Formas da Apresentação: da exposição à auto-apresentação como arte Notas introdutórias

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Transcrição:

Formas da Apresentação: da exposição à auto-apresentação como arte Notas introdutórias Helio Custodio Fervenza Artista plástico, concluiu doutorado em Artes Plásticas na Université de Paris I, Panthéon-Sorbonne, em 1995. É professor no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS e pesquisador do CNPq. Coordena o grupo de pesquisa Veículos da Arte. É membro da ANPAP. Resumo: Entre os aspectos que produzem a apresentação de um objeto, ação ou situação como arte, encontram-se também concepções indicando que esse objeto, ação ou situação, pode ser arte ou de que aí está ocorrendo arte. A exposição e a auto-apresentação constituiriam dois aspectos da apresentação no campo da arte contemporânea e, ao mesmo tempo, indicariam limites da atuação desse campo e das concepções da arte aí relacionadas. Palavras-chaves: formas da apresentação; exposição; auto-apresentação; arte. Title: Forms of Presentation: from exhibition to self-presentation as art Introductory notes. Abstract: Among the aspects that produce the presentation of an object, action or situation as art, one also finds concepts indicating that this object, action or situation may be art or that art is occurring in that place. Exhibition and auto-presentation constitute two aspects of presentation in the field of contemporary art and, simultaneously, indicate limits in this field for actuation and its related art concepts. Keywords: forms of presentation; exhibition; self-presentation; art. Para situarmos mais precisamente a problemática que será desenvolvida neste texto, é importante analisarmos algumas noções e suas implicações, sobretudo no que diz respeito ao espaço de apresentação da arte. Nas situações confrontadas, a maneira como a produção artística é percebida está relacionada ou é afetada pelo contexto de sua apresentação, pelas diferentes concepções de arte e pelos discursos aí inscritos. Verificamos que foi mais precisamente na inter-relação da nossa produção artística com esse espaço que as atuais questões emergem, bem como do estudo de seus componentes formadores e as relações aí existentes onde se articula nossa prática artística. i Numa primeira abordagem no campo das artes plásticas, o espaço que aparece como o mais imediatamente relacionado à apresentação é o espaço de exposição. Aquele que se estabelece com maior ênfase nesse sentido, sendo, portanto, o de maior referência. Este espaço surge da apresentação de produções artísticas em museus, galerias, bienais, feiras de arte, ou em 1383

qualquer lugar artístico assim definido. Mas de onde surge e qual a importância desse espaço de exposição para as produções artísticas? Estas não seriam imediata e simplesmente visíveis? René Vinçon, autor do livro Artifícios de exposição, nos introduz ao problema, talvez mais do que à resposta: O princípio de base é o seguinte: uma obra não é visível por ela mesma, como se isso pudesse ocorrer pela força natural das coisas (que, como as coisas que se fazem sozinhas, possuem um ar de magia), e ela não é, sobretudo, inteiramente visível no sentido em que nós não saberíamos pretender tudo (fazer), ver ou perceber em uma obra, qualquer que seja a transparência de seu modo de apresentação. ii É importante esclarecermos também que o espaço de exposição não é produzido simplesmente em decorrência da presença física de uma obra ou produção artística no lugar constituído pelo museu ou galeria. Ele se estabelece no cruzamento de toda uma série de dispositivos que operam sobre a visualidade. Entraria em ação na percepção dessas produções o que o filósofo Jean-François Lyotard chama os operadores da visão de arte, iii elementos que enunciam as condições dessa visualidade. São eles: a transmissão (a exposição) de uma mensagem (a obra de arte), por um expedidor (o artista, o curador, o galerista) para um destinatário (o público, o crítico, o colecionador, o comprador) a propósito de algo (referente), utilizando um feixe de canais (as formas, as cores, os suportes, os lugares, os paradigmas culturais...), e finalmente, com um efeito (efeito de arte). iv Algumas dessas posições são intercambiáveis, de modo que produtores e receptores podem ocupar as mesmas posições em diferentes momentos sem que, por vezes, o conjunto seja de fato transformado em suas relações constituintes. Nesse sentido, o artista pode desempenhar o papel de curador, o crítico pode agir como um agente de vendas e assim por diante. v Salientamos que, nos diferentes modos de agir da arte contemporânea, a apresentação de uma produção, como produção artística, não necessita mais ficar restrita a sua exposição num lugar físico determinado, como um museu ou galeria. Uma palestra, por exemplo, pode constituir-se numa apresentação e agregar valor simbólico ou agir sobre a visualidade. Embora possa não ser designado explicitamente como um ato artístico, ou não querer sê-lo, uma palestra ou uma publicação podem produzir um efeito de arte, agir no sentido e 1384

