Leishmaniose Visceral em criança: um relato de caso sobre a recidiva da doença

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Transcrição:

RELATO DE CASO Leishmaniose Visceral em criança: um relato de caso sobre a recidiva da doença Marina Dias Pereira 1 Junnia Duque Lopes 1 Maria da Graça Camargo Neves 2 1 Programa de Residência em Enfermagem Pediátrica da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Hospital Materno Infantil de Brasília, Brasília-DF, Brasil. Unidade de Doenças Infecto-parasitárias, Hospital Materno Infantil de Brasília, Brasília-DF, Brasil. 2 supervisora do Programa de Residência em Enfermagem Pediátrica da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, Hospital Materno Infantil de Brasília, Brasília-DF, Brasil;docente do curso de graduação em enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil. Dados autores: Marina Dias Pereira. E-mail: marinadyas@hotmail.com Junnia Duque Lopes. E-mail: ju_dlopes@ hotmail.com Recebido em: 02/abril/2015 Aprovado em: 23/dezembro/2015 RESUMO A leishmaniose visceral é uma doença em expansão, sobretudo em regiões urbanas. Sabe-se que em decorrência do desmatamento em áreas de floresta para a agricultura e outros fins incluindo o crescimento das cidades, o vetor da doença hoje adaptado aos grandes centros, favorece a cadeia de transmissão. A população infantil é acometida com mais frequência pela doença em questão, fato que pode ser explicado pela imaturidade imunológica. O tratamento existe e costuma ser eficaz, mas algumas vezes há recidiva da doença, sendo a terapêutica adotada e seu esquema administrado de forma completa, imperativos para a cura. Trata-se de um relato de caso no qual uma criança que foi tratada em um hospital do Sistema Único de Saúde-SUS de Brasília, Distrito Federal, apresentou recidiva de leishmaniose visceral. Foi registrada e analisada a evolução clínica da criança na primeira e segunda internação ocorridas em julho e outubro de 2014, respectivamente. O objetivo foi o de discutir os aspectos clínicos que provavelmente levaram o paciente à recidiva. Palavras-chave: Leishmaniose visceral; Criança; Recidiva. ABSTRACT Visceral leishmaniasis is a disease which is increasing, especially in urban areas. It is known that as a result of deforestation in forest areas for the growth of cities the vector of the disease has been adapting to the great centers so contributing to the chain of transmission. The pediatric population stands out in this scenario to be affected more often by the disease in question, which may be explained by the immunological immaturity. The treatment and there is usually effective, but sometimes there is recurrence of the disease, and the therapeutics adopted and its administered scheme fully, imperative for healing. This is one case report in which a child seen at a public hospital in Brasilia, Federal District, presented recurrence of visceral leishmaniasis. Was investigated the clinical course of children from the first to the second hospital admission occurred in July and October 2014, respectively, in order to discuss the clinical aspects that led the patient to relapse. Keywords: Visceral leishmaniasis; Child; Relapse. Com. Ciências Saúde. 2015; 26(3/4): 145-150 145

Pereira MD, Lopes JD, Neves MGC. INTRODUÇÃO A Leishmaniose Visceral (LV) é uma zoonose que atinge cerca de 65 países, com incidência estimada de 500 mil novos casos e 59 mil óbitos anuais. No Brasil, é causada pelo protozoário Leishmaniain fantum chagasie transmitida por flebotomíneos do gênero Lutzomyia longipalpis e Lutzomyia cruzi, sendo o cão considerado a principal fonte de infecção no meio urbano. É uma doença grave com poucas opções terapêuticas e que, mesmo quando adequadamente tratada, tem letalidade de cerca de 5% 2,5. Sendo uma doença de caráter predominantemente rural, a Leishmaniose Visceral se expande para áreas urbanas. Foi descrita pela primeira vez no Brasil em 1913 e, hoje, sabe-se que está presente em 19 das 27 Unidades Federativas, destacando-se a região Nordeste neste cenário 2. Ocorre com mais frequência em crianças menores de 10 anos e do sexo masculino. Fato este que pode ser explicado pela imaturidade imunológica destes indivíduos, quadros de