AMOR E EDUCAÇÃO NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO: O BEM E O MAL MORAL NA PAIXÃO DO AMOR E A IMPORTÂNCIA DO PROCESSO EDUCATIVO

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Transcrição:

AMOR E EDUCAÇÃO NA SUMA TEOLÓGICA DE TOMÁS DE AQUINO: O BEM E O MAL MORAL NA PAIXÃO DO AMOR E A IMPORTÂNCIA DO PROCESSO EDUCATIVO SANTIN, Rafael H. (PPE/UEM) Resumo Neste texto apresentamos reflexões acerca da relação entre amor e educação em algumas Questões elaboradas por Tomás de Aquino. A intenção é verificar de que modo a educação, na primeira seção da segunda parte da Suma Teológica tomasiana, está relacionada à moral na paixão do amor, isto é, como o processo educativo interfere na relação entre amor e moral. Com efeito, as paixões na concepção de mestre Tomás são movimentos do apetite que estão na base da ação humana. As paixões são, então, como que os princípios do agir do homem. Contudo, as paixões necessitam estar relacionadas à razão para serem consideradas moralmente boas ou moralmente más, pois em si mesmas não podem ser consideradas boas ou más. Para o mestre, o fato de amarmos ou odiarmos não faz de nós seres bons ou maus, mas amarmos ou adiarmos certas coisas, em determinado tempo e espaço, pode inclinar-nos ao vício ou à virtude. Nesse sentido, conforme o teólogo, as paixões estão amalgamadas com a razão e é por isso que podem ser classificadas em boas e más. Importa-nos observar de que modo este problema da relação entre paixão e razão influencia a educação. Palavras chave: História da Educação Medieval. Tomás de Aquino. Suma Teológica. Amor. INTRODUÇÃO Nosso objetivo neste texto é apresentar algumas reflexões sobre a educação no pensamento de Tomás de Aquino (1224/25-1275), teólogo dominicano que é considerado por alguns historiadores como o maior intelectual medieval (NUNES, 1979; LIBERA, 1990; OLIVEIRA, 2005). Para abordar este problema, estudamos as Questões tomasianas que tratam do amor enquanto paixão da alma. É importante ressaltar, antes mesmo de iniciar o estudo, que a discussão que fazemos deve ser entendida como parte de debates mais amplos, desenvolvidos no âmbito do Grupo de Transformação Social e Educação na Antiguidade e Medievalidade (GTSEAM), coordenado pela professora Dr. Terezinha Oliveira, do qual fazemos parte. Nesse sentido, as posturas que adotamos refletem nossa vinculação a este grupo de pesquisa.

O amor é considerado por Tomás de Aquino a primeira dentre as paixões da alma. As paixões são, segundo ele, movimentos do apetite sensitivo que possibilitam o agir humano. Nesse sentido, o amor constitui-se como o princípio da ação do homem. Procuramos analisar a perspectiva de mestre Tomás sobre a educação, partindo de sua análise sobre a relação entre amor e o bem e mal moral nas paixões da alma. Para isso, estudamos, principalmente, duas Questões da primeira seção da segunda parte da Suma Teológica, quais sejam, O bem e mal nas paixões da alma (q. 24) e A causa do amor (q. 27). Além disso, recorremos, conforme a necessidade e a oportunidade, a outras Questões relacionadas às paixões e à educação, bem como a textos de estudiosos da obra de Tomás de Aquino. O CONTEXTO DO SÉCULO XIII Este período, segundo Guizot (2005), foi marcado por uma série de mudanças decorrentes principalmente da consolidação do sistema feudal e dos renascimentos urbano e comercial. Estas transformações desenvolveram-se acompanhadas de outras, que colocavam em pauta novos interesses e valores, como o nascimento das Universidades, o surgimento das Ordens Mendicantes, principalmente a franciscana e a dominicana (OLIVEIRA, 2008). O historiador do século XIX analisa tais transformações e destaca o papel do comércio e das corporações de ofício, dos burgueses e dos mercadores que principiavam a expandir sua influência na cristandade, o que provocou o crescimento dos aglomerados urbanos: No momento em que a feudalidade já estava bem estabelecida, quando cada homem tomou seu lugar, fixando-se na terra, quando a vida errante cessou, ao final de um certo tempo, as cidades recomeçaram a adquirir alguma importância, desenvolvendo-se nelas, novamente, alguma atividade. Como vocês sabem, dá-se com a atividade humana algo semelhante ao que ocorre com a fecundidade da terra: cessada a desordem, tudo volta a germinar e a florir. Basta o menor clarão de ordem e paz e o homem retoma a esperança, e com a esperança o trabalho. É isso que ocorreu nas cidades; desde que o regime feudal se assentara um pouco, surgiram, entre os possuidores de feudos, novas necessidade, um certo gosto pelo progresso, pelo melhoramento. Para satisfazê-las, um pouco de comércio e de indústria reapareceu nas cidades localizadas nos domínios desses senhores; a riqueza, a população, nelas reaparecem (GUIZOT, 2005, p. 34-35).