na concepção de uma produção, ser um desdobramento de fato anterior, mesmo que o ocorrido não esteja mais visível ou acessível, a não ser, talvez, por sua documentação. Mas pode ocorrer também fato inverso. Como a informação é um dos produtos mais valorizados, ocorre muitas vezes a antecipação do signo sobre a coisa: antes de ter sido exposta, a obra do pintor, ou mais precisamente seu signo, já circula nos circuitos da rede. vi Conseqüentemente entrariam no olhar sobre certa produção, como produção de arte, operadores que não se limitam àquilo que é exposto, mas incluem, sobretudo no caso da exposição, tanto o trabalho de curadoria, de arquitetura ou montagem, o catálogo de exposição, o convite, o mediador durante a visita, as etiquetas nas paredes, a publicidade ou o marketing. Inclui também todo e qualquer tipo de discurso produzido em torno ou sobre a exposição, como entrevistas, documentários, notas de imprensa, trabalhos de formação ou projetos educacionais. O espaço de exposição pode ser indicado não apenas pelas paredes ou pelas molduras e bases físicas das galerias e museus, mas, sobretudo, pelas molduras culturais, sociais e econômicas. Na coletânea de textos intitulada A arte da exposição, que reúne reflexões e documentações sobre trinta exposições consideradas exemplares no século XX, podemos ler logo na introdução: Desde que as exposições existem elas são criticadas. Esse meio de comunicação artística o mais antigo existente é, sem contestação, aquele que conhece o maior sucesso, e que paradoxalmente permanece suspeito, ao mesmo tempo, face aos artistas, aos críticos e ao público. vii Ao longo das páginas do livro citado anteriormente, podemos acompanhar a série de mudanças ocorridas na arte em relação ao uso e ao estatuto desse espaço, sua incorporação pelas práticas artísticas ou os impasses produzidos diante delas. O que essas práticas nos mostram é que a exposição e seu espaço não são neutros, nem dizem respeito a aspectos puramente técnicos, nem são um simples espaço de recepção de objetos autônomos por si sós detentores de valor artístico sem relação com esse espaço. O que essas práticas nos mostram é que a exposição é um meio, conotado histórica, ideológica e socialmente. A arte da exposição é a percepção da intensidade de atuação desse meio na visualidade e na concepção da arte. 1385