desnutrição corriqueiros nas regiões endêmicas ou pela maior exposição ao vetor no peridomicílio 2. O quadro clínico varia desde formas assintomáticas até formas clássicas de calazar, com evolução crônica podendo causar óbito se não for diagnosticada e corretamente tratada. O tratamento é na maioria das vezes eficaz, sendo as drogas mais frequentes de escolha no Brasil os Antimoniais e a Anfotericina B 2. Sendo o Hospital Materno Infantil de Brasília um serviço de referência na região para o tratamento de crianças com Leishmaniose Visceral, o contato com os aspectos clínicos da doença é favorecido, permitindo uma reflexão acerca das condutas adotadas para cura desses pacientes contaminados internados no hospital. Este estudo tem por objetivo descrever um caso de recidiva da Leishmaniose Visceral em uma criança e reação ao esquema terapêutico adotado na internação, sua sintomatologia, achados laboratoriais, tratamento e características epidemiológicas. RELATO DE CASO Thor, 6 meses, sexo masculino, peso 7 kg, natural e procedente de Santana-BA, foi atendido no Pronto Socorro de uma Unidade Pediátrica de um Hospital do SUS do DF em 19 de julho de 2014. O pai da criança relatou história de febre aferida (38,5-39ºC) iniciada há 9 dias com 3 picos diários. Fez uso de Amoxicilina por 7 dias, iniciada no primeiro dia de febre, porém durante o tratamento não houve melhora. Referia tosse seca ocasional há 10 dias e vômitos pós-alimentares quando em vigência de febre. Sem perda de peso relatada. À admissão a criança estava em bom estado geral, hipocorado ++/4+. À ausculta cardiopulmonar não apresentava alterações. O abdome era normotenso com baço palpável a 2,5 cm do rebordo costal esquerdo e fígado a 1,5 cm do rebordo costal direito. Em razão do quadro de hepatoesplenomegalia, febre, pancitopenia somado ao fato de ser proveniente de zona endêmica de calazar, foi solicitado teste rápido para a doença e providenciada internação. Com o resultado positivo para o teste de calazar iniciou-se o tratamento com Glucantime na dose de 20 mg/kg/dia. No dia 21/07 a medicação foi alterada para Anfotericina B na dosagem de 4 mg/kg/dia com administração por 5 dias. Durante o tratamento a criança evoluiu sem intercorrências, apresentando melhora clínica e laboratorial, o que culminou em alta hospitalar. Em 04/10/2014, 2 meses e 9 dias após última internação, o paciente retorna ao Pronto Socorro do HMIB, aos 9 meses de idade, peso de 8,5 kg, com queixa de febre aferida de 39ºC, pico único diário, por três dias. Ao exame, criança estava em bom estado geral, hipocorado (+/4+), afebril, sem alterações na ausculta cardiopulmonar, com baço palpável à 7 cm do rebordo costal esquerdo. Foi internado com diagnóstico de recidiva de calazar e prescrito Anfotericina B lipossomal na dose de 5 mg/kg/dia. No período noturno, após início da administração da Anfotericina B lipossomal, apresentou tremores, agitação e choro, cianose de extremidades, febre de 40ºC, com calafrios e taquicardia. A infusão da droga foi suspensa, com indicação de retornar após melhora do quadro de febre. No dia 05/10, paciente evoluiu hipocorado 3+/4+ e apresentou dois episódios de vômito, mantendo apetite preservado. Apresentou novamente febre de 40ºC, após uma hora de infusão da Anfotericina B, com calafrios, irritabilidade, cianose de extremidades e queda na saturação de oxigênio. Foi interrompida novamente a infusão da Anfotericina B. Após dois dias de tratamento de Anfotericina B, criança manteve quadro de reações durante infusão da droga, evoluindo com episódios de vômitos diários e com pouca aceitação da dieta. Foi modificado o esquema terapêutico para Glucantimena dose de 20 mg/kg/dia. Em 07/10 (4º DIH), evoluiu prostrada, sonolenta, ainda apresentando vômitos pós alimentares, hipocorado 3+/4+, com petéquias esparsas em 146 Com. Ciências Saúde. 2015; 26(3/4): 145-150

