A REPÚBLICA DOS ARGONAUTAS

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Transcrição:

ANNA FLORA A REPÚBLICA DOS ARGONAUTAS 2ª edição 12ª reimpressão Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil

Copy right 1998 by Anna Flora Ferraz de Camargo Coelho representada por AMS Agenciamento Artístico, Cultural e Literário Ltda. Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz s.a. Capa, mapas e grafites: Carlos Matuck Prepa ração: Denise Pegorim Re vi são técnica do mapa: Francisco Eduardo de Aguirra Revi são: Ana Maria Alvares Cláudia Cantarin Atualização ortográfica: 2 estúdio gráfico Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Flora, Anna A república dos argonautas / Anna Flora. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. isbn 978-85-7164-804-3 1. Literatura infantojuvenil i. Título. 98-3050 cdd-028.5 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5 2014 Todos os di reitos desta edição re servados à e di to ra schwarcz s.a. Rua Ban dei ra Pau lis ta, 702, cj. 32 04532-002 São Pau lo sp Tele fone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br

1 Eu mo ra va em um bair ro cha ma do Vila Ma da le na. Nos anos 70 al gu mas ruas ainda eram de terra, todas com nomes bo ni tos: Gi ras sol, Cór re go das Co ru jas, Har mo nia, Sim patia, Fi dal ga, Pur pu ri na, Cardeal Arcoverde, Ori gi nal. Nós an dá va mos pelo bair ro à von ta de; não era como hoje, que os pais ficam com medo quan do a gente sai so zi nho. Na es qui na da rua Fra di que Cou ti nho com a As picuel ta havia uma loja que ven dia de tudo: re vis tas, jor nais, ál buns de fi gu ri nha, vas sou ras, gibis. Quan do a turma ganha va me sa da, ia di re to para lá. Uma vez meu irmão comprou vinte e seis paraque dis tas de plás ti co. Mais em fren te, na rua Iná cio Pe rei ra da Rocha, tinha uma pin gue la e um rio zi nho. A gente atra ves sa va quando ia para a casa da dona Má bi le, que era cos tu rei ra e mora va na rua Padre João Gon çal ves. Esse pas seio era muito legal, por que nos dias de chuva a rua vi ra va uma lama só. Eu ado ra va o ter re no bal dio que fi ca va em fren te, cheio de pés de amora. Dona Má bi le fazia rou pas muito bem, mas eu sen tia pena dela. Tra ba lha va feito doida para pagar os es tu dos do filho, que mo ra va em Paris. Ela acei ta va qual quer servi ço, desde roupa de bebê até ves ti do de noiva. Eu acha- 15

va es tra nho uma cos tu rei ra tão pobre ter filho em Paris: por que ele não es tu da va aqui mesmo? Na rua Mou ra to Coe lho fi ca va uma loja de te ci dos. O dono era seu Jorge. Ele era na ri gu do e de olhos ver - des. O filho dele, o Jor gi nho, na ri gu do e de olhos azuis. O Jor gi nho, na Se ma na Santa, fazia papel de Cris to na pro cis são da igre ja do Cal vá rio. Eu ado ra va en trar na loja e sen tir o chei ro dos te ci dos novos. Mui tas vezes ia lá só para chei rar. Anos de pois, o ar ma ri nho foi trans for mado em um bar que ficou co nhe ci do como Bar da Terra. Outro lugar bár ba ro era o ar ma zém da dona Dirce, na rua Simão Álvares. A gente en fia va os bra ços nos sacos de arroz e fei jão... Uma de lí cia! Mesmo quan do eu já esta va com treze anos ainda sen tia von ta de de afun dar a mão nas len ti lhas, mas me con tro la va um pouco por que todos di ziam que eu já era mo ci nha. No en tan to, eu ainda gos ta va de mui tas coi sas de crian ça, como essa de brin car nos sacos da mer cea ria, colo car bar qui nho na en xur ra da, jogar ma mo na ao alvo, or - ga ni zar circo na rua... Ah! Tinha tam bém o seu Ma noel, que ven dia ba na na no ca mi nhão e anun cia va: Ba na nerô, ba na ne rô. Na es qui na da rua Mou ra to Coe lho com a As pi cuelta mo ra vam o Chico e o Paulo, que de se nha vam muito bem. Nós es tu dá va mos no mesmo co lé gio, o Ma cha do de Assis. Às vezes, sain do da es co la eu via não sei se o Chico ou o Paulo, e logo de pois, na pra ci nha, eu en con tra va não sei se o Paulo ou o Chico. Eles eram gê meos, e eu só come cei a dis tin gui-los por que à me di da que foram cres cendo um foi fi can do mais hip pie do que o outro. Na As pi cuel ta ainda havia um bar zão ou uma pa da - ria, não me lem bro mais, onde os ve lhi nhos jo ga vam do- 16

