INSTRUMENTOS CONTRA INSTRUMENTOS EVIDENCIANDO A POLÍTICA URBANA BRASILEIRA ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, ENTRE O REAL E O LEGAL



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Transcrição:

INSTRUMENTOS CONTRA INSTRUMENTOS EVIDENCIANDO A POLÍTICA URBANA BRASILEIRA ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, ENTRE O REAL E O LEGAL Bruno dos Santos Del' Esposti 1 Resumo No Brasil, leis aliadas à promoção da Reforma Urbana surgiram a partir da Constituição Federal de 1988. O Estatuto da Cidade (2001) criou uma série de instrumentos de gestão urbana que buscam melhorar a qualidade vida da população e elevar o nível social nas cidades. Tais instrumentos buscam promover um desenvolvimento urbano autêntico, reduzindo a especulação imobiliária e diminuindo o nível de disparidade sócio-econômico-espacial intra-urbana, além de democratizar ao máximo o planejamento e a gestão do espaço urbano. Com a implantação das medidas econômicas de teor neoliberal a partir dos anos 1990, surgiram outros instrumentos de gestão, chamados estratégicos, que buscam consolidar investimentos do capital privado combinando megaeventos e megaprojetos (GPUs) sob a lógica da cidade-espetáculo, da cidade-empresa, da cidade-negócio e da cidade de exceção. Diante desse cenário, busca-se evidenciar a política urbana brasileira quanto à adoção de instrumentos que protegem o interesse público e outros que privilegiam os anseios dos setores formados pelo capital privado. Palavras-chave: Instrumentos, Gestão Urbana, Reforma Urbana, Cidades.. 1 Advogado, Professor, Especialista em Língua Portuguesa e Assistente em Administração do Instituto Federal Fluminense - campus Campos-Guarus. Mestrando do programa de Pós-graduação em Planejamento Regional e Gestão de Cidades da Universidade Cândido Mendes/Campos dos Goytacazes - RJ. E-mail: brunodelesposti@hotmail.com 1

Apresentação Os principais instrumentos de gestão urbana são resultado do surgimento de um forte movimento pela reforma urbana no Brasil no começo do processo de democratização. O grande crescimento urbano que o país apresentou entre 1950 e 1980 deu origem ao Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) com forte apoio da esquerda brasileira e dos setores progressistas da sociedade civil. Todavia, com o golpe de Estado em 1964, o movimento de reforma urbana enfraqueceu-se durante os quase 20 anos de autoritarismo antes de voltar à agenda política da sociedade civil brasileira. Foi durante a década de 80 com a reconstituição da democracia no Brasil é que a Constituição Federal foi formulada apresentando grandes avanços no campo da política urbana, dando origem a instrumentos de gestão urbana de caráter participativo. Tais instrumentos buscam organizar melhor os espaços da cidade, garantindo o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade e o bem-estar de seus habitantes. Esses instrumentos definem regras de uso e ocupação dos espaços da cidade e garantir, por exemplo, moradias perto dos empregos, serviços e equipamentos urbanos, bons espaços públicos, preservação do meio ambiente, moradias adequadas para todos, transporte coletivo de boa qualidade, entre outras coisas. Instrumentos para garantir a qualidade de vida dos citadinos. O fenômeno da globalização provocou várias mudanças na forma de organização das instituições sociais existentes no mundo. Com a implantação das medidas econômicas de teor neoliberal a partir dos anos 1990, surgiram outros instrumentos de gestão, chamados estratégicos, amparados no falso discurso de atrair investimentos do capital privado para cidade e renda e empregos para seus citadinos. A globalização fez nascer um mercado altamente competitivo exigindo de seus atores maior capacidade de gestão e certa dose de criatividade. As cidades acabam copiando tais modelos. Embora a democratização tenha transformado o planejamento urbano em ação compartilhada com os cidadão, é importante que estes o assumam produzindo um diálogo real com as demandas, pleitos e desejos dos diferentes grupos da cidade, a partir de um processo organizado de escuta e de debate em torno dos diferentes interesses e suas implicações para a cidade, viabilizando as escolhas e 2