abdome. Em razão do resultado dos exames laboratoriais do dia 06/10 (Ver tabela 1), foi solicitado concentrado de hemácias 10 ml/kg (85 ml)fenotipada e irradiada. No 8º DIH apresentou pico febril, com redução do baço para 3 cm do rebordo costal esquerdo. No 10º DIH a criança iniciou quadro diarreico, associado à tosse seca, coriza hialina e espirros. No 20º DIH criança apresentou melhora clínica e laboratorial importante. No 23º dia, mantinha-se estável, com fígado no rebordo costal direito e baço palpável a 1,5 cm do rebordo costal esquerdo. Aguardando programação do tratamento de 30 dias de Glucantime. A criança recebeu alta hospitalar em 03 de novembro de 2014 com significativa melhora clínica e laboratorial, com remissão do baço até tornar-se impalpável e seguimento ambulatorial na Unidade de Doenças Infecto-Parasitárias e imunologia. Tabela 1 Evolução laboratotrial de uma criança com LV durante o tratamento Exame Admissão Alta 03/10 06/10 08/10 15/10 22/10 28/10 Hemograma: hemoglobina 7,1 4,7 8,8 9,0 9,4 9,7 Hematócrito 22,6 15 26,3 27,6 28,9 Hemácias 2,33 3,76 4,17 VCM 64,4 HCM 20,2 RDW 17,9 Leucócitos 8.600 6.000 8.500 4.100 7.700 10.700 Neutrófilos % 17% 32% 8% 17% 34% Segmentados % 17% 17% Eosinófilos % 3% 2% 2% Monócitos % 2% 4% 7% Linfócitos % 78% 58% 85% 74% 59% Plaquetas 88.000 27.000 97.000 93.000 202.000 249.000 DISCUSSÃO Historicamente reconhecida como uma endemia rural, a partir da década de 1980 registra- se um paulatino processo de urbanização da Leishmaniose Visceral. O panorama epidemiológico não deixa dúvidas sobre a gravidade da situação e a franca expansão geográfica da LV. De 1980 a 2008, foram notificados mais de 70 mil casos de LV no país, levando mais de 3.800 pessoas à morte. O número médio de casos registrados anualmente cresceu de 1.601 em 1985-1989, para 3.630 no período de 2000-2004, estabilizando-se a partir de então. Na década de 1990, apenas 10% dos casos ocorriam fora da Região Nordeste, mas em 2007, este número chegou a 50% dos casos. Entre os anos de 2006 e 2008, a transmissão autóctone da LV foi registrada em mais de 1.200 municípios em 21 Unidades Federativas 5. A LV é uma doença negligenciada de populações negligenciadas. Pobreza, migração, ocupação urbana não planejada, destruição ambiental, condições precárias de saneamento básico e habitação e desnutrição são alguns dos muitos determinantes de sua ocorrência 5. As transformações no ambiente, provocadas pelo intenso processo migratório, por pressões econômicas ou sociais, a pauperização consequente de distorções na distribuição de renda, o processo de urbanização crescente, o esvaziamento rural e as secas periódicas acarretam Com. Ciências Saúde. 2015; 26(3/4): 145-150 147

Pereira MD, Lopes JD, Neves MGC. a expansão das áreas endêmicas e o aparecimento de novos focos. Este fenômeno leva a uma redução do espaço ecológico da doença, facilitando a ocorrência de epidemias 2. A Organização Mundial da Saúde reconhece a inexistência de meios suficientes para sua eliminação, a despeito das iniciativas no subcontinente indiano, onde a doença é transmitida de pessoa a pessoa por meio da picada do vetor. Neste caso o tratamento humano contribui para diminuir a transmissão, mas no Brasil, onde a doença é zoonótica, o tratamento tem papel eminentemente curativo 5. O Programa Nacional de Controle da LV baseia sua estratégia na detecção e tratamento de casos humanos, controle dos reservatórios domésticos e controle de vetores. Entretanto, após anos de investimento, nota-se que estas medidas foram insuficientes para impedir a disseminação da doença. A introdução da LV nas cidades configura uma realidade epidemiológica diversa daquela previamente conhecida, requerendo uma nova racionalidade para os sistemas de vigilância e de controle 5. A suscetibilidade é universal, atingindo pessoas de todas as idades e sexo. Entretanto, no Brasil a doença atinge principalmente a população infantil, predominantemente nos seis primeiros anos de vida, e essa alta incidência vem se mantendo ao longo dos anos 1. Uma importante característica da LV é que, quanto maior a incidência da doença, maior o risco para as crianças mais jovens, fato já documentado no Brasil, local em que a preferência da doença pela população infantil vem se mantendo ao longo dos anos. É provável que a alta incidência da doença e de óbito no grupo de menores de cinco anos de idade seja devido à maior suscetibilidade à infecção e à depressão da imunidade observada nesta faixa etária, uma vez que a imunidade duradoura se desenvolve com a idade 3. A literatura aponta o sexo