Interpretação da Ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori na Crítica da razão pura de Immanuel Kant 1

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Transcrição:

Interpretação da Ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori na Crítica da razão pura de Immanuel Kant 1 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens 2 Resumo: O texto pretende apresentar e esclarecer os conceitos elementares da Crítica da razão pura (1781) de Kant. 3 Nesta obra, o tópico Estética transcendental é tratado como a Ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori, e juntamente com o Sistema de todos os princípios do entendimento puro é, um dos seus principais pilares, dando sustentação a todo o seu arcabouço conceptual. Portanto, a explicação didática proposta aqui pretende deixar claro o quanto este tópico é importante à tarefa proposta pela Crítica da razão pura. Palavras-chave: Filosofia Moderna, Idealismo Alemão, Kant, Crítica da Razão Pura O propósito deste trabalho é estudar a Estética transcendental contida na Crítica da razão pura, de Immanuel Kant. Esse estudo deverá deter-se em interpretações de textos do autor, buscando através desse processo uma compreensão deste procedimento considerado, pelo autor, científico, que se refere ao que o mesmo chama de princípios da sensibilidade a priori. Cremos que, através dessas interpretações, poderemos tematizar os principais conceitos da filosofia de Kant, com isso, atingindo uma compreensão ampla de sua teoria do conhecimento. De maneira breve, iniciaremos nosso texto, abordando conceitos apresentados na Introdução de sua já citada Crítica da razão pura, para que, só então, munidos dessas noções preliminares, possamos adentrar 1 Texto publicado em Tempo da ciência Revista de ciências sociais e humanas. Toledo, CCHE, v.8, n.16, 2001. pp.35-44. 2 Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, Professor na Faculdade de Formação de Professores da UERJ e da Professor da Universidade Cândido Mendes/UCAM. Autor de Filosofia Primeira Estudos sobre Heidegger e outros autores. www.fgtec.com/studium 3 Immanuel Kant. Nasceu em Königsberg/Prússia Oriental em 1724. Autor de três obras críticas, a saber: Crítica da razão pura (1785), que investiga os limites da sensibilidade e da razão, a partir da formulação o que posso conhecer? ; a Crítica da razão prática (1788), que trata do problema o que devo fazer? investigando a esfera da moral, e, por fim, a Crítica da faculdade do juízo (1790), buscando responder a questão o que é lícito esperar?, em síntese aos dois movimentos anteriores. Kant ainda possui opúsculos sobre filosofia política muito revisitados ultimamente. Morreu em 1804, tendo influenciado decisivamente escolas filosóficas como o Idealismo Alemão. 1

ao tema, que objetivamos. Pretendemos tornar nítidas as principais teses dessa Estética transcendental, o que pretendem e para onde estas se endereçam. O pouco rigor do título do presente texto pode sugerir que o estudo da Estética transcendental dar-se-ia apartado do contexto da Crítica da razão pura. No entanto, isso não deve ocorrer, pois uma análise unicamente detida nessa parte da obra nos limitaria o raio de visão necessário para apreendermos o significado e propósito de uma Estética transcendental, bem como da obra na qual esta está contida. Afirmativa que justifica o primeiro movimento do texto que vamos desenvolver; consistindo em um apanhado geral dos objetos e procedimentos da obra citada. Comecemos perguntando o que significa uma Crítica da razão pura. Tal título nada sugere se o interpretarmos desde uma compreensão cotidiana dos termos que o compõem isto é, crítica, razão e puro. Kant entende por crítica não o movimento de um discurso que aponta insuficiências ou falhas, e que, por assim ser, viria possuir um caráter negativo ou depreciativo. Crítica, para Kant, é um exercício de delimitação de um objeto. No caso de que tratamos, tal objeto é a razão pura. Razão é, para a filosofia, um termo tradicional e que ganha diversas conotações ao longo de seu processo histórico. O entendimento que nosso autor tem de razão, aqui, é igualmente tradicional e trata-se de uma faculdade a qual todos os homens possuem e que permite que sejam capazes de entender, conhecer, julgar etc. 4 Entretanto, o acréscimo do temo puro torna essa compreensão de razão diversa do resto da tradição. O termo, que é um diferencial, mostra-se neste título como o adjetivo pura. Portanto, a razão a qual Kant se refere é razão pura. Ora, mas o que seria uma razão pura? O que puro quer dizer aqui? O que seria aqui puro? Uma coisa pura é aquela que se encontra livre de outra coisa que venha lhe interferir. Por exemplo, diz-se que a água é pura quando esta se encontra livre de impurezas, de matéria em suspensão; de outras substâncias diferentes de água. A razão é pura, pois não possui em si nada que não seja ela própria, nada que lhe tenha sido agregada em um momento posterior. Uma vez tendo analisado cada termo componente do título de nossa obra (estando agora munidos da terminologia requerida para tratar da questão), podemos tentar recompô-lo, buscando nova intelecção. Assim, Crítica da razão pura é uma delimitação 4 Provisoriamente esta conceituação nos é suficiente, estando sujeita, ainda no curso do texto, a receber aprofundamento. 2

