ANÁLISE CRÍTICA DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO E SUA CONTRADIÇÃO COM OS PRINCÍPIOS GARANTISTAS

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ANÁLISE CRÍTICA DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO E SUA CONTRADIÇÃO COM OS PRINCÍPIOS GARANTISTAS Guilherme Lélis PICININI 1 RESUMO: O presente artigo discorre sobre o Regime Disciplinar Diferenciado, introduzido na legislação brasileira, como sanção disciplinar, por meio da Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003. Buscou-se, através de consulta bibliográfica, situar o leitor sobre a atmosfera de pressão popular e insegurança diante a violência urbana e o crime organizado em que foi criado, bem como revelar seu caráter meramente instrumental, sua ineficácia no alcance dos seus objetivos primordiais e sua utilização por parte do estado como maneira de ludibriar a população, dando sensação falsa de controle e segurança. Tenta mostrá-lo como expressão de um direito penal do inimigo, propagado por um movimento de endurecimento do direito penal no Brasil, assim como evidenciar sua grande contradição com princípios basilares do ordenamento jurídico, com os direitos humanos e, conseqüentemente sua inconstitucionalidade. Palavras-chave: Surgimento do RDD. Ineficácia. Direito Penal do Inimigo. Contradição com os princípios. Inconstitucionalidade. 1 INTRODUÇÃO Desde a sua criação, o Regime Disciplinar Diferenciado tem gerado muita polêmica, constituindo matéria, ainda na atualidade, alvo de muita discussão e crítica. Concebido por alguns como inconstitucional, quando por outros como, desde que com uso demasiado, interessante medida contra a criminalidade, o assunto ganha destaque (inclusive midiático) periodicamente, pois, como regime em pleno vigor, é de grande importância para a compreensão da criminalidade e das formas com que o Estado brasileiro deve combate-la. Nesse sentido, busca-se com o presente artigo, produzido através de estudo bibliográfico, uma critica com enfoque na contradição do referido sistema com princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro, tratando desde seu surgimento, como seus objetivos e até seus efeitos na sociedade. 1 Discente do 1º ano do curso de Direito das Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente. e-mail: gui_-_picinini@hotmail.com

2 O SURGIMENTO DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO NO BRASIL O RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) foi instituído em nível nacional brasileiro através da Lei Ordinária n 10.792, de 1º de dezembro de 2003, incluída na Lei de Execução Penal (lei nº 7.210/84), sendo descrito, especificamente, no artigo 52. Pioneiramente em vigor no estado de São Paulo, através da Resolução SAP 26/2001, amparada no Decreto Estadual paulista de número 45.693/200, o RDD foi criado como reação às incríveis ações criminosas comandadas e deflagradas dentro dos presídios paulistas, no ano de 2001, pela organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Naquele ano, o estado foi assolado por uma megarrebelião que chegou a atingir 25 presídios, fato amplamente explorado pela mídia e que ganhou grande expressão popular. Dessa forma, primeiramente criado para fazer frente aos líderes da principal facção criminosa de São Paulo, o RDD tomou caráter nacional ao irromperse nova crise de segurança pública, deflagrada com o assassinato, em 15 de março de 2003, de Antônio Machado Dias, juiz corregedor da Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente. A fim de retomar o controle do sistema penitenciário, que se encontrava dominado por organizações criminosas, o Congresso Nacional criou a lei 10.792/2003, que instituiu o regime especial em todo território nacional. 3 ANÁLISE JURÍDICA DO RDD Analisemos os aspectos do Regime Disciplinar Diferenciado, descritos na Lei de Execução Penal, in verbis: Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol. 1.º O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. 2.º Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer titulo, em organizações criminosas quadrilha ou bando. Art. 53. Constituem sanções disciplinares: I advertência verbal; II repreensão; III suspensão ou restrição de direitos (art. 41, parágrafo único); IV isolamento na própria cela, ou em local adequado, nos estabelecimentos que possuam alojamento coletivo, observado o disposto no art. 88 desta Lei; V inclusão no regime disciplinar diferenciado. Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado do diretor do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho do juiz competente. 1.º A autorização para a inclusão do preso em regime disciplinar dependerá de requerimento circunstanciado elaborado pelo diretor do estabelecimento ou outra autoridade administrativa. 2.º A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime disciplinar será precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo máximo de 15 dias. Da leitura atenciosa dos referidos dispositivos podemos depreender duas natureza jurídicas distintas de sua criação, apresentando tanto caráter de sanção disciplinar propriamente dita, quanto de medida cautelar. Isso porque apesar de o artigo 52, em seu caput, exigir que ocorra crime com dolo e que este crime possa subverter a ordem ou disciplina internas, caracterizando-se, portanto, como sanção disciplinar, ele, através dos 1.º e 2.º, possibilita a inclusão no RDD de presos provisórios ou condenados que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade ou sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer titulo, em organizações criminosas quadrilha ou bando, representando medida que independe da prática de falta disciplinar. Assim, presume-se a periculosidade do sujeito ou seu envolvimento em organizações criminosas que pode vir a gerar desordem e insegurança para o estabelecimento penal e mesmo

