Aspectos clínicos e psicológicos da encoprese Clinical and psychological aspects of encopresis

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Artigo Original Aspectos clínicos e psicológicos da encoprese Clinical and psychological aspects of encopresis Clóvis Duarte Costa 1, Paulo Fernando D. Inneco 2, Fernanda Barakat 3, Vanessa Nogueira Veloso 3 RESUMO ABSTRACT Objetivo: Encoprese, em analogia a enurese, significa a eliminação fecal completa na sua seqüência fisiológica, porém extemporânea, decorrente de problemas psíquicos. É uma condição ainda pouco estudada em nosso meio, sendo definida como incontinência repetida e involuntária de fezes nas roupas, sem a presença de qualquer causa orgânica. O objetivo do presente estudo é descrever as crianças com encoprese atendidas em um ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica, determinando suas características clínicas, psicológicas e evolução. Métodos: Estudo retrospectivo de pacientes atendidos no Ambulatório de Gastroenterologia Infantil do Conjunto Hospitalar de Sorocaba. Foram definidos os dados mais relevantes no quadro clínico, no diagnóstico e no tratamento da encoprese, coletados dos prontuários. Resultados: De um total de 23 pacientes, 91% eram do sexo masculino e 9% do feminino. A idade ao início do tratamento foi, em geral, entre 6 e 7 anos e o tempo de seguimento dos pacientes foi em média de 8 meses a 4 anos. Três crianças tiveram uma excelente evolução apenas com tratamento clínico. Vinte foram encaminhadas para atendimento psicológico em serviço especializado; dessas, duas ainda estão em tratamento e 18 apresentaram remissão completa dos sintomas. Conclusão: A encoprese não é rara e o pediatra deve estar atento em relação a esse distúrbio de evacuação. As crianças com encoprese devem ser acompanhadas pelo pediatra (mais adequadamente por um gastroenterologista), juntamente com o psiquiatra e, quando necessário, encaminhadas ao psicólogo. Palavras-chave: Encoprese, defecação, criança. Objective: By analogy to enuresis, encopresis means extemporaneous and involuntary passage of faeces in a complete physiologic sequence due to psychological problems. This condition is still poorly studied and can be defined as repeated and involuntary incontinence of faeces on clothes, without the presence of an organic cause. The present study was designed to describe children with encopresis, evaluating clinical, psychological and follow-up aspects. Methods: This is a retrospective study of patients assisted at the Gastroenterology Service of Sorocaba Hospital. The most relevant data was collected in terms of clinical presentation, diagnosis and encopresis treatment. These data were obtained from medical records. Results: In a total of 23 patients, 91% were male and 9% female. The age in the beginning of the treatment was between 6 and 7 years, and follow-up time ranged from 8 months to 4 years. Three children had excellent outcome with clinical treatment over 4 months of follow-up. Twenty were referred to psychological care in a specialized service: two are still in treatment and 18 had complete remission of the symptoms. Conclusion: Encopresis is not rare and the pediatrician should pay attention to this defecation disorder. Children with encopresis should be treated by the pediatrician, (preferentially by a gastroenterologist), together with a psychiatric and psychological support. Key-words: Encopresis, defecation, child. 1 Pediatra gastroenterologista e professor titular da Disciplina de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FCMS-PUC/SP) 2 Professor mestre assistente da Disciplina de Psiquiatria da FCMS-PUC/SP 3 Acadêmicas de Medicina da FCMS-PUC/SP Endereço para correspondência: Prof. Dr. Clóvis Duarte Costa Rua José Miguel Saker Filho, 111/132 CEP 18010-090 Sorocaba/SP E-mail: cdcosta@directnet.com.br Recebido em: 13/10/2004 Aprovado em: 11/1/2005 35

