Jogos de tabuleiro criações a partir do espaço como indutor do jogo. Flavio Souza Mestre em Artes Cênicas PPGAC/UNIRIO Ator, palhaço e contador de histórias Resumo: O espaço como principal indutor de jogo para a criação em teatro, tomando como ponto de partida as propostas de Anne Bogart em seu sistema de Viewpoints, o pensamento sobre jogo e o conceito de indutor de jogo de Jean-Pierre Ryngaert. O desenvolvimento dos jogos de tabuleiro, servindo como suporte de criação para a cena contemporânea. A capacidade do ator de se manter em jogo com os parceiros de cena e conectado com as relações que se estabelecem pelo espaço. Palavras-chave: jogo, espaço, processo de criação, viewpoints. Com o objetivo de construir uma metodologia que permita ao ator atingir novas qualidades de expressão, desenvolvi, ao longo de minha experiência como professor, três grandes ferramentas, com a finalidade de trabalhar o jogo, a fisicalidade e a resposta dos atores aos estímulos. Esses procedimentos de trabalho, essas ferramentas, foram baseadas em algumas técnicas corporais já conhecidas, e que venho desenvolvendo e adaptando em meu trabalho de sala de aula e de pesquisa. São elas: o jogo do peso baseado no contatoimprovisação, as caixas adaptação do exercício com as rasaboxes e os jogos de tabuleiro a partir dos viewpoints. Anne Bogart, professora da Columbia University e diretora artística da SITI Company 1, desenvolveu o trabalho que ela chama de viewpoints, ou seja, pontos de atenção que o intérprete utiliza para estruturar a improvisação. O jogador estará sempre conectado a algum referencial de tempo ou de espaço, para desenvolver a sua criação. Segundo Bogart (2005, p. 17) os viewpoints apresentam novos caminhos para estruturar as escolhas feitas no palco assim como criar ações baseadas na atenção voltada para o tempo e o espaço. O treinamento elaborado por Bogart desenvolve no ator a capacidade de se conectar cinestésicamente com os elementos da cena. A cinestesia é o sentido pelo qual se percebe os movimentos musculares, o peso e a posição do corpo no espaço. A sua atenção está sempre voltada para uma relação concreta com o espaço, com o parceiro, com uma ação executada que pode ser utilizada de diferentes formas, com o próprio corpo, com o texto. O estudo aprofundado proposto por Anne Bogart da criação em teatro a partir da atenção focada no tempo e no espaço sensibiliza o ator/jogador a criar a partir de um material muito concreto. Essa capacidade de compreensão produz uma maior autonomia para a criação. O ator consciente das relações estabelecidas no palco pode transformar a 1 A SITI COMPANY foi fundada em 1992 por Anne Bogart e Tadashi Suzuki. Para maiores informações consulte o site da companhia: www.siti.org
sua relação com a movimentação em cena. As conexões descobertas são processadas no campo das escolhas, o que constrói uma apropriação maior das ações executadas. Anne Bogart (2005) nos diz que no método dos viewpoints o ator é levado a entender as possibilidades do trabalho, o que geraria a capacidade de escolher, o que acabaria por trazer mais liberdade para a criação. O entendimento da improvisação como técnica e procedimento criativo a partir dos tabuleiros imprime no ator a capacidade de estar em relação sempre. Qualquer elemento da cena pode ser compreendido como estímulo. Esse estar em relação coloca em questão a atitude para a construção e elaboração de trabalho a partir da noção de conjunto. O resultado do encontro entre os jogadores gera um material particular que é fruto daquele encontro. Para o Laboratório Prático realizado no âmbito da minha pesquisa de mestrado, fixei-me em estudar apenas os viewpoints de espaço e desenvolver a partir deles material próprio e específico para o treinamento do ator em relação à ocupação espacial. Entendo que o estudo do espaço é o primeiro desafio para o ator diante da criação no palco. Entender sua presença no espaço, ocupar o espaço e ressignificá-lo e ainda entender a dinâmica de outros corpos pelo mesmo espaço. O que apresento aqui é uma leitura particular do treinamento a partir dos pontos de atenção. Este trabalho é fruto de oficinas com a coreógrafa Andrea Jabor naquilo que ela chama de Arquitetura do Movimento, um recorte específico do estudo do movimento em cena a partir da concentração na experimentação do espaço. Andrea propõe que o corpo pode se desenvolver em relação à arquitetura e jogar com ela. Unindo essa idéia às propostas de Anne Bogart sobre o espaço, apliquei no treinamento dos atores no laboratório aquilo que denominei Jogos de Tabuleiro. Os Jogos de Tabuleiro partem do princípio de que o movimento no palco segue, em um primeiro momento, uma topografia específica. São linhas, percursos, formas desenhadas no chão, que como tabuleiros de jogo comportam regras de movimento que são utilizadas pelos atores para construir e elaborar a performance. Essa construção pressupõe que todas as relações estabelecidas no palco deverão de alguma forma ser concretizadas por uma relação com o espaço. O tabuleiro define uma forma de se comportar fisicamente em relação ao espaço. As linhas desenhadas no chão orientam os jogadores definindo uma área limite de movimentação. Essa área limite deve ser entendida não como uma área limitada ou reduzida, mas sim como pontos de atenção que irão permitir que o movimento seja um produto da escolha do jogador em relação ao que está no chão organizado, criando uma estrutura definida de apoio para o improviso.
