DF, v.21, n.44, p. 11-17, jan./abr. 2015. 13

voltados para a interface entre a antropologia e a educação, a partir dos quais tem se articulado uma rede de pesquisadores destas regiões principalmente. Destacaria nesse sentido os grupos de trabalhos que têm ocorrido em eventos como Reunião Brasileira de Antropologia, Reunião de Antropologia do Mercosul, Reunião Equatorial de Antropologia, Congresso Latino-Americano de Antropologia, Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais bem como a participação ativa de vários dos pesquisadores presentes neste dossiê nas reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação e em suas variações regionais. É interessante destacar que, nos eventos da área de educação, no sentido mais estrito, ainda que não haja em muitos casos grupos de trabalho específicos sobre a antropologia da educação, esse diálogo aparece em diversas pesquisas apresentadas de forma relativamente difusa, por meio de trabalhos que contemplam a questão das relações étnico-raciais, de gênero, bem como a ampla interface entre educação e cultura, além, é claro, da aproximação metodológica criada por meio da etnografia, como nos indica a análise realizada por Lima (2011). Em todo caso, a passagem de conceitos teóricos e referenciais metodológicos de um campo para outro nem sempre se dá sem ruídos, demandando por parte dos pesquisadores, antropólogos e educadores um constante processo de reflexão em torno desse campo ainda em constituição no Brasil, a antropologia da educação, e é nessa direção que visamos contribuir com a elaboração desse dossiê temático. O primeiro trabalho Antropologia e educação: um campo e muitos caminhos, de autoria de Neusa Gusmão, nos traz uma reflexão sobre as possibilidades e tensões que se estabelecem nessa interface, o que é analisado a partir do caso brasileiro. Ela nos indica o caráter aberto que possui a antropologia, no sentido de propiciar diálogos com as mais diversas áreas do saber, o que inclui a educação, porém aponta também para as contradições envolvidas no processo e para a ausência de uma discussão mais sistemática sobre a temática educacional na perspectiva antropológica nos cursos de ciências sociais no Brasil. Tânia Dauster em Um diálogo sobre as relações entre etnografia, cultura e educação representações e práticas retoma um dos pontos de discussão mais frutíferos e ao mesmo tempo mais polêmicos nessa seara em que nos inserimos neste Dossiê. A autora realiza uma breve contextualização sobre a atitude epistemológica de conhecer o outro presente na antropologia, e, depois, parte de sua experiência enquanto antropóloga atuante no Programa de Pós-Graduação em Educação mais antigo do Brasil, o que se desdobra para a compreensão da 14 Amurabi OLIVEIRA. Apresentação

construção de um saber híbrido, ou de fronteira, o que é indicado a partir das temáticas de pesquisa que vêm sendo exploradas pela pesquisadora e seu grupo. Etnografia em pesquisas educacionais: o treinamento do olhar de Rodrigo Rosistolato e Ana Pires do Prado também se volta para a formação antropológica para não antropólogos, porém trata-se de uma reflexão fundamentada em experiências vivenciadas em pesquisas específicas e no nível da graduação. O trabalho dos autores traz uma substancial contribuição para refletirmos sobre a escrita etnográfica, que normalmente é pensada no plano exclusivamente individual, mas, no caso analisado, é elaborada a partir de uma construção coletiva, tomando como fio condutor a construção do olhar antropológico no desenvolvimento da pesquisa. Tal poderia levar à produção de pesquisadores capazes de relativizar suas visões de mundo, o que se mostra como fundamental para a formação de profissionais da educação. Gabriela Novaro parte de uma pesquisa empírica em Familias, asociaciones y escuelas: tensiones en las identificaciones nacionales de niños migrantes, analisando a dinâmica e complexa relação identitária construída pelos migrantes bolivianos na Argentina, na qual a escola ocupa um lugar central em meio às tensões estabelecidas. Destaca ainda em seu trabalho a relação entre as famílias e a organização escolar, o que é articulado a partir dos dados obtidos em diferentes escolas, tendo em vista que a educação aparece como um importante elemento na construção de um projeto de nação. Já Ricardo Veira e Ana Vieira exploram uma temática que se relaciona diretamente com as principais pautas na agenda de pesquisa da antropologia da educação em Identidades, Aprendizagem e Mediação Intercultural: uma análise antropológica, uma vez que adentram no terreno da multiplicidade de culturas, atravessadas pelos sujeitos da prática educativa (escolar ou não), trazendo um elemento pouco explorado na literatura da antropologia da educação brasileira: a mediação intercultural e sociopedagógica, o que é operacionalizado pelos autores em termos metodológicos por meio do uso compreensivo de narrativas biográficas e de histórias de vida. Dinâmicas culturais e educação: apropriação e (re) significação de espaços escolares por adolescentes, de autoria de Sandra Tosta e Andréa Carvalho, aborda a questão das culturas juvenis, voltando-se para um dos agentes das práticas educativas: os alunos, por meio de pesquisa realizada em Contagem (MG). Não realiza seu enfoque, porém, a partir da sala de aula, mas sim de outros espaços, ainda parcamente explorados pelas pesquisas em educação, a partir dos quais as autoras buscam apreender os significados atribuídos por estes adolescentes aos diferentes tempos e espaços, indicando que (...) a arquitetura escolar adquire materialidade e vida pela ação dos alunos, professores, Linhas Críticas, Brasília, DF, v.21, n.44, p. 11-17, jan./abr. 2015. 15