mi nó. Eles to ma vam conta do lugar como se fosse a casa deles. Até o dono mui tas vezes dei xa va de aten der fre guês para jogar uma par ti da. Na Vila mo ra vam vá rios ca sais por tu gue ses. Eles costu ma vam cons truir nos quin tais uma outra ca si nha para os fi lhos. Mais tarde, essas ca si nhas pas sa ram a ser alu gadas para os novos mo ra do res que foram che gan do. O bair ro pa re cia ce ná rio do in te rior. Nos sos vi zi nhos da di rei ta eram dona Na tá lia e seu An te nor. Os dois vira e mexe, no meio de qual quer con ver sa, fosse o as sun to que fosse, sem pre fa la vam do filho que es tu da va me di ci na. No lado es quer do mo ra va Maria Amé lia, que tinha uma san fo na, o rosto cheio de es pi nha e coisa mais care ta eu acha va es pe ra va ma ri do. Em fren te fi ca va a casa do seu Ângelo, que era barbei ro. Nas noi tes de Natal ele to ca va sax para os mo ra dores, saía dis tri buin do mú si ca de porta em porta. Seu filho es tu da va con ta bi li da de e ele acha va o má xi mo que o rapaz es ti ves se no Mac ken zie, um co lé gio par ti cu lar. Eu sen tia uma coisa meio es tra nha quan do seu Ângelo elo gia va a con ta bi li da de como uma pro fis são se gu ra, por que o elogio não com bi na va com o seu outro lado to ca dor de sax. Pena que mú si ca ele só fazia uma vez por ano! Eu não sabia bem por quê, mas aque las pes soas eram pa re ci das com as ruas da Vila: todas muito sim pá ti cas mas es trei ti nhas, para cada de se jo um pa ra le le pí pe do... Às vezes essas im pres sões me pa re ciam bes tei ra, coisa de crian ça. Só mais tarde, com Magro, é que per ce bi que minha in tui ção tinha razão de ser. Veja só: O Zé Luís, filho do seu Jar bas, es tu da va en ge nha ria mas gos ta va de tocar gui tar ra. O seu Jar bas fi ca va preo - cu pa do, onde já se viu en ge nhei ro gui tar ris ta? Aí o Zé 17

Luís só en saia va na casa do Edu Bolão. E a rua in tei ra comen ta va quan do a Ma ri se te des fi la va de mi nis saia, e eu acha va lindo, por que ela era ma ni cu re, usava umas unhonas ver me lhas, tinha as per nas bo ni tas e saía na es co la de samba da rua Fi dal ga. Os me ni nos e me ni nas da turma na maio ria pa reciam-se com os pais: Zé Re na to que ria se guir a pro fis são do avô, Maria Ca mi la ia fazer es co la nor mal, Pau li nho ia es co lher uma car rei ra que desse di nhei ro. Nada con tra quem gosta da mesma pro fis são do avô ou quem pre fi ra le cio nar. E ser bem-su ce di do todo mundo quer, não é? O lance é que eu sen tia uma coisa dentro de mim que não com bi na va com eles. Eu não sabia bem o que de se ja va, mas não era aque la vi di nha de tocar gui tar ra es con di do do pai. Era bom fazer parte da turma, mas às vezes aper ta va... Que nem da que la vez quan do a Ame li nha fez quinze anos e todas as me ni nas da rua acha ram a festa ma-ravi-lho-sa. Assim que en trei no salão da acm e vi mi nhas amigas ves ti das de bran co, cheias de ren di nhas, e aque les caras de far di nha e as flo res cor-de-rosa, e o tule rosa-choque e as velas com flor zi nhas, e os me ni nos suan do nos fra ques e a ma quia gem das me ni nas der re ten do no calor, eu disse para mim: Chiii... eu não vou me adap tar. Outra oca sião em que a coisa es qui si ta me bateu fundo foi esta: todas as me ni nas da turma usa vam ca be - lão. Na que le tempo a moda era ca be lo bem liso e compri do, de pre fe rên cia loiro. O meu era cas ta nho e crespo toda a vida. Então a gente pu xa va o ca be lo da es quer da para a di rei ta, punha bas tan te gram po, en ro la va na ca - be ça toda e essa tor tu ra cha ma va-se touca. E dor mia-se de touca, e na manhã se guin te sol ta va-se o ca be lo e ele es - 18