Como podemos observar no excerto acima, Guizot considera que as cidades e o comércio renasceram em função dos novos interesses dos homens daquela época. Com efeito, este refinamento dos costumes averiguado por este autor impulsionaram o crescimento das cidades, de modo que no século XIII elas figuravam como espaços essenciais para o amadurecimento da civilização 1 ocidental 2. Além disso, surgiu também nessa época uma instituição nova, cujo ofício era o trabalho intelectual e que nasceu primeiramente da reunião de escolas citadinas e tornou-se corporação de ofício do século XIII, a Universidade. Le Goff (1995) destaca a importância dessa nova instituição, principalmente o papel exercido pela Universidade de Paris na constituição da cristandade e no processo de consolidação do pensamento escolástico. Com efeito, Paris era a cidade em que os estudos filosóficos e teológicos desenvolviam-se mais e para onde afluíam estudantes de várias partes da Europa 3 para estudar com grandes mestres, como Tomás de Aquino e Boaventura de Bagnoregio (OLIVEIRA, 2006). Todas essas novidades determinaram uma nova forma de os homens viverem em sociedade. Na Baixa Idade Média, aconteceu, segundo Duby (1994), a ressurgência do esquema da trifuncionalidade, que era a forma como os medievais, a partir do século XI, melhor compreendiam a configuração social. Em As três ordens ou o imaginário do Feudalismo, Duby (1994) estudou essa ideia da trifuncionalidade, que surgiu no século XI com os escritos de Adalberão de Laon e de Gerardo de Cambrai. O esquema trifuncional, segundo esse autor, compreende uma maneira de conceber a organização da sociedade feudal, de modo a justificar o sistema de produção baseado nas relações entre os senhores e servos. Esse esquema é assim chamado porque é sistematizado sobre o conceito de função social, ou seja, para aqueles que pensam a trifuncionalidade, a sociedade é formada por três grupos que se apóiam mutuamente, desempenhado cada qual sua função específica: orar, combater e trabalhar. Os que oram compõem o clero, a Igreja, incumbidos de zelar 1 François Guizot (1787-1874), na obra Historia da Civilisação na Europa (1907), expõe sua concepção de civilização, a qual emprestamos para a realização de nossa pesquisa. Este historiador afirmou que a sociedade é formada por dois fatos principais, o homem e as relações sociais. Estes dois aspectos se relacionam e determinam-se mutuamente, de modo que somente o desenvolvimento de seu conjunto torna possível a constituição da civilização. Isto quer dizer que um determinado povo se torna civilizado quando os homens e as relações entre eles se aprimoram mutuamente. 2 A discussão sobre a análise de Guizot acerca da sociedade medieval é feita pela professora Terezinha Oliveira em sua tese de Doutorado, intitulada Guizot e a Idade Média: civilização e lutas políticas. 3 Para se ter uma idéia, de acordo com Verger (2006, p. 577), na Universidade de Paris havia 4 nações, destinadas a abrigar mestres e estudantes conforme sua proveniência geográfica : França, Picardia, Normandia, Inglaterra.