Aspectos clínicos e psicológicos da encoprese Introdução A encoprese é um distúrbio da evacuação caracterizado pela eliminação repetida e involuntária das fezes, sem a presença de qualquer causa orgânica que explique o sintoma. Trata-se de uma defecação descontrolada de origem emocional, que acontece em horas e lugares impróprios, ocorre pelo menos uma vez por semana durante 12 semanas ou mais e a idade da criança deve ser acima de 4 anos. É classificada como primária ou secundária, de acordo com a ausência ou presença temporária de controle esfincteriano prévio. É mais freqüente em meninos, na proporção de 3-4:1 (1-9). Recentemente, o critério Roma II define encoprese como uma manifestação decorrente de um distúrbio emocional, geralmente na idade escolar. A inclusão de uma criança no diagnóstico de encoprese deve preencher os seguintes requisitos: evacuações em local e momento inadequados; ausência de doença estrutural e inflamatória e ausência de sinais de retenção fecal. Nesse consenso Roma II, a encoprese é denominada de soiling fecal funcional não retentivo e está incluída no grupo G4d (5). No que concerne a aspectos psicodinâmicos, observa-se a presença ou não de uma relação mãe-filho patológica, método de treinamento esfincteriano coercitivo ou permissivo, treinamento precoce (antes dos 18 meses de idade), além da qualidade psicodinâmica familiar (1,7,10). Em geral, os médicos que atendem pacientes com encoprese salientam a necessidade de tranqüilizar os pais. Inicia-se o tratamento do complexo criança-família com a desmistificação da problemática, explicação detalhada do mecanismo da encoprese e a apresentação dos objetivos terapêuticos, que incluem a regularização do hábito, a diminuição das tensões psicológicas e o aumento dos cuidados que visam a atingir as metas já descritas. É imprescindível uma real aceitação do plano terapêutico pelo complexo criança-família para sua efetiva participação nele (11). A psicoterapia é de fundamental importância no tratamento da encoprese. Se a criança coopera, parece que as medidas psicológicas simples são suficientes, desde que haja aceitação da família. A ação terapêutica mostra-se benéfica quando os pais tornam-se capazes de relacionar o sintoma com o funcionamento da família, em vez de associá-los exclusivamente à criança (10,12,13). Nesse contexto, o objetivo do presente estudo foi descrever os pacientes com encoprese, determinando suas características clínicas, psicológicas e a evolução dos sintomas, visando conhecer e intervir positivamente por meio de um atendimento multidisciplinar. A proposta visa também elucidar o conhecimento de profissionais de saúde, para que eles possam conduzir ou encaminhar seus pacientes adequadamente, evitando tratamentos ineficientes e desgastantes. Métodos Foi realizado um estudo observacional, retrospectivo e descritivo, no qual foram revisados prontuários e compilados dados relacionados à encoprese dos pacientes que haviam passado em consulta no Ambulatório de Gastroenterologia Pediátrica do Conjunto Hospitalar de Sorocaba, da Disciplina de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba CCMB-PUC/SP, no período de junho de 1998 a maio de 2003. A população estudada foi constituída por 23 crianças de 6 anos ou mais, portadoras de encoprese, obedecendo aos seguintes critérios de inclusão: quadro de evacuações em local e momento inapropriados; sem doença estrutural e inflamatória, e sem constipação intestinal. Na primeira consulta ou após, detectada a encoprese, já era possível caracterizar os casos psicológicos mais graves. Isso poderia ocorrer na primeira consulta ou depois de alguns meses, quando o tratamento de apoio do pediatra gastroenterologista e do psiquiatra não eram suficientes para atenuar o problema. Esses casos eram, então, encaminhados ao psicólogo. Por se tratar de um estudo de levantamento de prontuários, o Comitê de Ética em Pesquisa da instituição considerou