Marcel Duchamp com seus ready-mades realizou, de certa forma, a demonstração desse funcionamento: Em 1913, Duchamp apresenta os primeiros ready-mades, Roda de bicicleta; anos depois, em 1917, Fonte, no Salão dos Independentes de Nova York. Ele deixou o terreno estético propriamente dito, o feito à mão. Não mais a habilidade, não mais o estilo apenas signos, ou seja, um sistema de indicadores que delimitam os locais. Expondo objetos prontos, já existentes e em geral utilizados na vida cotidiana, como a bicicleta ou o mictório batizado de fontaine [fonte], ele faz notar que apenas o lugar de exposição torna esses objetos obras de arte. É ele que dá o valor estético de um objeto, por menos estético que seja. É justamente o continente que concede o peso artístico: galeria, salão, museu. Ou, ainda, textos, jornais, notas, publicações.... viii Nas atuais circunstâncias, tanto os operadores da visão de arte, dos quais nos fala Lyotard, quanto os sistemas de indicadores ou de signos funcionando em rede, citados por Cauquelin, adquiriram uma importância excepcional. Mas, o espaço de exposição não continuaria a ser fundamental, sendo o modelo a partir do qual surgem e se articulam esses operadores e redes? Assim, não poderíamos considerar o espaço de exposição como paradigma da apresentação e da recepção nas artes plásticas? Ao se configurar esse espaço, não seria produzida também uma concepção da arte? Dito de outro modo, as concepções da arte não estariam diretamente relacionadas às suas formas de apresentação? Por outro lado, quando observamos o campo artístico, bem como os estudos realizados a respeito da exposição, deparamonos com alguns problemas. Um deles é o fato de que tal como ela é praticada nas últimas décadas, através dos grandes eventos, com uma ênfase nos dispositivos mediadores, discursivos e publicitários que a produzem, a exposição colocaria entraves às possibilidades críticas e às inquietações da arte: convencionalismo, domesticação, informação e inteligibilidade a qualquer custo, insensibilidade... ix. Sendo a exposição uma forma de apresentação, por que ela seria a priori identificada como a apresentação de uma produção artística? Seriam os limites do espaço expositivo, ao mesmo tempo, os limites da apresentação da arte e de sua concepção? No que diz respeito ainda ao espaço de exposição, o historiador da arte Jean-Marc Poinsot estabelece uma diferença significativa entre o local de 1386

acolhida da obra, quadro social particular e o espaço que a obra precisa para existir (este espaço sendo considerado como um componente axiomático da obra). x Entre os trabalhos analisados por Poinsot, encontra-se o do artista Daniel Buren. A preocupação com o lugar onde ocorre a apresentação do trabalho artístico é central em sua produção realizada a partir de 1965. Um termo criado por ele para definir seu trabalho é o de In Situ, o qual designa uma interrelação necessária, obrigatória e ativa entre esse trabalho e o lugar no qual se encontra. xi Termos como os de Instalação, Site-specific ou In Situ definem produções artísticas que se constituem em relação ao espaço expositivo, possibilitando problematizar o seu quadro institucional, cultural ou social. A dimensão crítica de práticas como a do In Situ, ou de artistas como Marcel Broodthaers, residiria na capacidade de interrogar o espaço de exposição de museus, galerias e outros lugares artísticos, revelando sua constituição e seu contexto como determinantes nas condições de existência de certo tipo de visualidade. Seria importante neste momento precisarmos também o significado de apresentação. Apresentar relaciona-se com expor no sentido de pôr diante, à vista, ou na presença de; oferecer ou expor à vista; mostrar; expor.... xii René Passeron também nos diz que: A apresentação é ao mesmo tempo: um fenômeno, que tem lugar hic et nunc, uma mira (aquela do fenômeno mesmo, que desejamos instaurar sobre o horizonte de intenções mais longínquas) e uma conduta, comportando um saber fazer (savoir-faire), sua arte própria. xiii Mas qual seria o atributo específico da apresentação em arte? Passeron nos responde: A arte é então esta parte do apresentar que apresenta o apresentar. xiv Entretanto, sabemos também que a apresentação não se restringe ao espaço de exposição: É necessário esclarecer a esse respeito que se toda exposição implica uma apresentação (como ação artificial), toda apresentação não é uma exposição no sentido moderno do termo. xv Assim, exposição e apresentação possuem diferenças em seus atributos e abrangências semânticas. A apresentação sendo uma noção mais ampla que a exposição, podendo dessa forma englobá-la. O que por outro lado, dependendo dos 1387