masculino como mais suscetível ao adoecimento. Entretanto, a maior prevalência da doença nesse grupo ainda não está totalmente esclarecida, postulando-se a existência de um fator hormonal ligado ao sexo ou à exposição 3. As apresentações clínicas da LV variam desde formas assintomáticas até um quadro clássico caracterizado por febre, anemia, hepatoesplenomegalia, manifestações hemorrágicas, linfadenomegalia, perda de peso, taquicardia, tosse seca e diarreia (estes dois últimos sintomas menos frequentes). A desnutrição ocorre com a progressão da doença, podendo manifestar-se por edema periférico, queda de cabelos e alterações de pele e das unhas 1. O diagnóstico se torna difícil nos casos oligossintomáticos onde o paciente apresenta história de febre associado à tosse persistente, diarreia intermitente por mais de três semanas, adinamia, aumento discreto de fígado ou baço podendo ser confundido com outros processos infecciosos comuns da região. O quadro pode ter uma evolução insidiosa ou manifestar-se de forma mais abrupta com sinais de gravidade que podem levar o paciente ao desfecho letal 4. Por ser uma doença de notificação compulsória e com características clinicas de evolução grave, o diagnóstico deve ser feito de forma precisa e o mais precocemente possível. As rotinas e protocolos de diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos pacientes necessitam ser adotados obrigatoriamente em todas as áreas com transmissão ou em risco de transmissão 2. O diagnóstico pode ser acurado por avaliação epidemiológica, clínica e laboratorial. O diagnostico clinico da leishmaniose visceral deve ser suspeitado quando o paciente apresentar: febre e esplenomegalia associado ou não a hepatomegalia. O diagnóstico laboratorial é feito através da coleta de sangue para exames sorológicos (imunofluorescencia indireta/ifi ou Enzyme Linked Immuno Sorbent Assay/ ELISA), ou através da intradermorreação de Montenegro reativa 2. Na presença de dados clínicos e laboratoriais, um teste sorológico reagente reforça o diagnóstico de LV. Entretanto, um teste reagente na ausência de manifestações clínicas sugestivas de LV não autoriza o início do tratamento 1. O diagnostico e o tratamento dos pacientes devem ser realizados precocemente e sempre que possível a confirmação parasitológica da doença deve preceder o tratamento. Em situações nas quais o diagnóstico sorológico e/ou parasitológico não estiver disponível ou na demora da liberação dos mesmos, o inicio do tratamento não deve ser postergado 2. O tratamento preconizado pela Organização Mundial de Saúde para LV é o antimônio pentavalente, N-metil glucamina (Glucantime). Seu uso como droga de primeira linha se justifica pela comprovada eficácia terapêutica em nosso meio. 148 Com. Ciências Saúde. 2015; 26(3/4): 145-150

Mas nos casos de respostas insatisfatórias aos antimoniais ou quando há sinais de gravidade, a droga de primeira linha a ser adotada é a Anfotericina B, uma vez que os pacientes graves não dispõem de tempo para uso de droga que requer terapêutica prolongada. Entende-se como sinais de gravidade a idade inferior a 6 meses, icterícia, fenômenos hemorrágicos, edema generalizado, sinais de toxemia, desnutrição grave e comorbidade 5. O Glucantime deve ser administrado na dose 20mg/kg/dia em aplicação endovenosa ou intramuscular por no mínimo 20 dias e no máximo 40 dias. Caso não haja resposta clínica no período mínimo de administração da droga, este período deve ser estendido para 30 dias, pois acredita-se que um tempo maior de terapêutica leva a índices mais elevados de cura. Nos casos de recidiva,ou seja recrudescimento dos sintomas em até 12 meses após a cura clínica, o segundo tratamento deve ser instituído com a mesma dose da medicação, entretanto a duração do tratamento deve ser prolongada para no máximo 40 dias 2. Por se tratar de uma droga com alta toxicidade para o sistema cardiovascular, o uso do Glucantime necessita de algumas precauções. Seu principal efeito colateral, a arritmia, possui relação com a dose e o tempo do tratamento com a medicação em questão. Após o 20º dia de tratamento deve ser instituído o eletrocardiograma semanal e ausculta cardíaca diária com objetivo de detectar arritmias. Outros