desnecessária a assinatura do consentimento escrito por parte dos pais ou responsáveis. Utilizaram-se, como critério para avaliação de encoprese, as informações contidas nos prontuários, ou seja, idade dos pacientes, sexo, local onde ocorria a encoprese, freqüência, aproveitamento escolar, perfil do paciente, idade no início do tratamento, e tempo de seguimento dos pacientes. A análise estatística dos dados foi realizada utilizando-se os testes qui-quadrado, Fisher e Mann-Whitney. Resultados Foram estudados 23 casos de crianças atendidas com o diagnóstico de encoprese, sendo 91% do sexo masculino e 9% do feminino. Geralmente, as evacuações ocorriam em casa, porém algumas crianças evacuavam fora do am- 36

Clóvis Duarte Costa et al. biente doméstico (Gráfico 1). Em relação à freqüência, observou-se que a maioria vivenciava de 3 a 4 episódios ao dia (Gráfico 2). Quanto à personalidade das crianças, verificou-se que a maioria apresentava alterações de comportamento, que se manifestavam no aproveitamento escolar e no relacionamento social (Gráficos 3 e 4). A idade no início do tratamento foi, em geral, entre 6 e 7 anos (Gráfico 5) e o tempo de seguimento dos pacientes encaminhados ao psicólogo foi em média de 8 meses a 4 anos. Em três crianças (13%) houve resolução da encoprese apenas com intervenções de apoio psicológico simples, no próprio ambulatório, em 4 meses. Das 23 crianças, 20 (87%) foram encaminhadas para atendimento psicológico em serviço especializado, observando-se que 18 pacientes evoluíram bem, com remissão total dos sintomas, e os dois pacientes restantes não obtiveram remissão completa até o final do levantamento dos dados. Discussão Encoprese, em analogia à enurese, é o ato completo da defecação, em sua seqüência fisiológica, porém em local e/ou momento inapropriado, sendo, em geral, secundária a distúrbios psicológicos (14). Na literatura, soiling e encoprese são apresentados como sinônimos com freqüência, diferentemente do conceito preconizado em nosso meio, em que soiling é chamado de escape fecal e está associado à constipação intestinal. No entanto, o termo encoprese vem sendo, de forma geral, utilizado indistintamente para todo tipo de perda fecal, tanto para perda de origem psicogênica, como para a secundária à constipação intestinal crônica, acarretando muita confusão (15). É importante distinguir os dois tipos de perda fecal, visto que a encoprese é decorrente de um distúrbio de origem psicogênica, com fezes pastosas, sem constipação intestinal. Por outro lado, o escape fecal (soiling) ocorre pela constipação. Essas duas situações merecem tratamentos distintos: na encoprese, indica-se encaminhamento ao psicólogo/psiquiatra; enquanto que, no escape fecal, o apoio psicológico pode ser feito pelo próprio pediatra, se necessário, e o tratamento será essencialmente clínico (16). Ao estabelecer o consenso dos distúrbios gastrintestinais funcionais na infância baseados na experiência clínica, o critério Roma II denominou a encoprese de soiling fecal funcional não retentivo, incluindo essa condição no grupo distúrbios da defecação como G4d. Este consenso determina como critério de inclusão no diagnóstico de encoprese: evacuações em local e momento inadequados; ausência de doença estrutural e inflamatória e ausência de sinais de retenção fecal (5). Não há até o momento dados sobre a real prevalência desse distúrbio. Sabe-se, entretanto, que a encoprese é mais comum em meninos, numa proporção em torno de 3-4:1 (6,11,16,17). Em nosso estudo encontrou-se uma prevalência de 91% de crianças do sexo masculino e 9% do feminino. São várias as teorias que procuram explicar o desenvolvimento de doenças psicossociais, tais como a encoprese. Uma das teorias mais aceita é a baseada na relação mãe-filho nos 6 5 1 6 6 5 1 9% 1 2-3 3-4 4-5 Gráfico 2 - Freqüência diária (n = 23) 22% 22% 26% Rua Casa e Escola Escola Casa Gráfico 1 - Local dos episódios de encoprese (n = 23) 48% Regular Bom Ruim Gráfico 3 - Aproveitamento escolar (n = 23) 43% 37