trabalhos e das circunstâncias, permite que possa ocorrer uma separação entre as duas noções: uma apresentação em arte pode não ser constituída pela exposição. Para nós, o espaço de apresentação é aquele que surge no entrecruzamento dos movimentos orientados a partir dos gestos e dos fenômenos de indicar e fazer ver. Ele se instaura no entrecruzamento das diferentes operações, gestos e sistemas de indicação. Sua referência imediata é o campo artístico, mas sua manifestação abarca todas as situações e atividades em que ele medeia, uma relação na qual é enfatizada a possibilidade de certo olhar, no sentido amplo do termo. A apresentação é uma indicação que produz como uma ênfase, um relevo no olhar. Mas a espacialidade, assim criada, não seria uma espacialidade difusa, mais dificilmente localizável, mais disseminada? Certos aspectos sociais e culturais agiriam também como operadores sobre o espaço de apresentação? Seriam produzidas concepções da arte nessas operações? E, no caso afirmativo, que tipos ou formas de arte? No caso do espaço de exposição os operadores aí atuantes parecem ser mais facilmente detectáveis. Mas, o que ocorre com a apresentação de uma produção fora dos circuitos da arte? Em que circunstâncias isso pode ser considerado ou passa a se tornar arte? Essas perguntas surgem também impulsionadas por produções e atividades artísticas onde podemos identificar a utilização de outras formas de apresentação que não a de situações expositivas. Penso especificamente aqui nos Events (Eventos), de George Brecht, xvi mas também em muitos outros artistas e produções relacionados ao Fluxus. Penso em Lygia Clark e em sua proposta de execução do Caminhando, ou em Allan Kaprow em suas atividades e suas idéias sobre uma arte que se parece com a vida. Penso também em propostas como Intervenções urbanas / exercícios para a cidade de Paulo Bruscky. Essas produções e atividades extravasam constantemente as práticas artísticas tradicionais ou o espaço de uma concepção circunscrita da arte. Elas se diferenciam de outras no sentido em que não visam necessariamente a uma apresentação no sentido de exposição (observador externo) e, por outro lado, enfatizavam os processos de realização, relação e envolvimento como criação e vivência artística, mais do que a produção de objetos para exposição (para o 1388

olhar do público, do observador). Outro dado importante, presente nessas produções, é o uso de conhecimentos, situações ou materiais não pertencentes em princípio ao campo da arte, às suas práticas ou às suas tradições, o que traz questões sobre a natureza da arte e seus limites. Elas podem ocorrer totalmente fora das molduras ou dos quadros sociais estabelecidos pelos circuitos artísticos. Elas são propositivas no sentido em que não há um objeto artístico pronto para ser apreciado, mas antes um processo. A frase de Duchamp aqueles que olham são os que fazem os quadros xvii parece estar de alguma maneira ainda relacionada a uma separação entre produtor e observador. Em outras palavras, existe alguém que produz um objeto e alguém que produz um certo olhar sobre esse objeto apresentado. Ela supõe, num certo sentido, uma noção de público como no teatro ou no cinema. Nas propostas e nas ações citadas anteriormente pode não haver ninguém assistindo (elas podem ser realizadas individualmente ou a sós, por exemplo). Dessa forma, ocorre aqui o que chamo de auto-apresentação. xviii Aquele que toma parte nesse processo inclui-se como alguém que produz uma experiência de fazer e abre uma experiência de sentir e pensar, ou pensar, sentir, fazer, olhar: os termos encontrando-se inter-relacionados e não necessariamente numa ordem estabelecida. Na auto-apresentação haveria uma inter-relação entre sentir e fazer e a compreensão disso como ato artístico. A possibilidade do olhar / sentir seria inseparável do fazer o objeto desse olhar, ou do fazer a experiência do fazer para esse olhar. Ainda em relação a Marcel Duchamp, seria possível detectar certas diferenças em suas declarações e escritos sobre o processo de criação, sobre o olhar e sobre o ato de expor (apresentação), que nos leva a pensar noutras possibilidades de abordagem da noção de auto-apresentação. Assim, em relação a esses três aspectos, é bem conhecida a frase de Duchamp de que aqueles que olham são os que fazem os quadros. xix Essa frase, assim como o texto O processo criativo xx no qual ela se insere, contém aspectos bastante enfatizados, e que são seguidamente citados, reproduzidos e traduzidos em livros ou coletâneas. Mas o que parece ter passado despercebido em relação aos mesmos aspectos relacionados é um trecho de uma de suas entrevistas com Pierre Cabanne publicadas no livro Engenheiro do tempo perdido. xxi 1389