efeitos incluem artralgias, adinamia, anorexia, dor no local da aplicação (IM) e aumento da diurese por perda transitória da capacidade de concentração urinária 2. Outro tratamento também disponível é a Anfotericina B, uma droga mais potente e tóxica. É utilizada na dose de 1mg/kg/dia em dias alternados. Quando se trata de crianças a dose total recomendada é de 15 a 25mg/kg de peso em dias alternados 2. São efeitos colaterais da Anfotericina B: flebite, cefaléia, febre, calafrios, astenia, dores musculares e articulares, vômitos e hipotensão durante a infusão. Com a infusão rápida pode ocorrer hiperpotassemia, determinando alterações cardiovasculares, às vezes com parada cardíaca. Ao longo do tratamento pode haver sobrecarga hídrica e hipopotassemia. Alterações pulmonares, como desconforto respiratório, dispnéia e cianose também são descritas, bem como as complicações renais 2. Novas formulações de Anfotericina b (Anfotericina-B-lipossomal e Anfotericina-B-dispersão coloidal) encontram-se disponíveis comercialmente a um custo elevado, sendo indicadas a pacientes graves de lesihmaniose que desenvolveram insuficiência renal ou toxicidade cardíaca durante o uso do Antimoniato de N-metil glucamina e de outras drogas de escolha não obtendo melhora ou cura clínica. Devendo ser usadas na dose de 1,0 a 1,5 mg/kg/dia durante 21 dias, ou como alternativa a dose de 3,0 mg/kg/dia durante 10 dias 2. Há ainda uma imensa lacuna no conhecimento sobre a LV. Entretanto, mais do que a produção científica em si, é necessário um compromisso social de todos para evitar que a LV se estabeleça definitivamente como mais uma mazela sanitária do cotidiano urbano brasileiro. No Brasil, a recidiva de LV pode ser considerada rara, especialmente devido a inexistência de publicações disponíveis relatando estes casos. A escassez de estudos e pesquisas sobre o assunto em regiões endêmicas levanta suspeitas que fundamentam as hipóteses quanto à não notificação, subnotificação ou mesmo ausênciade registros dos casos nas comunicações científicas. Pode-se observar que o esquema terapêutico escolhido inicialmente não correspondia ao preconizado pelo Ministério da Saúde/SUS, assim como o tratamento escolhido na recidiva da leishmaniose víscera. A escolha do tratamento adequado para cura clínica é principal reflexão que pode ser feita acerca desse relato. Dessa forma, necessário se faz o estabelecimento de um protocolo clinico e terapêutico baseado em evidências cientificas fundamentando melhores condutas e resultados.. São muitos os desafios mas a ênfase deve ser dada à garantia de acesso precoce aos pacientes suspeitos e à necessidade de realização de mais estudos e pesquisas para o desenvolvimento de novas drogas, regimes terapêuticos e protocolos de manejo clínico. Estudos de efetividade das ações de controle devem ser sustentados em bases metodológicas sólidas; é preciso investir em táticas integradas de intervenção estruturadas de acordo com os diferentes cenários de transmissão e preferencialmente focalizando áreas de maior risco. Pesquisas que conduzam a vacinas efetivas para proteger o indivíduo e diminuir a transmissão também devem ser valorizadas, bem como as investigações para solucionar os entraves operacionais na implementação das ações de prevenção. Com. Ciências Saúde. 2015; 26(3/4): 145-150 149

Pereira MD, Lopes JD, Neves MGC. REFERÊNCIAS 1. Barbosa IR; Costa ICC. Aspectos clínicos e epidemiológicos da Leishmaniose Visceral em menores de 15 anos no estado do Rio Grande do Norte, Brasil. Scientia Medica. 2013; 23(1): 5-11 2. Brasil. Ministério da Saúde. Manual de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral. 1º edição; 2014. 3. Caldas, AJM; Lisboa, LLC; Silva, PF; Coutinho, NPS; SILVA, TC. Perfil das crianças com Leishmaniose Visceral que evoluíram para óbito, falha terapêutica e recidiva em um hospital de São Luis, Maranhão. Revista Pesq. Saúde. 2013; 14(2): 91-95 4. Cavalcante, MHL. Leishmaniose Visceral (Calazar): importância do reconhecimento precoce. Rev. Saúde Criança Adolescente. 2011; 3(2): 24-28. 5. Werneck, GL. Expansão geográfica da Leishmaniose Visceral no Brasil. Caderno de Saúde Pública. 2010; 26(4): 644-645. 150 Com. Ciências Saúde. 2015; 26(3/4): 145-150