dessa faculdade chamada razão em um estado de pureza, ou, ainda, é o exercício de descoberta dos limites dessa faculdade que permite ao homem conhecer, julgar etc; faculdade essa que, para Kant (1994), efetua determinadas funções à priori. Quando afirmamos que a razão é a faculdade que, dentre as outras, permite que o homem efetue conhecimentos, já estamos enfocando aquilo que, para o filósofo, está em questão nesse texto: o conhecimento. Uma breve retrospectiva das abordagens desse problema na história nos permitirá uma compreensão clara de como o conhecimento é, nesta primeira crítica, a questão para Kant. A filosofia de Kant floresce em uma época na qual as ciências efetuam grandes progressos. Todas essas transformações fazem que nosso autor indague o porquê da metafísica (considerada a mãe de todas as ciências e a melhor representante do saber) não demonstra avanços significativos, apenas limitando-se à execução de análises que não são mais que desdobramento de conceitos. Kant considera essa dogmática no sentido de que se pauta unicamente em conhecimentos a priori, isto é, em idéias que se dão apenas no entendimento e que não possuem comprovação empírica, i.e, a posteriori. Por isso, Kant propõe elevar a metafísica ao status de ciência, mas não de uma ciência qualquer, mas a ciência tida como nos padrões de seu tempo. Para tanto, pretende dotar a metafísica do rigor dos procedimentos das ciências matemáticas, importando-lhe o fundamento matemático do qual compartilha a geometria euclidiana e a física newtoniana. Deste modo também a metafísica poderia participar do ritmo de progresso das outras ciências. Mas o que o problema do conhecimento metafísico teria a ver com o significado de Crítica da razão pura, tal qual apresentamos acima, isto é, compreendida como exercício de delimitação da razão? A ligação mais imediata que poderíamos apontar, que se mostra evidente, é o fato de a razão ser a faculdade do conhecimento. Entretanto, essa pergunta tem o significado de maior amplitude e busca já delimitar a relação dos conhecimentos da razão com uma ciência de conceitos puros chamada metafísica, mais especificamente em tipos específicos de conhecimentos da razão, os conhecimentos sintéticos a priori : Ora, o verdadeiro problema da razão pura está contido na seguinte pergunta: Como são possíveis os juízos sintéticos a priori? O fato da metafísica até hoje se ter mantido em estado tão vacilante entre incertezas e contradições é simplesmente 3