para a sociedade, adiantando-se à prática do crime e revestindo-se, dessa forma, com caráter de medida de cautela. 3.1 A Contradição com o Principio da Taxatividade Luiz Regis Prado (2011, p. 143), assim discursa sobre o princípio da taxatividade ou da determinação: Através da determinação, exige-se que o legislador descreva da forma mais exata possível o fato punível. Diz respeito, em especial, à técnica de elaboração da lei penal, que deve ser suficientemente clara e precisa na formulação do tipo de injusto e no estabelecimento da sanção para que exista segurança jurídica. E, ainda: Pela taxatividade, [...] restringe-se a liberdade decisória do juiz (arbitrium judicis) a determinados parâmetros legais [...]. Tem função garantista (lex stricta), pois o vínculo do juiz a uma lei taxativa o bastante constitui uma autolimitação do poder punitivo-judiciário e uma garantia de igualdade. Assim, fica fácil constatar, através dos 1.º e 2.º do artigo 52, a ineficácia da norma que, elaborada com expressões vagas e imprecisas, dá margem a interpretações altamente subjetivas. A nebulosidade que cobre as definições do que vêm a ser presos provisórios ou condenados que apresentem alto risco para a ordem e a segurança, ou organização criminosa, pode gerar interpretações equívocas, superficiais, que cominem sanção injusta e desproporcional. Dessa forma, pela falta de técnica e clareza em sua elaboração, a Lei que introduz o Regime Disciplinar Diferenciado no ordenamento jurídico, fere princípio basilar do próprio ordenamento (princípio da taxatividade). 4 O RDD COMO REFLEXO DE UMA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E DIREITO PENAL DO INIMIGO

Nota-se, no Brasil, uma tendência de expansão do direito penal, que torna mais rígidas as normas, as sanções e incrementa punições a fatos típicos já existentes. Trata-se de um endurecimento do direito penal, forma de expressão equívoca, retrógrada e ineficaz, que surge para amenizar a sensação de impunidade e insegurança que, através da difusão em massa pela mídia de uma cultura do medo, com a freqüente espetacularização da violência, paira sobre a sociedade. Assim, o tal revela-se como anseio irracional por mais punição, fugindo às características daquele direito penal existente em um Estado Democrático de Direito, mínimo e assegurador de garantias fundamentais, preocupado com a dignidade humana, com a finalidade das penas de prevenção do crime e com a recuperação e reinserção do indivíduo na sociedade. O RDD não podia ser outro se não a maior constatação desse endurecimento, a expressão maior de um direito penal do inimigo. Nesta esteira, o criminoso é visto como inimigo do estado, como alguém que não admite ingressar no estado de cidadania, não sendo tratado como cidadão comum nem simplesmente como pessoa, ficando sujeito a penas desproporcionais e desumanas, sem se falar em direitos e garantias do acusado. O desrespeito aos direitos humanos é nítido e constante. Assim as penas perdem seu fundamento e, sobre isso, já discursava Cesare Beccaria (2001, p. 31): A crueldade das penas produz ainda dois resultados funestos, contrários ao fim de seu estabelecimento, que é prevenir o crime e Para que o castigo produza o efeito que dele se deve esperar, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime. Devem contar-se ainda como parte do castigo os terrores que precedem a execução e a perda das vantagens que o crime devia produzir. Toda severidade que ultrapasse os limites se torna supérflua e, por conseguinte, tirânica. É inconcebível que se opere tratamento desigual em um Estado de Direito dito Democrático, aplicando-se um Direito Penal de cidadãos e um Direito penal dos inimigos, submetendo estes últimos a regime diferenciado mais severo e ausentando direitos e garantias fundamentais a que toda legislação é subordinada.