pelos espíritos de toda a cristandade por meio da oração; os que combatem são os nobres comandados pelo príncipe, aos quais cabe proteger pelas armas toda a sociedade; e os que trabalham são os servos, que devem garantir o sustento de todos pelo trabalho manual. Entre os séculos XII e XIII, esse esquema é consolidado pela intervenção de monges, clérigos e intelectuais que se formavam nas escolas e nas novas instituições, as Universidades, na medida em que retomavam esta concepção para entender a formação da sociedade como um todo ordenado: Foram, pois, incitados a voltar os olhos mais deliberadamente para o social. Assim fizeram; e foi então que se abriu, na história da escolástica, esse hiato entre a abstração lógica do primeiro século XII e a abstração metafísica do século XIII: o tempo de Pedro, chantre de Notre-Dame de Paris, rodeado de um grupo de colegas, Roberto de Courçon e Estêvão Langton, e de alunos, Foulque de Neuily e Tiago de Vitry. Animados do desejo de ver mais claro o desejo que levava, no seu tempo, a aperfeiçoar os instrumentos de óptica esses sábios aplicavam os mesmos métodos, prosseguiam o mesmo fim que os seus antecessores. As suas investigações prolongavam aquelas cujos resultados Honorius Augustodunensis divulgavam e que Hugo de Saint-Victor fizera progredir. Esforçavam-se por afirmar o mesmo projecto de organização social, de forma a torná-la mais útil e a servir cada vez melhor a acção pastoral. Assim se edificaram, paralelamente, duas construções ideológicas: uma, imagem cavaleiresca da sociedade, enquadrada na corte de Henrique Plantageneta pelo esquema trifuncional; a outra, uma imagem clerical da sociedade, fundada no exame lúcido do concreto (DUBY, 1994, p. 336-337. Grifo nosso). Como podemos observar no excerto acima, os intelectuais do século XIII foram incitados a investigar sobre o concreto, sobre o que acontecia na vida terrestre. Assim, com a intervenção desses estudiosos da sociedade, a figura trifuncional desenvolveu-se e constituiu um corpo complexo de explicações sobre as relações sociais. Nesse sentido, consideramos relevante a análise tomasiana do amor, pois incide sobre o ato da vontade humana fundamental para as interrelações entre os homens e destes com o mundo. Com efeito, demonstra Duby (1994) que os intelectuais do século XIII tendiam a voltar-se para a vida cotidiana dos indivíduos e Tomás de Aquino, a nosso ver, não foge à regra. Em outra obra, O tempo das catedrais: a arte e a sociedade (980-1420), Duby (1978) analisa as aproximações entre a sociedade e a arte que produziu no contexto da Baixa Idade Média. Assim, na segunda parte, em que estuda a arte das catedrais,

também demonstra que os intelectuais do século XIII tiveram um papel capital no desenvolvimento da civilização daquela época. No âmbito artístico, as obras que mais se destacam, segundo o autor, são as catedrais góticas das cidades. Sua arquitetura, afirma, reflete as concepções formuladas no seio da Universidade pelos teólogos, que se esforçavam por convencer racionalmente a cristandade da importância da Igreja e dos sacramentos na constituição da fé católica que conduz os homens que a seguem à salvação. O valor da catedral não era apenas estético. Naquela época, segundo Duby (1978, p. 115-116), essa estrutura funcionava também como centro de discussões e resoluções de problemas civis, onde se reuniam o clero e os burgueses para resolverem suas contendas. Era símbolo da aglomeração urbana, de sua organização política. Nas catedrais também havia escolas: Porque, na escola episcopal, o ensino ganha um novo estilo. Descontrai-se, abre-se para o universo presente. As abadias viraram as costas ao mundo, separavam-se dele, protegiam-se dele pela clausura, que o monge não devia transpor. No mosteiro, a educação não se fazia em grupo, antes por partes: cada jovem ligava-se a um veterano que guiava as suas leituras e as suas meditações, o iniciava, o conduzia de degrau em degrau pelas vias da contemplação. Inversamente, a escola catedral é uma aula: um grupo de discípulos reúne-se aos pés dum mestre que para todos lê um livro, o comenta. Estes estudantes não vivem fechados. Misturavam-se com o século. São vistos nas ruas da cidade. Claro que todos, ou quase todos, pertencem à Igreja: são clérigos, tonsurados, submetidos à jurisdição do bispo. Aprender é um acto religioso. Mas a missão para que o ensino os prepara é activa; é secular; é pastoral: é um ministério da palavra. São chamados a espalhar entre os laicos o conhecimento de Deus (DUBY, 1978, p. 117. Grifo nosso). Nessa obra, como podemos observar no excerto acima, Duby afirma que os intelectuais do século XIII se voltavam para os problemas cotidianos da sociedade. Contudo, insere algo diferente na discussão: esse era um fenômeno que se manifesta nas escolas das catedrais, o que o caracterizava como tipicamente urbano. Assim, acreditamos que o mestre dominicano Tomás de Aquino, tendo desenvolvido seus estudos num ambiente urbano (principalmente em Paris), foi influenciado por essa tendência. Acreditamos que essa é uma das razões que o conduziu a escrever sobre as paixões da alma e mais particularmente sobre o amor 4. 4 Esse envolvimento do teólogo/filósofo com o desenvolvimento da cidade medieval é explicitado por De Boni (2003) em Entre a urbe e o orbe o De Regno no contexto do pensamento político de Tomás de