Aspectos clínicos e psicológicos da encoprese primeiros anos de vida. Segundo outra teoria, a encoprese pode estar ligada a uma situação traumática ocorrida na fase anal do desenvolvimento emocional (18,19). A relação mãe-filho caracteriza-se por uma ambivalência materna e uma oscilação entre uma intrusão autoritária na vida da criança e um comportamento de rejeição e exclusão. O sintoma parece ser utilizado como manobra hostil para chamar a atenção, dentro de uma relação hostilidade-dependência, no contexto de ambiente familiar específico, isto é, a ausência do pai (10,20). De modo geral, as mães são amigas, emotivas, superprotetoras, mascarando a ansiedade por trás de uma conduta bastante rígida em matéria de educação esfincteriana ou por trás de uma preocupação excessiva ao nível das evacuações de seu filho (supervalorização das fezes). São freqüentes as dissociações familiares. As mudanças na organização familiar assinalam comumente o início da encoprese, tais como: início do trabalho da mãe fora de casa, ingresso na escola ou nascimento de um irmão (4,10,21). As crianças com encoprese tendem a manifestar reações ansiosas, falta-lhes auto-afirmação e, ainda, demonstram uma fraca tolerância às frustrações. Servem-se de sua agressividade de modo imaturo e autocontrole excessivo, 6 5 1 13% 17% 44% Irritadiço Teimoso Sem alterações Agitado Ansioso Gráfico 4 - Perfil das crianças com encoprese (n = 23) 5 4,5 4 3,5 3 2,5 2 1,5 1 0 13% 13% < 6 6,1-7 7,1-8 8,1-9 9,1-10 > 10 Idade (anos) Gráfico 5 - Idade ao início do tratamento (n = 23) enquanto alguns dão livre curso à própria agressividade. São mais dependentes da mãe. Os meninos têm menos contato e menos prazer mútuo nas atividades comuns com os pais ou amigos. O exame psiquiátrico mostra-os mais ansiosos e indecisos, menos abertos e menos preparados a fazer contatos. Os testes de personalidade revelam passividade, agressividade inibida, falta de maturidade, contato alterado com a mãe, aumento da sensibilidade às exigências do ambiente e sentimento de fracasso, que indicam uma deficiência da auto-afirmação (4,10). Corroborando esses dados, em nosso estudo, 44 % das crianças eram ansiosas, 17% agitadas, 13% irritadas e/ou teimosas e 13% não apresentaram alterações de personalidade. O sintoma pode também trazer um benefício secundário para a criança, já que a mãe torna-se subitamente mais indulgente por se sentir culpada pelo fracasso de uma educação muito exigente. A relação da criança com suas fezes deve ser sempre cuidadosamente estudada; às vezes, a criança parece indiferente ao seu sintoma, somente o odor que incomoda as pessoas à sua volta revela sua existência; freqüentemente desenvolve condutas de dissimulação, em que as vestes são escondidas (colocadas em uma gaveta ou debaixo de um armário). O mais usual é que a criança permaneça com as vestes sujas. Muito raramente procura dissimular a encoprese lavando sua roupa; esse comportamento é resultado de um sentimento de vergonha e é oculto das pessoas ao redor, com exceção da mãe (10,19). A criança pode precocemente experimentar comportamento hostil por parte de um ou mais membros da família. Ainda que a criança se relacione com outras pessoas fora de casa, há sempre a ridicularização por parte dos colegas e a preocupação por parte dos professores. Muitas das nossas crianças apresentavam dificuldade de socialização e isolamento na escola. A criança não percebe o efeito que a perturbação causa nas outras pessoas, entretanto, passa a sentir-se indesejada e a ter baixa auto-estima. Como os pais e as crianças podem não mencionar espontaneamente o problema durante a consulta, o médico deve perguntar diretamente a esse respeito. Um dos elementos mais importantes da investigação é uma história completa, que documente com detalhes a freqüência, natureza e circunstância das evacuações. Essa história deve ser obtida tanto dos pais como da criança e a avaliação psicológica é essencial, no sentido de fornecer um quadro completo do distúrbio. As crianças maiores devem ser inquiridas diretamente sobre a encoprese, visto que muitas vezes essa informação não é expressa por vergonha. As recidi- 38