sua implementação. Os avanços foram muitos, mesmo que tenham sido no âmbito formal. Tais instrumentos foram positivados, estão previstos em lei. Cabe agora utilizar o mundo legal para transformar o mundo real em ideal. A política urbana sobrevive entre o público e o privado. É um processo marcado por conflitos e o papel do poder público é promover um processo organizado de escuta e de debate em torno das diferentes opções e suas implicações sobre a cidade, viabilizando as escolhas e sua implementação. Desse modo, os planos urbanísticos e os projetos urbanos precisam aproximar-se dos cidadãos, estabelecendo um forte vínculo com a cidade real. Não se pode inventar um plano, um projeto de cidade, cheio de qualidades, mas absolutamente descolado dos atores reais, da capacidade de organização e das possibilidades reais de implementação e controle dessa política. O que se tem observado é um baixíssimo nível de interlocução do poder público com os diversos segmentos da sociedade, salvo setores muito precisos que têm sua atividade profissional e econômica diretamente ligada à produção material da cidade, como engenheiros, arquitetos, empreiteiros de obras, construtores, loteadores e incorporadores. Instrumentos Democráticos X Instrumentos Estratégicos São instrumentos de gestão participativa contra instrumentos de gestão estratégica, todos em diferentes dimensões. De um lado estão o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor que instituíram Parcelamentos, Edificações e Utilizações Compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo, Desapropriações com Pagamentos de Títulos, Usucapião Especial de Imóvel Urbano, Direito de Superfície, Outorga Onerosa do Direito de Construir, Direito de Preempção, Operações Urbanas Consorciadas, Transferência do Direito de Construir, Estudo de Impacto de Vizinhança. Em outra dimensão temos conselhos de política urbana, debates, audiências, consultas públicas, conferências de desenvolvimento urbano, iniciativa popular de projetos de lei e planos, todos privilegiando a participação da sociedade civil. Do outro lado estão o Planejamento Estratégico com suas parcerias público-privadas (PPPs), flexibilização da legislação urbana, agilização de processos e atuação de organizações não governamentais. 3

Diante do cenário da globalização e da unanimidade do neoliberalismo, muitos governantes implementam nas cidades que administram os modelos de gestão empresarial ou empreendedorista adequados às exigências de um mercado altamente competitivo. Modelos que reformulem postulados tradicionais de gestão voltados para economias estáveis, de poucas mudanças e transformações, em que se podiam prever com certa facilidade as tendências para os cenários futuros. Daí decorre os questionamentos: como a cidade pode sobreviver num mundo altamente competitivo de cidades disputando entre si os melhores investimentos privados? Quais as responsabilidades dos gestores para a adequação de suas cidades às atuais mudanças econômicas? O que os cientistas sociais, economistas, geógrafos e urbanistas propõem como caminho viável para as cidades diante da atual situação? A implementação dos conceitos privados no setor público pôde ser observada nas duas últimas décadas na cidade do Rio de Janeiro, onde a busca pela realização dos Jogos Olímpicos conduziu e orientou as principais determinações da política urbana do município carioca nos últimos anos. Os megaeventos esportivos acabaram representado a oportunidade de implementar os Grandes Investimentos Urbanos (GPUs) na cidade, por meio de uma gestão urbana denominada Planejamento Estratégico. Em outras palavras, o Planejamento da Cidade foi o Planejamento dos Jogos. A principal razão pela qual a revisão do plano diretor se arrastou por tanto tempo é o fato de as gestões que se seguiram tão logo sua aprovação não tinham interesse político em utilizá-lo, tendo buscado na experiência internacional outro instrumento, o plano estratégico como principal legitimador de suas políticas e ações no território carioca - o Plano Diretor foi engavetado por conta da adoção do planejamento estratégico (1996, 2004, 2009), revelando assim o foco das gestões que se sucederam nesse período. O Plano Diretor foi só para constar. O processo de sua revisão só teve início por conta da obrigatoriedade imposta pelo Estatuto das Cidades mero cumprimento de uma obrigação legal. Neste caso particular, os grandes eventos foram utilizados como instrumentos remodeladores do espaço urbano. Uma vez conquistado o direito de sediar os eventos esportivos, esse foi o instrumento, o principal pretexto para se colocar em prática um processo de (re)ordenação do território carioca. Um tipo de (re)ordenação que não é fruto de um processo democrático de discussões e debates com a sociedade e que não privilegiou os espaços que mais precisavam de 4