Com a leitura desse texto de Duby (1978) podemos perceber, também, a relevância do progresso intelectual observado no século XIII, relacionado principalmente pelo nascimento das Universidades. Segundo ele, a sociedade nesse período torna-se mais complexa e, por isso, [...] reclama mais homens capazes de compreender e de exprimir-se (p. 117). Daí a importância da obra de Tomás de Aquino, que aborda temas pertinentes à coletividade dos homens, como as paixões da alma. Aliás, os sentimentos humanos pareciam um problema bastante presente no século XIII. De acordo com Duby (1978; 1994), as transformações ocorridas nessa época faziam da cidade um locus de pecado, mas também de virtude, pois nela havia elementos que demandavam o controle dos impulsos passionais pela razão para manter o necessário equilíbrio no agir. Nesse sentido, tornava-se preciso refletir sobre tais impulsos que, sem a devida regulação, conduzem ao pecado. Desse modo, acreditamos que o estudo de Tomás de Aquino sobre as paixões da alma constituiu-se numa espécie de manual de filosofia prática destinado à formação dos citadinos de sua época, que seguia a tônica da obra na qual está inserido, essencialmente teológica 5. O BEM E O MAL NAS PAIXÕES DA ALMA A Questão 24, intitulada O bem e mal nas paixões da alma, constitui-se numa análise moral a respeito das paixões da alma. Como o próprio título sugere, mestre Tomás reflete se as paixões da alma podem ser moralmente boas ou más para o homem. A ideia essencial desta Questão é a de que as paixões, na perspectiva de Tomás de Aquino, estão relacionadas com a razão, com o conhecimento. Na resposta à primeira objeção do artigo 3 (A paixão aumenta ou diminui a bondade do ato?), o teólogo explicita de que modo as paixões estão relacionadas com a razão: Aquino. Nesse artigo, o autor esclarece que esse pensador segue Aristóteles e afirma ser a cidade a comunidade perfeita, que oportuniza ao homem o bem viver. Contudo, vai além de Aristóteles ao relacionar o bem viver na Terra à felicidade eterna no paraíso, que só pode ser alcançada após a morte. 5 Segundo De Boni (2003), a Suma Teológica deve ser considerada como um empreendimento teórico voltado para a reflexão teológica. Assim, se Tomás de Aquino aborda a questão da felicidade terrena é porque este problema implica o fim último do ser humano, que é Deus. O bem viver na mortalidade está submetido ao bem viver na imortalidade junto ao Criador. Segundo esse mesmo autor, a felicidade do homem na existência terrena na concepção do teólogo/filósofo também depende da percepção de que o amor é uma virtude natural do homem que tende levá-lo à comunhão com seus iguais e com Deus. Daí a importância histórica e social do texto tomasiano para os homens do século XIII.