Os atores são estimulados a se comportarem em relação aos parceiros usando sempre a referência do desenho no chão. Somam-se ao tabuleiro indutores de jogo que obrigam os jogadores a necessariamente estar em relação. O objetivo é entender que a comunicação entre os corpos em cena será sempre elaborada a partir de uma relação determinada pelo espaço. A compreensão do espaço como tabuleiro organiza e codifica a área de atuação que, por sua vez, indica que dentro do tabuleiro o comportamento deve ser diferenciado. Essa separação entre área de atuação e a vida cotidiana aprofunda a consciência de presença em cena e que dentro do tabuleiro se está submetido às necessidades do jogo estabelecido. Essa natureza de jogador se faz estruturante para a prática do ator em qualquer que seja a linguagem teatral envolvida. Jean-Pierre Ryngaert (2009, p. 125) nos alerta para a forma de entender o espaço no âmbito da prática teatral. Ele normalmente não é levado em conta como um elemento de jogo. O espaço por vezes é tomado apenas como dimensão plástica, ou ainda entendido como o cenário que o ator vai ter que incorporar quando este chegar aos ensaios. O próprio Ryngaert nos diz ainda que nesse tipo de abordagem a relação entre o lugar de onde se vê e o lugar de onde se é visto não é perceptível. No entanto, o espaço é fundador do jogo teatral e determina a educação plástica no quadro de uma interdisciplinaridade que aqui deveria ser perfeitamente natural. O trabalho sobre o espaço é acompanhado de uma educação do olhar por intermédio de propostas que estimulem a enquadrar os elementos da realidade. Enfim, o espaço tomado como indutor de jogo ensina a considerar a relação com o referente de tal maneira que a metáfora teatral possa se estender livremente (RYNGAERT, 2009, p. 125). Tomar o espaço como indutor do jogo opera uma nova consciência de trabalho. A consciência para a materialidade da cena. Essa consciência é a primeira base para um alicerce da compreensão dos elementos da cena tais como o texto, o corpo em ação, os outros atores, objetos como estruturas concretas de trabalho. Todo e qualquer elemento da cena pode ser considerado como elemento de jogo, elemento que pode induzir a criação do jogo teatral. A diferença em relação ao treinamento proposto por Anne Bogart está em fazer passar pela compreensão do jogo o estudo do espaço como indutor que permite que se treine a resposta do ator para a percepção das questões relativas ao tempo, à palavra, à contracenação, aos objetos, sem tantas fragmentações ou interrupções, buscando a interrelação que existe entre cada uma delas. As delimitações dos indutores colocados no tabuleiro servem como parâmetro da criação em cena. O ator precisa ser estimulado a estar sempre em relação concreta com o que acontece, que seu corpo traduza a resposta do estímulo recebido em dinâmica de trabalho envolvendo o tempo e o espaço.
O treinamento proposto por Anne Bogart trabalha pedagogicamente dividindo o estudo dos elementos ligados ao tempo e ao espaço: os nove viewpoints são estudados separadamente e aos poucos vão sendo entendidos conjuntamente. A diferença no trabalho que proponho e que chamo de Jogos de Tabuleiro é fazer passar pelo jogo espacial a compreensão dos outros elementos que constituem material concreto de trabalho para a cena. O trabalho sobre o espaço é a oportunidade de educar o olhar dos jogadores e dos espectadores. Os enquadramentos se realizam a partir de espaços reais. Como e onde colocar o olhar dos outros em relação a um determinado espaço? As duas coisas estão ligadas: como eu me mostro e também como é percebido aquilo que eu mostro (RYNGAERT, 2009, p. 127). Existe potencial de trabalho quando engajamos o corpo no espaço de maneira concreta, e entendemos que todas as relações estabelecidas podem ser traduzidas por relações de tempo e espaço. Os indutores de jogo podem ser definidos de várias maneiras. Podem assumir a função unicamente pedagógica de trazer para a prática do jogo do ator a experiência ampla do vivenciar o jogo pelas relações de tempo e espaço. Podem ainda assumir o lugar de elemento indutor da criação artística. Neste último caso o que vai induzir o jogo pode ser uma proposta de improvisação, ou mesmo um tema. O importante é que uma vez estimulado a concretizar o seu pensamento no corpo em cena o jogador deve ser sempre orientado para essa forma de produção artística. Existe uma poética associada ao espaço concreto. Para Ryngaert (1985, p. 70) A leve modificação de um espaço banal, ou já demasiadamente visto, lhe confere novo interesse. A sensibilização para o espaço habitua o artista a traduzir concretamente em um tabuleiro de jogo o seu local de atuação. O treinamento constante de se entrar em relação estrutura uma nova forma de percepção e de criação do ator, que não parte mais de uma interiorização, mas sim de uma atitude produtiva artesanal ligada à necessidade de expressar, ou seja, de tornar concreto o seu interior a partir do que se estabelecido concretamente na cena. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOGART, Anne & LANDAU, Tina. The Viewpoints Book: a practical Guide to Viewpoints and Composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. BONFITTO, Matteo. O ator compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002. GIL, José. Movimento total, o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D água, 2001.
LECOQ, Jacques. The moving Body (Le Corps poétique). New York: Routledge, 2001. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos: teatro, mímica, dança, dança-teatro, cinema. São Paulo, Perspectiva: 2005. RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes: 1998.. Jogar, representar. São Paulo: Cosac Naif, 2009.