devido a não se ter pensado mais cedo neste problema, nem talvez mesmo na distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos (KANT, 1994, p. 49). A presente citação requisita uma série de esclarecimentos quanto a novos conceitos que aqui foram introduzidos e também advertência sobre essa nova terminologia utilizada. Essas explicações aparecerão como subquestões ao passo que tratamos de questões de natureza mais ampla. Assim, ao começarmos pela pergunta o que são juízos sintéticos a priori?, vemo-nos, preliminarmente, no dever de conceituar o que para Kant é juízo. O termo juízo, em Kant, possui sentido específico, referindo-se a uma faculdade de julgar. Afirma-se como um conhecimento dos sentimentos do prazer e desprazer, aplica-se, em geral, à arte. 5 Entretanto, quando, no contexto da primeira crítica, vemos o termo juízo aplicado, este pode ser compreendido como referente ao entendimento; logo, voltados ao conhecimento da natureza e à conformidade a suas leis. Assim, juízo no citado livro, diz respeito a um modo de conhecer, de exercitar o entendimento num ato de conhecimento, de pensar um objeto. O termo sintético diz respeito a um tipo de conhecimento. Para Kant, os conhecimentos podem possuir forma sintética ou analítica. Como o próprio nome já diz, sintético é aquele que faz síntese, ou seja, aquele que no seu contexto efetua uma ação de síntese entre significados. Explicaremos: quando dizemos a bola é amarela, isso constitui um conhecimento sintético, pois amarelo não é um predicado inerente ao conceito de bola. Assim, diz-se sintético, pois o conceito de cor amarela foi acrescentado ao conceito de bola. Essa definição de conhecimento sintético é oposta ao de conhecimento analítico. Analítico diz respeito a um processo de análise donde nenhum conceito novo é obtido. Nesse modo de conhecimento, vigora um desdobramento daquilo que, inicialmente, se tinha. Assim, quando afirmamos a bola é esférica, esfericidade não constitui um novo elemento extraído através da síntese, mas um mero desdobramento analítico do conceito, pois, afinal, esfericidade já pertence ao conceito de bola. O termo, a priori, dita a determinação metafísica do conhecimento. Segundo esta designação, os conhecimentos podem ser a priori ou a posteriori. Em uma palavra, a posteriori é todo conhecimento cujo conteúdo se pode adquirir através do 5 Kant dedica a última de suas três críticas à faculdade do julgar, intitulada: Crítica da faculdade do juízo (1790). 4

contato empírico, pela experiência. A priori é todo conhecimento que independe da experiência (emperia), são conhecimentos puros. Kant defende a existência desses conhecimentos, afirmando que eles são possíveis e demonstráveis pelas matemáticas. Assim, mesmo que não possuamos materialmente um triângulo (que nos serviria para verificarmos conceitos pela experiência), é possível conhecer, aprioristicamente, que a soma de seus ângulos internos é sempre 180 graus. Temos agora subsídios para responder à pergunta anteriormente formulada: O que são os juízos sintéticos a priori? São proposições que estendem o conhecimento através da síntese e que podem ser operados sem lançar mão da experiência. Para Kant, esse é o único modo de conhecimento real e capaz de promover o progresso da metafísica enquanto ciência. Esse conhecimento promove juízos válidos e aplicáveis a toda natureza, dado seu caráter apodíctico, isto é, universal e necessário. Kant vai receber diversas críticas sobre esse modo de conhecimento que afirma ser o ideal. A maioria delas pergunta como seriam possíveis esses juízos sintéticos a priori? Isto quer significar: como é possível um tipo de conhecimento extensivo, algo que pressupõe a síntese com o empírico, e, no entanto, este ser estritamente puro? A resposta à pergunta como são possíveis conhecimentos sintéticos a priori? Passa a ser um encargo para Kant e da sustentação dessa premissa depende toda sua teoria do conhecimento. 6 Como resposta à indagação parágrafos acima, respondemos: é preciso demonstrar que a razão pode executar conhecimentos sintéticos a priori e essa comprovação faz-se através da Crítica da razão pura. A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência para qual a crítica da razão pura deverá esboçar arquitetonicamente o plano total, isto é, a partir de princípios, com plena garantia de perfeição e solidez de todas as partes que constituem esse edifício (é o sistema de todos os princípios da razão pura) (...) À crítica da razão pura pertence, pois, tudo o que constitui a filosofia transcendental; é a idéia perfeita da filosofia transcendental, mas não é ainda essa mesma ciência, porque só avança na análise até onde o exige e apreciação completa do conhecimento sintético a priori (...) Por isso, a filosofia transcendental outra coisa não é que uma filosofia da razão pura simplesmente especulativa (KANT, 1994, p. 55). 6 Aqui fica clara a ligação entre a pretensão de Kant elaborar uma citada metafísica futura e a Crítica da razão pura. 5