QUANTO AO 1º, portanto, deve-se dizer que as paixões da alma podem se referir ao juízo da razão de duas maneiras. Uma, de modo antecedente. E nesse caso, quando ofuscam o juízo da razão, do qual depende a bondade do ato moral, diminuem a bondade do ato; pois é mais louvável praticar uma obra de caridade pelo juízo da razão do que apenas pela paixão da misericórdia. A outra maneira, conseqüentemente. E isso de dois modos. Primeiramente, a modo de redundância, pois quando a parte superior da alma se move intensamente para algo, a parte inferior segue-lhe também o movimento. Desse modo a paixão que existe conseqüentemente no apetite sensitivo é sinal da intensidade da vontade e indica maior bondade moral. Segundo, por modo de eleição quando o homem pelo juízo da razão elege ser afetado por uma paixão para agir mais prontamente com a cooperação do apetite sensitivo. Assim, a paixão da alma aumenta a bondade da ação (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 24, a. 3, ad. 1 m.). Como podemos observar na passagem acima, Tomás de Aquino distingue dois modos pelos quais as paixões se referem à razão. De modo antecedente, a paixão prejudica o homem e, de modo conseqüente, contribui para a bondade de sua ação, pois segue a orientação da razão e não se sobrepõe a ela. É particularmente interessante para nós a afirmação de que a bondade e a maldade da ação dependem da razão. O homem que submete as paixões ao governo da razão tende para o bem e o homem que coloca as paixões antes da razão tende para o mal. Não podemos deixar de destacar que, para mestre Tomás, os homens conhecem as coisas sob a razão de bem, ou seja, nem tudo que o homem considera como um bem é um bem digno de ser perseguido, pois pode acontecer de considerarmos algo mal como sendo um bem. Na discussão que o autor faz a respeito do amor essa questão aparece de maneira bastante clara: [...] o mal nunca é amado senão sob a razão de bem (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 27, a. 1, ad. 1 m.). Nesse sentido, o homem é bom quando orienta as paixões segundo a razão em direção de um bem verdadeiro: QUANTO AO 2º, deve-se dizer que as paixões que tendem para o bem são boas se esse bem for verdadeiro, e igualmente as que se afastam de um mal verdadeiro. Ao contrário, as paixões que consistem em afastar-se do bem ou tender para o mal são más (TOMÁS DE AQUINO, ST, q. 24, a. 4, ad. 2 m.). Assim, é preciso que o homem desenvolva a reflexão para determinar o que é um bem verdadeiro. A educação, nesta perspectiva, impõe-se como um processo fundamental pelo qual o homem desenvolve suas potencialidades humanas. Em Sobre o

ensino (De Magistro), Tomás de Aquino discorre sobre a educação e seus benefícios para o homem: Ora, o conhecimento preexiste no educando como potência não puramente passiva, mas ativa, senão o homem não poderia adquirir conhecimentos por si mesmo. E assim como há duas formas de cura: a que ocorre só pela ação da natureza e a que ocorre pela ação da natureza ajudada pelos remédios, também há duas formas de adquirir conhecimento: de um modo, quando a razão por si mesma atinge o conhecimento que não possuía, o que se chama descoberta; e, de outro, quando recebe ajuda de fora, e este modo se chama ensino (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 31-32). Como podemos observar no excerto acima, Tomás de Aquino afirma que o conhecimento está no homem sob a forma de potência, isto é, o homem vem ao mundo com a potencialidade para conhecer. O movimento para o ato de conhecer é realizado de duas formas: pela descoberta e pelo ensino. O teólogo, mais a frente, explica como o professor ensina o seu aluno e o ajuda a chegar ao saber: E é por isso que se diz que o professor ensina o aluno: porque este processo da razão que a razão natural faz em si é proposto de fora pelo professor por meio de sinais, e assim a razão do aluno por meio do que lhe é proposto como certos instrumentos de ajuda atinge o conhecimento do que ignorava (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 32). O professor infunde conhecimento no aluno não no sentido numérico de que o mesmo conhecimento que está no mestre passe para o aluno, mas porque neste, pelo ensino, se produz passando de potência para ato um conhecimento semelhante ao que há no mestre (TOMÁS DE AQUINO, 2004, p. 35). Assim, conforme mestre Tomás, o professor não infunde em seu aluno a razão, que é o princípio do conhecimento e da reflexão no homem, mas o auxilia exteriormente por meio de sinais a desenvolver este princípio essencial. Deste modo, a educação se coloca como um processo determinante do amadurecimento do indivíduo enquanto ser dotado de razão. O bem e mal moral nas paixões da alma, nesse sentido, também depende da educação, pois é por ela que indivíduo cultiva a razão, elemento regulador das paixões.