De fato, constituem penas desproporcionais e desumanas as constantes nos incisos I a IV do art. 52 da Lei de Execução Penal, que submetem o indivíduo a tratamento degradante e draconiano ao dar primazia à prisão em isolamento celular absoluto, 22h por dia e com visitas mínimas. Severíssimas, ferem amplamente ao princípio da dignidade humana e não cumprem função social alguma, possuindo caráter de simples castigo desnecessário. Ainda em Beccaria (2001, p.31) bem observa-se: Os países e os séculos em que os suplícios mais atrozes foram postos em pratica, são também aqueles que se viram crimes mais horríveis. O mesmo espírito de ferocidade que ditava as leis de sangue ao legislador punha o punhal nas mãos do assassino e parricida [...]. Isto pode ser comprovado, no Brasil, através do ataque promovido, em 2006, pelo PCC, no estado de São Paulo, que fez eclodir rebeliões em 73 presídios espalhados pelo estado e até mesmo através dos recentes fatos noticiados em rede de televisão aberta, que mostraram o comando de ações criminosas de dentro do presídio por Fernandinho Beira-Mar (considerado um dos maiores traficantes de armas e drogas da América Latina), em pleno vigor do Regime Disciplinar Diferenciado, revelando a ineficácia do referido instituto para promover os objetivos a que foi criado: prover a segurança da sociedade e a ordem dentro dos presídios. Fica claro que o RDD falha em seus objetivos, e só consegue promover a discórdia e a revolta maior de quem for submetido à crueldade de tal regime. Sem a mínima preocupação com os Direitos Humanos suas penas não promovem a reinserção do indivíduo na sociedade, muito menos permitem o arrependimento do crime, mas, ao contrário, provocam maior descontentamento e raiva e, por conseguinte, promovem ainda mais a violência. 4.1 A Contradição com o Principio da Dignidade Humana

A dignidade da pessoa humana é um atributo ontológico do homem como integrante da espécie humana; um valor que faz o homem valer como pessoa e implica no surgimento de um núcleo indestrutível de prerrogativas que o Estado não pode deixar de reconhecer, sendo transformado em principio que fundamenta a legislação brasileira. Sobre o principio da dignidade da pessoa humana, Luiz Regis Prado (2011, p. 144 e 145) faz as seguintes considerações: [...] o Estado democrático de Direito e social deve consagrar e garantir o primado dos direitos fundamentais, abstendo-se de práticas a eles lesivas, como também propiciar condições para que sejam respeitados, inclusive com a eventual remoção de obstáculos à sua total realização. [...] Como viga mestra, fundamental e peculiar ao Estado democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana há de plasmar todo o ordenamento jurídico positivo como dado imanente e limite mínimo vital à intervenção jurídica. E, ainda: Daí por que toda lei que viole a dignidade da pessoa humana deve ser reputada como inconstitucional. [...] A força normativa desse principio supremo se esparge por toda a ordem jurídica e serve de alicerce aos demais princípios fundamentais. Deste excerto, depreende-se a importância do referido principio, base de todo ordenamento jurídico. Assim, como grifou-se, toda lei que o viole deve ser considerada contrária à própria Constituição. O Regime Disciplinar Diferenciado, portanto, revela-se inconstitucional, já que, com excesso de severidade, comina sanções desproporcionais e desumanas, ferindo amplamente a dignidade da pessoa humana e representando retrocesso intolerável, em pleno século XXI, em face ao longo processo histórico que levou à humanização do Direito Penal. 5 O RDD COMO ARTIFICIO ESTATAL DE MANIPULAÇÃO DA POPULAÇÃO