Se, até aqui, não se podia ver a diferença entre Crítica da razão pura e isso que Kant chama de metafísica ou filosofia transcendental, essa citação vem grifar tal diferença. Esta Crítica esboça seu plano geral. Isto é, apresenta princípios e aponta como deveria edificar-se uma filosofia transcendental. Assim, apresenta-se como um organon capaz de gerar tal sistema como uma propedêutica que, através da crítica das fontes e limites da razão pura, pergunta como são possíveis os juízos sintéticos a priori. A apresentação dos princípios utilizados na Primeira Crítica dá-se na parte dessa obra chamada Estética transcendental. Ao contrário do que se pode pensar, estética aqui não quer dizer ciência especulativa do belo nas artes. Kant (1994) adverte em nota que o significado prezado é justamente o que os alemães ainda utilizam, não concernente somente ao domínio do belo, mas como condizente à compreensão grega de aisthesis, isto é, de sentido, sensação. Esse significado é muito próximo ao que Kant pretende ao abordar em investigação as estruturas do sujeito do conhecimento. Assim, o termo estética, aqui, oscilará entre a compreensão da estrutura transcendental e psicológica do sujeito. Mas o que poderíamos entender por transcendental? Diz-se transcendental tudo quanto concerne à estrutura subjetiva desse que conhece, estrutura que adiantamos se dá aprioristicamente e que será abordada de maneira pormenorizada a seguir. Kant afirma que é pela intuição que os homens conhecem. Ora, quem conhece, conhece sempre algo, que, necessariamente, passa a ser objeto desse conhecimento. Entretanto, esse possível objeto de conhecimento tem que ser manifesto em fenômeno. Como fenômeno, este objeto possível afeta o sujeito. O sujeito recebe essa afetação; segundo Kant, essa receptividade só é possível graças à sensibilidade. O produto dessa relação da afetação do objeto é a intuição, que apreendida pelo espírito ou entendimento do sujeito, gera a conceituação e a conseqüente consumação da coisa ou objeto possível em objeto de conhecimento. A distinção entre objeto possível e objeto de conhecimento é problemática, mas pode muito bem ser remediada com a respectiva adoção dos termos coisa e objeto (assim, coisa é todo objeto indeterminado, seja ela em si ou no fenômeno). Para o autor, coisa (Ding) é tudo aquilo que há e que pode ser apreendido em uma relação mais imediata no fenômeno; ao contrário, coisa em si (Ding an sich) é o aspecto da coisa que permanece velado ao fenômeno. Explicaremos: a coisa que chega ao sujeito através do fenômeno, segundo Kant, não é como ela realmente é. A 6

coisa em si é o noumenon. Este não é o desconhecido, não é algo que hoje se ignora e amanhã poderá ser descoberto; trata-se do icognoscível, aquilo que, pelo menos ao modo de conhecimento humano, é impossível. Com base nisso apresentamos alguns enunciados: a) As coisas intuídas não são em si mesmas tais como intuímos, nem suas relações em si são como nos aparecem. b) A natureza dos objetos em si nos é icognoscível, independentemente de nossa receptividade e sensibilidade. c) A intuição, mesmo elevada a seu mais alto grau de clareza, não constitui sequer uma aproximação da natureza do objeto em si. Como já deixamos transparecer com a explicação da coisa em si, temos que o objeto é o produto da relação da coisa que se mostra no fenômeno da intuição do sujeito. A comprovação disso dá-se através da própria etimologia donde deriva o termo objeto. Primeiramente, no latim objectum, que indica, literalmente, um jogado (jectum) ao lado (ob); depois, na língua natal do nosso filósofo gegenstand, cuja tradução pode ser interpretada como aquilo que está em posição contrária, ou que vem ao encontro. Esse segundo termo resguarda um sentido duplo, resguarda a compreensão de uma coisa contraposta a um sujeito, donde se deduz que objeto é, pois, produto desse encontro. 7 Kant dá o nome de sensação ao efeito de um objeto sobre a nossa capacidade representativa. Tal sensação é sempre fruto de uma intuição empírica, isto é, desse tipo de intuição de que até agora tratamos e que depende da afetação da coisa (objeto indeterminado) manifesta no fenômeno. Dá-se o nome de matéria ao que, no fenômeno correspondente à sensação, assim, matéria, é o conteúdo do fenômeno ao passo que a forma desse fenômeno é o que possibilita este ser ordenado, segundo relações. 8 Vimos que as sensações são intuições empíricas, contudo, nem todas as intuições são desse gênero. Kant apresenta as intuições puras como formas a priori da sensibilidade, isto é, encontram-se no espírito absolutamente a priori como representações que independem das sensações. Baseando-se nessas considerações, o autor define sua Estética 7 Existem controvérsias quanto à interpretação desse fenômeno em Kant. Para alguns autores, por exemplo, Arent (1992), afirmam que tudo aquilo quanto se apreende pela intuição é objeto, Heidegger (1987), por sua vez, afirma que, para que a coisa apreendida seja objeto, é necessário que este seja produto de um ato de conhecimento, no qual deve estar nítida uma relação de causa e efeito. Heidegger, ao interpretar Kant, exemplifica tal proposição do seguinte modo: o sol não é um objeto quando dele apenas afirmamos o sol é. Sol passa a ser um objeto quando propomos o sol aquece o solo, isso configuraria um conhecimento no qual sol é objeto. 8 Tema que não trataremos aqui. 7