investimentos. Enquanto corria o processo de revisão do Plano Diretor, os projetos relacionados aos megaeventos estavam sendo concebidos e implementados na cidade, em paralelo e sem nenhum diálogo com o que o Plano Diretor determina, inclusive contrariando várias de suas diretrizes como, por exemplo, a escolha da Barra da Tijuca como local privilegiado de concentração de investimentos. Para o prefeito do Rio, Cesár Maia, o projeto de 2004 foi correto ao concentrar a maioria das instalações em uma área. Ele critica, no entanto, a escolha do Fundão. Os Jogos são, antes de tudo, um evento econômico relacionado ao esporte. Ele tem suas lógicas e suas exigências. Imaginem uma foto de capa de jornal mostrando um atleta e no fundo uma favela com um homem esquálido. Nós não precisamos e nem queremos esconder nossas dificuldades, mas é preciso entender a complexidade dos Jogos Olímpicos. Ministério do Esporte, Governo Federal, 2008:12). Torna-se evidente que todo o processo de elaboração do plano olímpico é marcado por uma verticalidade, ou seja, um projeto de cidade que vem claramente de cima para baixo, do tipo top-down, imposto aos cidadãos sem nenhum diálogo ou transparência. É a cidade desenvolvendo seu city marketing ou marketing urbano (Sanchez, 2003) para vender a imagem do Rio nesse mercado simbólico que faz a cidade operar como uma empresa, onde a publicidade mascara as contradições sociais e o debate é silenciado pela necessidade de aproveitar a oportunidade de negócio trazida pelo megaevento. É, segundo Carlos Vainer (2011), a lógica da cidade-empresa. Harvey (2006) define como empresariamento urbano. A cidadeempresa torna invisíveis as diferenças, porque vende o que não é, e sim o que quer parecer. É, segundo Vainer, um processo simbólico de consequências concretas, como no caso das remoções. Cria-se a utopia de uma cidade sem pobres, mas os pobres existem nessa cidade. A solução encontrada é mandar para longe esse elemento que corrompeu ideário de cidade perfeita. Só que esse ideário não é real; foi construído sobre uma sociedade extremamente desigual. De fato, as remoções aconteceram não pelo fato de os moradores estarem em situações de risco, mas sim pela dinâmica da especulação imobiliária. A cidade-espetáculo convida poucos para seu espetáculo. A geral do Maracanã foi transformada em camarote. Não há nada mais simbólico que isso. É a lógica de uma cidade autoritária, não participativa. Na cidade-negócio a ordem é, inevitavelmente, autoritária. É a ideia do governante que é capaz de alavancar negócios e de estabelecer com os investidores uma arena segura para seus negócios. Nessa governança, quem manda, quem desenha, quem define o projeto urbano são os investidores. Esse ator é o representante do 5

setor empresarial, ignorando as necessárias discussões de num âmbito público. Assim, a combinação de megaeventos e megaprojetos (GPUs) torna-se perfeita para a atração de investimentos privados. De acordo com Vainer (2011), é a transposição para a esfera pública de modelos de gestão e competição empresariais. A cidade passa a ser vista como uma empresa, que compete com outras cidades-empresa no mercado internacional. A cidade é reduzida a uma de suas dimensões, a econômica, e mesmo assim a apenas uma das faces dessa dimensão econômica, a empresarial. E a partir do momento em que se pena a cidade como empresa, ela também passa a ser vista como mercadoria e o gestor cria estratégias para vender sua cidade para o mundo. É a partir desse pressuposto que se desenvolve o marketing urbano. Entretanto, o marketing que vendeu o Rio para o exterior não mostrou a favela, a pobreza, nem as desigualdades. O marketing torna invisível tudo que não é uma virtude de mercadoria. Em outra oportunidade, observou-se o Governador do Ceará, Cid Gomes do PSB (2007-2010), vendendo espaços vendendo espaços urbanos e "arrancando" moradores de suas raízes para atender os interesses dos grupos de empresários da construção imobiliária. Surge uma sensação de que as leis são "do prefeito ou do governador", "do urbanista tal" ou "do empresário tal" e não da cidade, sendo, portanto, facilmente "flexibilizadas" privilegiando grupos de interesse relacionados aos setores de maior renda e melhor articulação político-econômica, em prejuízo do interesse coletivo. Flexibilizar as regras (cidade de exceção - expressão cunhada por Vainer) para fazer do espaço urbano presa fácil do capital privado. A regra passa a ser a exceção. São as cidades vendendo localização. E o desenho é o seguinte: "guetificação urbana, transformação da cidade em um conjunto de cidadelas. As cidadelas dos ricos, nos condomínios fechados, cercados por muros e protegidos por vigilantes; e os condomínios dos pobres, ou os guetos dos pobres, cercados por polícias". (VAINER 2014). Os condomínios fechados são proibidos, por lei, no Brasil. Lei essa que diz que nenhuma via pode ser bloqueada e que as vias que atravessam um condomínio são públicas, portanto não podem ser interrompidas ou fechadas. No entanto, o que é a Lei diante dos interesses imobiliários associados aos interesses eleitorais de grupos? A cidade-empresa desenvolvendo um modelo peculiar de planejamento estratégico. São cidades sendo pensadas como empresas que concorrem com outras empresas. E o que é pior: esse sistema não permite que 6