O AMOR COMO PRINCÍPIO DA AÇÃO DO HOMEM Tomás de Aquino analisa o amor em três Questões 6 da primeira seção da segunda parte da Suma Teológica, após ter refletido sobre as paixões em geral, classificando-as e distinguindo-as entre a parte concupiscível e a parte irascível da alma. O amor, segundo o autor, é a principal paixão da parte concupiscível (ST, I a II ae, q. 25, a. 2). As paixões do concupiscível são aquelas que têm o bem e o mal absolutos como objeto, isto é, elas tendem para o bem ou para o mal, proporcionando deleite no primeiro e sofrimento no segundo (ST, I a II ae, q. 23, a. 1). Já as paixões do irascível são aquelas que se desenvolvem diante de alguma dificuldade encontrada pelo indivíduo em perseguir o que lhe parece algo bom e fugir do que pensa ser algo mau. Desse modo, as paixões do concupiscível e do irascível estão relacionadas na medida em que o concupiscível encontra algum obstáculo para a consecução de seu objeto. Tal dificuldade desperta a parte irascível. As paixões do concupiscível são: o amor, o desejo, a alegria, o ódio, a aversão e a tristeza. As paixões do irascível são: a esperança, o desespero, a audácia, o temor e a ira (ST, I a II ae, q. 26, a. 4). Na Questão 26, intitulada O amor, Tomás de Aquino aborda a natureza do amor enquanto paixão da alma. No primeiro artigo, o teólogo/filósofo analisa se o amor pertence ou não à parte concupiscível. Inicia seu argumento discorrendo sobre as diferenças de apetite: O amor é algo próprio do apetite, pois ambos têm o bem por objeto. Daí que segundo seja a diferença do apetite, tal é a diferença do amor. Ora, há um apetite não conseqüente à apreensão do que apetece, mas à de outrem, e este se chama apetite natural. As coisas naturais desejam o que lhes convém por natureza, não por apreensão própria, mas pela apreensão do autor da natureza, como se disse na I Parte. Há, além disso, outro apetite conseqüente à apreensão do que apetece, mas por necessidade e não por um juízo livre, e tal é o apetite sensitivo dos animais irracionais, que nos homens participa de alguma liberdade, enquanto obedece à razão. Enfim, há outro apetite conseqüente à apreensão do que apetece, por um juízo livre, e tal é o apetite racional ou intelectivo, e este se chama vontade (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 26, a. 1, c.). 6 As Questões da Suma Teológica tem a estrutura da disputatio, prática sobre a qual se sustenta o método escolástico, sistematizado nas Universidades do século XIII: primeiro, fixa-se o problema, depois, elabora-se uma hipótese, em seguida, fazem-se objeções para confirmar a hipótese. Às admoestações seguem contra-objeções e a estas a elaboração da resposta pelo mestre, que respeita as posições defendidas no debate. Por fim, dão-se respostas às objeções (NUNES, 1979).

Como podemos observar na passagem acima, Tomás de Aquino distingue três espécies de apetite. A diferença desses apetites reflete-se na diferença do amor, pois ambos têm o mesmo objeto: o bem. Desse modo, existe o amor natural que pertence ao apetite natural, mediante o qual o ser se inclina para o bem naturalmente, não necessitando de conhecimento e pensamento reflexivo. Existe, também, o apetite sensitivo que, diferentemente do anterior, exige certo grau de conhecimento proveniente dos sentidos corporais (visão, audição, olfato, paladar e tato). Esse apetite sensitivo é instintivo nos outros animais e no homem partilha da racionalidade, no sentido de que os sentidos estão relacionados à razão. Por fim, existe o apetite intelectivo, também chamado pelo autor de vontade, que decorre da apreensão e reflexão sobre o que é apetecível: Ora, em qualquer destes apetites, chama-se amor o princípio do movimento que tende para o fim amado. No apetite natural, o princípio deste movimento é a conaturalidade do que apetece com o objeto para o qual tende, e pode ser chamado amor natural, como a mesma conaturalidade de um corpo pesado em relação ao seu centro se dá pela gravidade, e pode ser chamado amor natural. Do mesmo modo a mútua adequação do apetite sensitivo ou da vontade a um bem, isto é a complacência no bem se chama amor sensitivo, ou intelectivo ou racional. Logo, o amor sensitivo está no apetite sensitivo, como o amor intelectivo no apetite intelectivo. E pertence ao concupiscível porque se refere ao bem absolutamente, não sob o aspecto de árduo, que é objeto do irascível (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 26, a. 1, c. Grifo nosso). O amor constitui-se, assim, como o princípio da ação, em todos os níveis de apetite. Com efeito, para que se alcance o fim, é preciso que primeiro o fim almejado seja tomado como algo conveniente e realizável, processo encerrado no conceito de amor. Desse modo, entendemos que esse sentimento, para Tomás de Aquino, refere-se à afinidade do ser com relação ao bem que ama, que pode ser, por exemplo, o dinheiro e/ou o conhecimento. No âmbito do apetite intelectivo, de acordo com Tomás de Aquino, a preparação ocorre mediante o exercício do pensamento reflexivo e, por isso, difere do amor natural que é observado no apetite natural que espontaneamente identifica a compatibilidade, chamado de conaturalidade com o fim. Já no primeiro artigo podemos perceber a relação entre amor e saber, no sentido de que o apetite intelectivo deflagra uma espécie de amor inteligente, ou que pressupõe abstração por parte daquele que ama.