transcendental como Ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori, que constitui toda a primeira parte da teoria transcendental dos elementos, sendo seguida pela Lógica transcendental (Ciência que contêm os princípios do pensamento puro). Mas o que significa tudo isso? O que pretende uma ciência desse gênero? Significa que a Estética transcendental é a ciência que estuda as estruturas transcendentais que permitem que toda representação real ocorra. Essas estruturas são representadas a priori desde as quais toda a realidade se organiza. Uma definição de espaço deve considerar que os cinco sentidos externos permitam que tenhamos a representação de objetos exteriores a nós e situados no espaço. Neste sentido, configuram-se a grandeza e relação recíproca. Sentidos internos permitem a nossa própria intuição enquanto espírito e também seu estado interno. Assim, sentidos interno e externo permitem a representação dos objetos e sua situação frente a nós e ao espaço. Nessa definição, o filósofo alemão ainda pergunta se o tempo pode ser intuído exteriormente ou se o espaço pode ser intuído como algo interior. E, na seqüência, se espaço e tempo são entes reais ou apenas determinações ou relações entre coisas. Essas indagações possuem o intuito de preparar o solo para uma devida exposição de espaço, considerada apresentação clara do que pertence a um conceito; exposição que é metafísica e que, segundo Kant, é aquela que contém o conceito que é dado a priori. Reunimos aqui, de maneira meramente expositiva, quatro pontos que somados esboçariam uma definição metafísica de espaço, como: 1. não um conceito empírico. Logo, a representação de espaço não pode ser extraída pela experiência das relações dos fenômenos externos, pelo contrário, esta experiência só é possível, antes de mais, mediante essa representação; 2. uma representação absolutamente necessária (a priori) que fundamenta todas as intuições externas. Assim, não só se pode haver qualquer representação sem que haja espaço. O espaço acaba por ser considerado condição de possibilidade dos fenômenos, não uma determinação que dependa destes; é uma representação a priori que fundamenta necessariamente todos os fenômenos externos; 3. uma intuição pura, porque só podemos ter a representação de um espaço único; quando falamos de vários espaços, referimo-nos a partes de um só e mesmo espaço, é essencialmente uno e a diversidade que nele se encontra 8

trata-se de limitações. Kant afirma, com base nisso, que se pode concluir que, em relação ao espaço, o fundamento de todos os seus conceitos é uma intuição a priori, isto é, não-empírica. Deste modo, o fundamento matemático da filosofia de Kant (que pode ser demonstrado através da lida com figuras geométricas, como vimos no exemplo do triângulo ainda neste texto) não derivam de conceitos gerais, mas de uma intuição a priori como uma certeza apodíctica; 4. representado por uma grandeza infinitamente dada; mesmo que pensemos em diversas representações possíveis, nenhum desses conceitos encerra em si a infinidade das representações. No espaço, todas as partes acontecem simultaneamente no espaço infinito. Isso confirma que a representação a priori não é um conceito. Uma exposição transcendental de espaço trata da exposição de um princípio a partir do qual se pode entender a possibilidade de outros conhecimentos sintéticos a priori (assim transcendental nada tem a ver com transcendente, mas diz respeito àqueles princípios que partem do sujeito e que contribuem constitutivamente para a possibilidade da experiência). Assim, para que, de fato, haja essa exposição, é preciso que a) deste princípio decorram conhecimentos reconhecidamente sintéticos a priori; b) esses conhecimentos sejam possíveis pressupondo um modo de explicação desse princípio. Vimos que o espaço é um princípio; agora temos que este tem que ser originalmente uma intuição, porque de um simples conceito não se podem extrair proposições que ultrapassem o conceito, o que acontece nas ciências que determinam a priori as propriedades de espaço (como faz a geometria). Kant afirma (1994): Com efeito, as proposições geométricas são todas apodícticas, isto é, implica a consciência de sua necessidade como por exemplo: o espaço tem somente três dimensões. Isso resulta numa afirmação que permite compreender a possibilidade da geometria como conhecimento sintético a priori. Quando nosso autor se ocupa da tematização do tempo, vemos que este repete métodos e alguns argumentos similares aos utilizados na tematização do espaço. Assim, ele afirma as seguintes teses: 9