a cidade seja objeto de discussão pública. Vainer (2011) chama isso de despolitização da cidade. E conclui que esse processo de privatização da cidade é negação da política, portanto o fim da expectativa da democracia urbana. É sim a transformação do governo urbano em governo autoritário. Sem sensibilidade alguma para com seus citadinos, o governador do Ceará afirmou que "para o estado é mais fácil desapropriar". E ainda fala em "verticalizar". Verticalizar para quem?. E termina com: "Então, vamos ver se a gente faz um rolo aí". Assim, fica clara a ideia de que para gestores como ele, a democracia é obstáculo para essa cidade. A única lei que existe é para os inimigos. Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei. Nesse contexto, a população, cada vez mais excluída, passa a ser o inimigo permanente. Comprovou-se isso com a democratização da repressão e da brutalidade promovida pela polícia do Rio na época das manifestações. O uso da bala de borracha é a comprovação da criminalização da ação política por parte da população, revelando uma sensação de que reivindicar é crime. É a lógica do Estado Mínimo para um lado e Estado Máximo para outro. Mínimo para o mercado e Máximo para aqueles que contrariá-lo. Nesse modelo de cidade empresa, o poder público sucumbiu. O Estado se tornou tão mínimo que o prefeito virou síndico. O Estado se tornou tão pequeno que a gente despolitizou a política, que agora é gestão. ( ) Se despolitiza a política, o mecanismo de cidadania tem que ser não participativo. Por isso, é importante ter muitos eventos. O cidadão vira um espectador da vida urbana. A cidade passa a ter público e não povo, disse Marcelo Freixo no debate sobre Uma alternativa ao caos realizado pelo PSOL-Niterói, na segunda-feira, dia 02 de abril do corrente, na UFF. Parece que modelo ideal de planejamento é o que alguns apelidaram como market friendly, amigável com o mercado. Ou market oriented: orientado pelo e para o mercado. O Estado passa a representar o papel do filho obediente que só pode intervir desde que seja para favorecer o pleno funcionamento do mercado, não para impor regras, normas etc. Verifica-se assim, um baixíssimo nível de interlocução de poder público com os diversos segmentos da sociedade, salvo setores muito precisos que têm sua atividade profissional e econômica diretamente ligada à produção material da cidade (engenheiros e arquitetos, empreiteiros de obras e serviços públicos e construtoras, loteadores e incorporadores). O Estado, assim, passa a atuar como um facilitador do lucro de grandes empresários a partir do uso do espaço público. Mas ainda há esperança para um planejamento democrático, participativo, descentralizado, caracterizado por ampla discussão popular envolvendo atores do 7