Diante dessas discussões, o teólogo/filósofo conclui afirmando que o amor está no concupiscível, pois se refere ao bem absolutamente. Isso significa que o amor é o sentimento que desperta o interesse do indivíduo por qualquer coisa diante da possibilidade de obter o fim desejado. A concepção de bem que está presente na obra de Tomás de Aquino é diferente da que temos atualmente. O bem, para o teólogo, está relacionado à perfeição, ao ser enquanto ato consumado. O bem atrai o apetite e o move em sua direção. As pessoas podem inclinar-se para o mal, que é o contrário do bem, mas apreendendo-o sob a razão de bem, isto é, concebendo-o como um bem a ser buscado (NICOLAS, 2003, p. 75). Esta discussão do bem enquanto objeto do amor é empreendida por Tomás de Aquino na Questão 27, intitulada A causa do amor: RESPONDO. Como foi dito acima, o amor pertence à potência apetitiva que é uma força passiva. Por isso seu objeto se refere a ela como à causa de seu movimento ou ato. É preciso, pois, que aquilo que é objeto do amor seja propriamente a sua causa. Ora, o bem é o objeto próprio do amor, porque, como foi dito, o amor implica certa conaturalidade ou complacência do amante com o amado, e para cada um é bom o que lhe é conatural e proporcionado. Por conseguinte, o bem é a causa do amor (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 27, a. 1, c.). Observamos que o teólogo afirma que o amor está na potência apetitiva, que é uma força passiva. Isto é, o bem é causa do amor porque esta paixão implica conaturalidade ou complacência do amante com o amado, isto é, o amante sente-se atraído pela coisa amada como se ela fosse digna de ser buscada e possuída. O amante entende o amado como sendo proporcional a seu querer, a sua vontade. Assim, o homem pode amar o mal, mas somente se apreendê-lo como um bem: QUANTO AO 1º, portanto, deve-se dizer que o mal nunca é amado senão sob a razão de bem, isto é, enquanto é um bem relativo apreendido como um bem absoluto. Assim é mau o amor que não tende para o que é absolutamente o verdadeiro bem. É desta maneira que o homem ama a iniqüidade, enquanto que por ela alcança um certo bem, como o prazer, o dinheiro ou coisa semelhante (TOMÁS DE AQUINO, ST, I a II ae, q. 27, a. 1, ad. 1 m.).