Analisando o contexto de seu surgimento, fica evidente que o Regime Disciplinar Diferenciado advém como resposta à violência e ao crime organizado que afligem tanto os presídios quanto a sociedade de maneira geral. Mais do que combater a violência, o regime surge para recobrar a imagem soberana de poder do estado frente ao crime, há muito perdida no âmago do povo, que clama por mais rigidez. Assim, sem o devido cuidado em sua elaboração, a norma se torna vaga, ineficaz e, muitas vezes, injusta. Neste sentido, ela só serve para satisfazer o desejo irracional da população por mais punição, combatendo a criminalidade apenas superficialmente. Aqui, perde-se o foco do que realmente é necessário e eficaz utilizando o dispositivo como pronto alívio ao invés de combater a fundo, em suas causas, as mazelas sociais. Muito propício, neste sentido, aos interesses do estado, mascara outro tipo de violência: a violência estatal, fonte maior de toda criminalidade, que atinge diariamente toda a sociedade, representada na falta de capacidade deste de promover um crescimento sustentável, com igual distribuição de renda e oportunidades, acesso universal à saúde, educação e lazer. 6 CONCLUSÃO Ante o exposto, não há conclusão mais clara que não seja considerar o Regime Disciplinar Diferenciado dispositivo inconstitucional. De fato, o referido instituto falhou em seus objetivos de manter a ordem e disciplina nos presídios e prover a segurança da sociedade, representando medida mal formulada, feita nitidamente para atender à pressão popular e recobrar a sensação de autoridade do estado diante uma realidade de expansão do direito penal, propagada pela constante cultura do medo. Incompatível com o Estado Democrático de Direito, olha com descaso para os Direitos Humanos, amplamente desrespeitados pela imposição de um direito

penal do inimigo, através do qual são cominadas, sem pudor, penas severas infundadas. Fere, em seus dispositivos, princípios basilares da legislação brasileira como o da proporcionalidade, da intervenção penal mínima, da taxatividade e da dignidade da pessoa humana, apresentando sanção de mero caráter punitivo e possibilitando injustiças através de interpretações equivocadas. Suas medidas mascaram o problema estatal de promover um desenvolvimento igualitário da sociedade e seu rigorismo desnecessário quase que acaba com qualquer esperança de uma recolocação ao convívio social de quem a ele for submetido, transformando os presídios em verdadeiras fábricas de delinquentes ainda piores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2003 FERREIRA, Carolina Arruda Costa. Inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2654, 7 out. 2010. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/17575>. Acesso em: 3 abr. 2011. GOMES, Luiz Flávio. Direito penal do inimigo (ou inimigos do direito penal). Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 nov. 2010. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.29698.>. Acesso em: 03 abr. 2011. JESUS, Damásio E. de. Direito penal do inimigo. Breves considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1653, 10 jan. 2008. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10836>. Acesso em: 3 abr. 2011. MAGALHÃES, Vlamir Costa. Breves notas sobre o regime disciplinar diferenciado. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1400, 2 maio 2007. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/9828>. Acesso em: 2 abr. 2011. PEQUENO, Luiz Atonio Abrantes. Regime disciplinar diferenciado e sua correlação com os princípios constitucionais penais da taxatividade e da humanidade. Fortaleza: Fundação Esdon Queiroz Universidade de Fortaleza, 2008. Disponível para download em:

<http://uol01.unifor.br/oul/obrabdtdsitetrazer.do?method=trazer&obracodigo=7839 6&programaCodigo=84&ns=true>. Acesso em: 5 abr. 2011 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral, arts. 1.º a 120. 10ª ed. rev., atual. e ampl.; São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011