ta va duro e liso feito palha. Tinha umas lou cas que ali savam o ca be lo com ferro de pas sar roupa para ir mais rápi do, mas a esse ponto eu nunca che guei. Pois bem. Uma manhã eu tinha de sen tou ca do a touca, es ta va bela e for mo sa na aula de geo gra fia, quan do o ja po nês que sen ta va atrás de mim colou chi cle te na minha nuca e eu tive que cor tar o ca be lo bem cur ti nho. O que cho rei na cama você nem quei ra saber. Todos pas sa ram a me cha mar de João zi nho. Eu fin gia que não li ga va porque senão a turma ia pegar mais ainda no meu pé, mas por den tro me sen tia hor ro ro sa. Um dia fui vi si tar minha prima Lena. Ela era mais velha do que eu, com um ca be lão liso, e me disse uma coisa que me dei xou de quei xo caído: An te ci pan do a moda, hein? Não é moda eu disse fa zen do bico. Foi o Yos hi da. Eu acho me do nho. Ima gi na!... ela co men tou. Ca be lo cur ti nho e cres po vai ser a pró xi ma onda no verão, você não sabia? E me mos trou na re vis ta a foto de uma moça que usava o ca be lo muito mais curto do que o meu e era linda. Em cima da foto es ta va es cri ta uma frase que eu não enten di nada, mas que tinha uma força...: a bela atriz d o acossado ama o líder dos panteras negras. E a moça sen ta da numa moto abra ça va um ne grão boni to com cara brava e ja que ta de couro. O rosto dela era pa re ci do com a Vênus de bis cuit da cris ta lei ra da vovó, mas só pelo olhar a gente logo via que ela tam bém devia ser da que las que não se en cai xa vam na turma. Aí, por uns ins tan tes, a coisa es qui si ta que volta e meia eu sen tia não me pa re ceu tão es qui si ta assim... Então era isso... A be le za do aves so podia ser muito mais bela sem 19

pre ci sar dor mir de touca nem usar ma dei xas duras de Rapun zel. Como vocês podem ver, ca be lo tam bém era uma ques tão de ca be ça... Junto com esse lance da Bela do Acos sa do foram me acon te cen do ou tros. Dei para so nhar com uma lua que ten ta va atra ves sar o tron co oco de uma ár vo re. Aí vinha uma chuva e todos os ob je tos do meu quar to fi ca vam com chei ro de terra. Na que le mês de julho acor dei feliz da vida. Era início das fé rias, eu podia pas sear pelo bair ro o dia in tei ro e fazia um céu azul de papel cre pom. An dan do pelo quartei rão, tudo es ta va em seu de vi do lugar: as ár vo res, as casas, o sa pa tei ro na sa pa ta ria, dona Dirce no ar ma zém, seu Jorge no bal cão. Aos pou cos, veio vindo uma brisa suave que foi aumen tan do, au men tan do... fa zen do os ipês for ra rem as ruas de pé ta las ama re las. Du ran te dois dias o ar ficou impreg na do com per fu me de jas mim. Seu Ângelo olhou va - ga ro sa men te o céu, as ár vo res e co men tou: Go za do, você está sen tin do esse chei ro? Jas mim não dá no in ver no.... Na manhã se guin te, Magro che gou. Junto com ele vie ram Pedro, Mário, Vi cen te, Zeca e Car los. Alu ga ram a casa gran de da es qui na da Fi dal ga, pin ta ram cada pa re de de uma cor, de se nha ram um arco- -íris na porta, pre ga ram uma placa na en tra da: república dos argonautas. Nunca mais a Vila Ma da le na nem eu se ría mos as mes mas. 20