Clóvis Duarte Costa et al. vas após o tratamento são comuns, mas são relacionadas a estresses psicossociais novos ou recorrentes. Os casos refratários podem conter questões psicológicas subjacentes complexas que justificam maior investigação. No presente estudo não houve associação significativa com a enurese, embora a literatura mostre ser essa uma associação freqüente (8,13,9,22). De acordo com a literatura, o tratamento pode durar de 6 meses a 3 anos, sendo necessário um acompanhamento sério, contínuo e perseverante, e, mesmo assim, aproximadamente não melhora. Grande parte dos pacientes pode ter resolução espontânea da encoprese, após um período de algumas semanas ou meses. Aquelas que persistem por vários anos são sempre formas graves pela sua freqüência, dimensão psicopatológica nitidamente perceptível e patologia familiar, tais como carência socioeducativa e ausência do pai (23). Em nosso estudo, a abordagem do paciente até o diagnóstico definitivo de encoprese foi realizada pelo pediatra gastroenterologista e pelo psiquiatra. Em relação ao tratamento, três crianças, por se tratarem de casos mais simples, tiveram resolução da encoprese em torno de 4 meses apenas com a orientação desses dois profissionais e intervenções de apoio psicológico básico. As 20 restantes foram encaminhadas ao psicólogo, por serem casos mais complexos. Destas, 18 crianças já apresentaram remissão total do sintoma e duas estão em fase final do tratamento. Nas 20 crianças com encoprese que necessitaram de tratamento especializado, o instrumento terapêutico foi a psicoterapia, mais especificamente ludoterapia. O prognóstico da encoprese é mais favorável na ausência de distúrbios da maturação sensoriomotora, quando o meio familiar permanece homogêneo e a relação com o pai é vista como imagem sólida e tranqüilizante, sendo a criança capaz de superar a díade mãe-filho primitiva, para desembocar na relação triangular edipiana (10,21). Ressalta-se que o pediatra geral pode ter atuação nos casos de encoprese, a saber: atendendo a criança como um todo, é o profissional que acompanha essas manifestações da construção psíquica do paciente e vê, refletida nas queixas dos pais, como as coisas estão se organizando. Assim, cabe a ele um papel profilático fundamental, pois tem condições de detectar os indícios de uma organização psíquica favorável ou não. Portanto, é necessário que ouça advertidamente as queixas dos pais e trabalhe de maneira interdisciplinar, refletindo quando é o momento de encaminhamento para um profissional especializado (24). Para finalizar, o presente estudo contribuiu para uma ampla visão diagnóstica e terapêutica, decorrente de uma investigação desenvolvida a partir de instrumentos pediátricos e psiquiátricos, integrados e complementados. A encoprese não é rara e o pediatra deve estar atento em relação a esse distúrbio de evacuação. O ideal é que as crianças portadoras de encoprese sejam acompanhadas pelo pediatra (mais adequadamente pelo pediatra gastroenterologista), com supervisão do psiquiatra e, quando necessário, encaminhadas ao psicólogo. Agradecimento À Profa. Dra. Dorina Barbieri, pela revisão e sugestões. Referências bibliográficas 1. Ajuriaguerra J, Marcelli D. Manual de psicopatologia infantil. 2 nd. ed. Porto Alegre: Artes Médicas; 1991. p. 126-36. 2. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders (DSM-IV). 4 th ed. Washington: APA; 1994. 3. Baucke VL. Encopresis and soiling. Pediatr Clin North Am 1996;43:279-99. 4. Bellman M. Studies on encopresis. 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