funcionários, familiares e não simplesmente emana de um projeto que se faz, em geral, alheio a estes sujeitos. Álamo Pimentel em As Lições das Coisas adentra no terreno da educação patrimonial, problematizando o processo de aprendizagem a partir dos museus, explorando, portanto, um espaço não escolar. Também há nesse trabalho uma preocupação com os significados produzidos pelos alunos com relação à experiência didática vivenciada, o que se coloca em consonância com a perspectiva antropológica de produção do conhecimento, destacando por fim os elementos que estão envoltos no processo de estranhamento experimentado. O último artigo do dossiê é de minha autoria e se intitula Gilberto Freyre e a educação: raça, democracia e ensino de história e cultura afro-brasileiras, explorando uma dimensão ainda insuficientemente analisada no legado intelectual de Gilberto Freyre, por meio de dois eixos: a relação entre raça e educação e as possíveis contribuições da obra do antropólogo pernambucano para a Lei n.º 10.639/03. Nele realiza-se uma leitura na contramão do que vem sendo abordado nas pesquisas sobre relações étnico-raciais e educação, que relegam o autor, em recorrentes casos, ao cliché de defensor da democracia racial no Brasil. Acredito que os vários olhares lançados por este dossiê podem contribuir significativamente para o avanço do desenvolvimento do campo da antropologia da educação no Brasil e na América Latina e para o debate educacional de forma mais ampla, uma vez que a interface entre esses dois campos do saber mostrase bastante frutífera e fundamental para pensarmos os desafios postos para a educação ante a realidade múltipla da cultura. Referências ANDRÉ, Marli. Etnografia da Prática Escolar. Campinas: Papirus: 1995. GUSMÃO, Neusa Maria M. Antropologia e educação: origens de um diálogo. Cadernos CEDES, v. 18, nº 43, pp. 8-25, 1997. CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. LIMA, Janirza Cavalcante da Rocha. Antropologia e Educação: um diálogo possível?. Inter-Legere. s/v, nº 9, pp. 167-188. MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Crítico. São Paulo: Cortez, 2000. MEAD, Margaret. Coming od Age in Samoa. New York: William Morrow, 1961. Growing up in New Guinea. New York: Prenial Cclassics, 2001. OLIVEIRA, Amurabi. Antropologia e Antropólogos, Educação e Educadores: O 16 Amurabi OLIVEIRA. Apresentação

lugar do ensino de Antropologia na formação docente. Percursos, v. 13, n 1, pp. 120-132, 2012.. O lugar da antropologia na formação docente: um olhar a partir das escolas normais. Pro-Posições, vol 24, n.º 2, 2013a.. Por que etnografia no sentido estrito e não estudos do tipo etnográfico em educação?. Revista FAEEBA, vol.22, nº 40, pp. 69-82, 2013b. PEIRANO, Mariza. A Teoria Vivida: e outros ensaios de antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. ROCHA, Gilmar; TOSTA, Sandra Pereira. Antropologia & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. VALENTE, Ana Lúcia E. F. Usos e Abusos da Antropologia na Pesquisa Educacional. Pro-Posições, v. 7, n.20, pp. 54-64, 1996. Linhas Críticas, Brasília, DF, v.21, n.44, p. 11-17, jan./abr. 2015. 17