Nesse trecho, Duchamp nos fala de seu interesse para com o jogo de xadrez, prática a qual ele esteve ligado durante quase toda sua vida: Pierre Cabanne Constatei uma coisa: primeiro, o que não é novo, sua paixão pelo xadrez... Marcel Duchamp Não é muito séria, mas existe. P.C. Também notei que esta paixão era especialmente grande quando você não estava pintando. M.D. É verdade. P.C. Então, imaginei se, durante esses períodos, os gestos dirigindo os movimentos dos peões no espaço não suscitariam criações sim, eu sei que você não gosta desta palavra imaginárias que, a seus olhos, tinham tanto valor quanto as criações reais de seus quadros e, ainda, estabeleciam uma nova função plástica no espaço. M.D. De certa maneira, sim. Uma partida de xadrez é uma coisa visual e plástica, e se não é geométrica no sentido estático da palavra, é mecânica, desde que se move; é um desenho, é uma realidade mecânica. As peças não são belas por elas mesmas, assim como a forma do fogo, mas o que é belo se a palavra belo pode ser usada é o movimento. Então, é uma mecânica, no sentido, por exemplo, de um Calder. No xadrez, existem, sem dúvida, coisas extremamente belas no domínio do movimento, mas não no domínio visual. Imaginar o movimento ou o gesto é que faz a beleza neste caso. Está completamente dentro da massa cinzenta. P.C. Em suma, há no xadrez um jogo de formas gratuito que se opõe ao jogo de formas funcional da pintura. M.D. Sim, totalmente. Apesar do jogo não ser gratuito; existe escolha... P.C. Mas sem nenhum propósito. M.D. Não. Nenhum propósito social. Isso é o mais importante. P.C. O xadrez é a obra de arte ideal? M.D. Poderia ser. Acrescente-se que o meio dos jogadores de xadrez é mais simpático que o dos artistas. Estes são completamente confusos, completamente cegos, usam viseira-deburro. São loucos de certa natureza, como se espera que eles sejam; mas não o são, em geral. Isto foi provavelmente o que mais me interessou. Eu estive muito ligado ao xadrez por quarenta ou quarenta e cinco anos, depois meu entusiasmo diminuiu. No trecho da entrevista que acabamos de ler as perguntas e respostas giram em torno do xadrez e da importância significativa que ele teria para Duchamp. Lemos sobre beleza, movimento, criações imaginárias, olhar e arte. Mas curiosamente, o xadrez não é uma pintura, não é um quadro, o ato de jogá-lo não é considerado, em princípio, uma atividade artística. Sua prática não se inscreve na tradição das artes plásticas, muito menos dentro do campo da arte e ele não é exposto dentro de espaços considerados artísticos. Quer dizer, pela maneira como Duchamp discorre sobre esse jogo, seu valor estético não viria 1390

necessariamente de sua inscrição dentro do espaço de exposição. O xadrez então não possui publicamente ou institucionalmente essa conotação artística no momento em que Duchamp e Cabanne conversam. Um deslocamento ocorre aqui, e nem o jogo, nem muito menos o contexto e os participantes (como enfatizado por Duchamp) pertencem ao campo da arte. Diante do jogo, Duchamp encontra qualidades plásticas e beleza ao imaginar o movimento das jogadas. Mas o jogo, em principio, é produzido sem intenções artísticas, compreendidas tanto no sentido de que ele se oporia ao jogo de formas funcional da pintura quanto no sentido de alguém que produz uma pintura, a qual visa o olhar do público. Duchamp, sentado diante do tabuleiro no ato de movimentar as peças, possivelmente tem uma percepção que se faz no seu envolvimento com o jogo, o qual ele também produz. A um certo momento ele pode pensar que aquilo poderia ser arte, talvez mesmo a obra de arte ideal. Mas nem o contexto nem talvez o outro jogador, ou alguém que observa, consideraria ou necessitaria ter esse olhar, nem o jogo é proposto de antemão aos participantes como arte, quer dizer, enquanto produção de um gesto artístico. O fato de produzir um jogo e, simultaneamente, oferecer um olhar e uma posição diante desse momento seriam compartilháveis com um observador que por sua vez iria refinar esse produto? Tarefa talvez impossível, pois, como Duchamp mesmo afirma, isto estaria completamente dentro da massa cinzenta. Parece-me, então, que aqui estamos diante de uma outra situação artística, diferente daquela descrita no texto O processo criativo como sendo a de uma relação entre dois pólos, onde se encontra de um lado o artista e de outro o espectador. Finalmente, nos exemplos apresentados, pudemos então distinguir diferentes posições dentro do campo artístico e que vão desde produções artísticas que problematizam o espaço expositivo até outras, onde as proposições artísticas ocorrem fora desse espaço. Mas haveria ainda outras formas de apresentação? Seria possível desenvolver proposições críticas no intervalo entre essas duas posições: exposição e auto-apresentação? 1391