terceiro setor. Para Vainer (2011), é necessário resistir aos impactos de toda tentativa de transpor para a esfera pública os modelos de gestão e competição empresariais. Aumenta a esperança quando se vê a militância da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, de grande prestígio no meio acadêmico, ministrando uma aula pública no centro de São Paulo sobre a questão urbana. Para ela, vive-se, atualmente, a absolutização da ideia de valor do mercado como único valor que estrutura as relações sociais, as relações políticas e as formas de troca dentro da sociedade. De acordo com Sueli Ramos Schiffer (2006), a legislação urbanística brasileira a partir dos anos 1990 assume os ideários neoliberais e reflete tais princípios na Lei do Estatuto da Cidade, principalmente na parte das operações urbanas em consórcio e da outorga onerosa do direito de construir. Novos instrumentos de gestão urbana entram em cena em correspondência ao modelo neoliberal em vigor, tendo como foco central dar conta dos processos de renovação urbana, implantação de infraestruturas e de equipamentos sociais, por meio de uma menor participação do Estado nas áreas social e urbana. Planejamento Estratégico, Parcerias Público-Privadas, Atuação de Organizações Não Governamentais são exemplos destes novos instrumentos utilizados universalmente. Eles têm facilitado a ação de grupos de pressão, organizados por meio da figura jurídica das organizações sociais, voltados a atingir interesses individualizados, através de parcerias diversas com a administração pública em detrimento dos interesses coletivos. Em contrapartida outros instrumentos com a ideia de democratização dos processos decisórios - e do controle social da implementação de políticas públicas surgem para frear aqueles promovendo um processo organizado de escuta e de debate em torno das diferentes opções e suas implicações para a cidade, viabilizando as escolhas e sua implementação. O Estatuto da Cidade no inciso II do art. 2º e no capítulo IV prevê instrumentos de gestão democrática da cidade: conselhos de política urbana, debates, audiências e consultas públicas, conferências de desenvolvimento urbano, iniciativa popular de projetos de lei e planos. São instrumentos contra instrumentos. 8

Conclusões Vive-se hoje uma cidade de exceção. A cidade onde a regra é a exceção torna-se a nova forma de regime urbano. A exceção surge como norma e as leis estão completamente livres de controle político. É o que Vainer (2006) chama de democracia direta do capital. Militarização, criminalização dos pobres, remoções forçadas, violência institucional, falta de acesso à justiça e à informação, é a realidade na maioria das cidades. Com os Poderes Executivo e Legislativo comprometidos, resta somente recorrer ao Judiciário para que estes últimos instrumentos consigam plotar os "desvios" de comportamento de prefeitos e vereadores, fazendo com que os instrumentos de gestão democrática deixem os textos legais e transformem a cidade real, minimizando/extinguindo a vulnerabilidade dos planos e leis que comumente são "remendados" para atender a pressões de interesses particulares e facilitar os esquemas de favor excluindo a maioria dos atores da cidade real. Embora as contradições tenham aumentado, o movimento popular cresceu e com ele a capacidade de intervenção dos que lutam para que floresça, num futuro próximo, um modelo de cidade mais democrático e participativo. Há saída para tudo isso? A resistência pode fazer uma cidade diferente. Consciência coletiva, consciência política, organização e luta. Afinal, a tolerância pode ser imperdoável e, a modo do mestre Fernando Pessoa, às vezes resistir é preciso, viver não é preciso. 9

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, O. Uma estratégia fatal. 2000 In: ARANTES; VAINER; MARICATO. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes. BADARÓ, M. B. A multidão nas ruas: construir a saída de esquerda para a crise política, antes que a reação imprima sua direção. UFF (Departamento de História), 2013. BIENENSTEIN, G; SÁNCHEZ, F.; CRUZ, M.; GOMES, T.; GUTERMAN, B.; SANTOS, R.; SOUZA, R. 2011. O que está em jogo? Contradições, tensões e conflitos na implementação do Pan-2007. O Jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Pg. 219-236. Rio de Janeiro: Eduerj. BIENENSTEIN, G. et al. 2011b. Jogos Pan-americanos 2007: um balanço multidimensional. O Jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Pg. 100-122. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011b. FREIXO, M. Palestra proferida na Mesa Redonda Ordem/desordem: violência e políticas de segurança na cidade, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2014. LIMA JUNIOR, P.N. 2010. Uma estratégia chamada planejamento estratégico. Deslocamentos espaciais e a atribuição de sentidos na teoria do planejamento urbano. Rio de Janeiro: 7 Letras. MASCARENHAS, G; BIENENSTEIN, G.; SÁNCHEZ, F. 2011. Pós-escrito: 2014 e 2016, quem define o jogo? O Jogo continua: megaeventos esportivos e cidades. Pg. 287-296. Eduerj. VAINER, C. 2000. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano in ARANTES; VAINER; MARICATO. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes.. A lógica da cidade empresa. 2011. Caderno Prosa e Verso. P. 04. O GLOBO. (06/08/11) 10