Mestre Tomás explica que o mal só pode ser amado sob a razão de bem, ou seja, quando o amante sente o mal como se fosse um bem que pode satisfazer sua vontade. Observamos o exemplo dado pelo autor: o homem pode amar a iniqüidade, que é má, porque sendo iníquo por alcançar prazer, dinheiro ou outras coisas que lhe satisfazem. Como pode, então, o indivíduo preparar-se para direcionar seu amor àquilo que é verdadeiramente bom? Para isso, retomemos a Questão 24. As paixões da alma, conforme a análise de Tomás de Aquino, não são boas nem más por natureza. Podem, sim, inclinar para a virtude como podem inclinar para o vício. O agir conforme a virtude ou conforme o vício depende da razão. É pelo pensamento que o homem ama o bem ou o mal. É porque as paixões estão relacionadas com a razão que elas podem ser caracterizadas como boas ou más. Assim, o amor é bom quando ama o bem verdadeiro e mal quando ama um bem falso. Nesse sentido, faz-se essencial um processo pelo qual o homem é preparado para o exercício do pensar. A educação, cumprindo a função de desenvolver as capacidades humanas de refletir e escolher, figura como algo determinante para o agir conforme a virtude, ou o vício. A educação não visa, no pensamento de Tomás de Aquino, o ensinamento de preceitos morais pré-estabelecidos. É evidente que, sendo um teólogo e frade mendicante, tendo nascido e vivido no Ocidente medieval, marcado pela presença da Igreja Católica, suas ideias e valores são eminentemente cristãos e ele não hesitaria em recomendar um modo cristão de se viver (OLIVEIRA, 2009). Contudo, o homem, para ele, não nasce plenamente capaz de garantir a própria sobrevivência. É preciso, pois, de um processo formativo pelo qual desenvolverá suas potencialidade, principalmente as faculdades do intelecto e da vontade, pelas quais pode exercer autoridade sobre seus sentimentos, encabeçados pelo amor. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos verificar, Tomás de Aquino considera que as paixões da alma devem ser moderadas pela razão, pela capacidade humana de refletir sobre as coisas. Além disso, observamos que o amor é a primeira dentre as paixões, configurando-se como o princípio da ação do homem, uma vez que as paixões são os movimentos que levam o homem a agir. Nesse sentido é o que o homem faz tudo por amor, conforme o teólogo afirma na Questão 27.

O amor, enquanto paixão, necessita da moderação da razão. É por esta vinculação com a razão que o amor pode ser moralmente bom ou mal. Ou seja, o amor em si não pode ser considerado bom ou mal, mas sim o que se ama e como se ama. Desse modo, o amor é bom quando é bem orientado pela razão e mal quando mal direcionado. Ora, o homem, de acordo com o pensamento tomasiano, não nasce pronto e acabado, disposto a fazer despertar a razão no momento oportuno. O conhecimento está no homem em potência e é por meio do processo educativo que o homem o desenvolve, que opera o movimento de potência ao ato de conhecimento (TOMÁS DE AQUINO, 2004). Assim, a educação na concepção de mestre Tomás configura-se como algo primordial para o homem agir, pois é por meio dela que desenvolve a razão e, por conseguinte, a capacidade de bem ordenar o amor. REFERÊNCIAS DE BONI, L. (2003). A. De Abelardo a Lutero: estudos sobre filosofia prática na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS. DUBY, G. (1978) No tempo das catedrais. Lisboa: Editorial Estampa. DUBY, G. (1994). As três ordens ou o Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa. GUIZOT, F. (1907). História da Civilisação na Europa. Lisboa: Officinas Typographica e de Encadernação. GUIZOT, François. Sétima lição. In: OLIVEIRA, Terezinha; MENDES, Claudinei Magno Magre (Orgs.) (2005). Formação do Terceiro Estado as comunas: coletânea de textos de François Guizot, Augustin Thierry, Prosper de Barante. Maringá: Eduem, p. 27-48. LE GOFF, J. (1995). Os intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense. LIBERA, A. (1990). A filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. NUNES, R. A. C. (1979). Capítulo IX A escolástica. In:. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, p. 243-286. OLIVEIRA, T. Guizot e a Idade Média: civilização e lutas políticas. Tese de Doutorado em História. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Assis: 1997.

OLIVEIRA, T. (2005). Escolástica. São Paulo: Editora Mandruvá. OLIVEIRA, T. A Universidade medieval: uma memória. Mirabilia, n. 6, 2006. Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/numeros/num6/art5.html>. Acesso em: 25 mar. 2007. OLIVEIRA, T. O ensino da caridade: uma virtude para o bem comum sob o olhar de Tomás de Aquino. Notandum, Ano XI, n. 18, jul./dez., 2008. OLIVEIRA, T. A importância da leitura de escritos tomasianos para a formação docente. Notandum, Ano XII, n. 21, set./dez., 2009. TOMÁS DE AQUINO. (2003). Suma Teológica. São Paulo: Loyola, v. III. TOMÁS DE AQUINO. (2004). Sobre o ensino (De Magistro), Os sete pecados capitais. São Paulo: Martins Fontes. VERGER, J. (2006). Universidade. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru : Edusc, p. 573-588.