i Ver por exemplo os trabalhos e proposições: http://www.heliofervenza.net/arquivo/pontuacoes/castelinho/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/proposicoes/aduvida/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/proposicoes/deserto/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/pontuacoes/artransmedia/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/proposicoes/furtivo/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/proposicoes/transposicoes/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/proposicoes/objetos_mentais/ http://www.heliofervenza.net/arquivo/pontuacoes/cinco_sete/ ii René Vinçon. Artifices d exposition. Paris: Éditions L Harmattan, 1999. p.31. iii Jean-François Lyotard. Que Peindre? - Adami, Arakawa, Buren. Paris: Editions de la Différence, Coll. La Vue, Le Texte, v.1, 1987, p.91. iv Jean-François Lyotard. Que Peindre? - Adami, Arakawa, Buren. p.91, 96. v Cf. Anne Cauquelin. Arte contemporânea : uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.72. vi Anne Cauquelin. Arte contemporânea : uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.68. vii Katharina Hegewisch. Un médium à la recherche de sa forme: Les expositions et leurs déterminations. L Art de l exposition Une documentation sur trente expositions exemplaires du XXe siècle. Paris: Éditions du Regard, 1998. p.15. viii Anne Cauquelin. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.93-94. ix Ver por exemplo: L Art de l exposition Une documentation sur trente expositions exemplaires du XXe siècle. Paris: Éditions du Regard, 1998. p.29. x Jean-Marc Poinsot. In Situ, lieux et espaces de la sculpture contemporaine. Qu'est-ce que la sculpture moderne?, Paris, M.N.A.M.- Centre Georges Pompidou, 1986. p.323. xi Ver Jean-Marc Poinsot. In Situ, lieux et espaces de la sculpture contemporaine. Qu'est-ce que la sculpture moderne?, Paris, M.N.A.M.- Centre Georges Pompidou, 1986. p.327. xii Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p.148. xiii René Passeron. Création, Présentation, Présence. La Présentation. Paris: Editions du CNRS, 1985. p.14. xiv René Passeron. Création, Présentation, Présence. La Présentation. Paris: Editions du CNRS, 1985. p.30. xv René Vinçon. Artifices d exposition. Paris; Éditions L Harmattan, 1999. p.23. xvi Ver a esse respeito: Allan Kaprow. La performance non théâtrale. L art et la vie confondus. Paris: Centre Georges Pompidou, Coleção Supplémentaires, p.206. xvii Marcel Duchamp. Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1991. p.247. xviii Ver Helio Fervenza. Considerações da arte que não se parece com arte. Cultura visual e desafios da pesquisa em artes. Alice Fátima Martins, Luis Edegar Costa, Rosana Horio Monteiro (Organizadores). Goiânia : ANPAP, 2005, v.2, p.79. Este texto foi escrito inicialmente para a palestra proferida pelo autor durante o Colóquio Internacional de Estética Estética na sociedade contemporânea, realizado em Porto Alegre de 01 a 03 de setembro de 2004 pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRGS. xix Marcel Duchamp. Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1991. p.247. xx Marcel Duchamp. Duchamp du signe. Paris: Flammarion, 1991. p.187. xxi Pierre Cabanne. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo: Perspectiva, 1997. p.27-28. 1392