1. Tempo não é um conceito empírico que derive de uma experiência qualquer, pois nem a simultaneidade nem a sucessão surgiriam na percepção se a representação do tempo não fosse o seu fundamento a priori. 2. O tempo é o fundamento de todas as intuições. Somente nela é possível toda a realidade dos fenômenos. Assim, como no espaço, podemos prescindir dos fenômenos mas nunca do tempo, pois há o tempo sem o fenômeno mas nunca o contrário. 3. O tempo é unidimensional e, embora vejamos tempos diferentes, esses não são simultâneos, mas sucessivos. O que faz que o tempo seja uno no instante. 4. Tempo não é um conceito discursivo ou universal; trata-se de uma forma pura da intuição sensível. 5. O tempo é originariamente representado como ilimitado; isso o caracteriza em sua infinitude, compreendendo nela a infinita sucessão de instantes que se mostram como grandezas determinadas de tempo. O saldo dessas definições dá-se através do entrecruzamento dessas teses alusivas ao espaço e tempo. Tal saldo é apresentado aqui como conclusão de nosso trabalho. O espaço e tempo são formas puras deste modo de perceber; por isso, podem ser designados por intuições puras, como afirmativa de Kant: Tomados conjuntamente são formas de toda a intuição sensível, possibilitando assim proposições sintéticas a priori (KANT, 1994). Tal afirmativa é reiterada com a passagem que se segue: É, pois, indubitavelmente certo e não apenas possível ou verossímil que o espaço e o tempo enquanto condições necessárias de toda a experiência (externa e interna) são apenas condições subjetivas da nossa intuição(...) (KANT, 1994). Uma interpretação dessas breves, mas substanciais passagens deve fazer lembrar que Kant entende por formas puras da intuição sensível as estruturas da subjetividade, que, quando apreende a realidade, já o faz desde representações espaço temporais. Isto é, realidade em seu fenômeno já é pelo sujeito sempre apreendida na forma tradicional do espaço e no movimento ilimitado do tempo. Kant afirma que essas estruturas possibilitam proposições sintéticas a priori e reconhece que a tematização dessas estruturas durante a Estética transcendental fornece subsídios para a resposta à pergunta Como são possíveis os juízos sintéticos a priori? Assim, a resposta já se esboça no que afirma que os juízos sintéticos a priori só são possíveis graças às estruturas do sujeito (necessárias e 10

universais dessas forma a priori do entendimento indispensáveis ao conhecer), que permitem o entendimento e as intuições, que, por sua vez, permitem ao entendimento a criação de novos conceitos verificáveis posteriormente através da experiência. Bibliografia: ARENDT, H. A vida segundo o espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Antônio Abranches et all. Rio de Janeiro: Relume Dumará/UFRJ, 1992. CORBISIER, R. Introdução à filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. HEIDEGGER, M. Interprétation phénomenológique de la Critique de la Raison Pure de Kant. Paris: Gallimard, 1977.. Kant et le problème de la métaphysique. Trad. Alphonse de Waelhens. Paris: Gallimard, 1953.. O que é uma coisa? Trad. Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 1987. KANT, I. Crítica da razão pura. Trad. Manuel Pinto dos Santos et all. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.. Kritik der reinen Vernunft, Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1976. LEBRUN, G. Aprofundamento da Dissertação de 1770 na Crítica da razão pura. In Cadernos da UNB. (org). Manfredo Araújo de Oliveira et all. Brasília: UNB, 1991. PATON, H. J. The categorical imperative, a study in Kant s moral philosophy. 3ªed. London: Hutchinson & Co, 1958. 11