Tempestade num Copo de Água Perspectivas Antropológicas sobre o Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo



Documentos relacionados
Unidade III Produção, trabalho e as instituições I. Aula 5.2 Conteúdo:

Uma reflexão sobre Desenvolvimento Económico Sustentado em Moçambique

CURSO E COLÉGIO ESPECÍFICO

O sexo e o casamento. Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá a sua mulher, e os dois serão uma só carne Gen.2:24 e Efes.

Lev Semenovich Vygotsky, nasce em 17 de novembro de 1896, na cidade de Orsha, em Bielarus. Morre em 11 de junho de 1934.

Família. Dias, pags

f r a n c i s c o d e Viver com atenção c a m i n h o Herança espiritual da Congregação das Irmãs Franciscanas de Oirschot

Lei n.º 133/99 de 28 de Agosto

A MULHER E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

A origem dos filósofos e suas filosofias

1 O número concreto. Como surgiu o número? Contando objetos com outros objetos Construindo o conceito de número

VIII JORNADA DE ESTÁGIO DE SERVIÇO SOCIAL

Tendo isso em conta, o Bruno nunca esqueceu que essa era a vontade do meu pai e por isso também queria a nossa participação neste projecto.

Katia Luciana Sales Ribeiro Keila de Souza Almeida José Nailton Silveira de Pinho. Resenha: Marx (Um Toque de Clássicos)

difusão de idéias AS ESCOLAS TÉCNICAS SE SALVARAM

A Alienação (Karl Marx)

História da cidadania europeia

FORMAÇÃO DOCENTE: ASPECTOS PESSOAIS, PROFISSIONAIS E INSTITUCIONAIS

Por Uma Questão de Igualdade

1 A sociedade dos indivíduos

ENTREVISTA. Clara Araújo

Gestão da Informação e do Conhecimento

A IMPRENSA E A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL

VOLUNTARIADO E CIDADANIA

Rousseau e educação: fundamentos educacionais infantil.

Contribuição sobre Economia solidária para o Grupo de Alternativas econômicas Latino-Americano da Marcha Mundial das Mulheres Isolda Dantas 1

Roteiro VcPodMais#005

A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA AD NOS PROGRAMAS DE PÓS- GRADUAÇÃO DA PUC/RS E DA UFRGS

Necessita MISEREOR de Estudos de linhas de base? Um documento de informação para as organizações parceiras

A constituição do sujeito em Michel Foucault: práticas de sujeição e práticas de subjetivação

FILHOS UMA NECESSIDADE? PROTESTO!

LISTA DE EXERCÍCIOS RECUPERAÇÃO. 1. Quais foram as principais características da escolástica? Cite alguns de seus pensadores.

DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS COMBINADAS

A PSICANÁLISE E OS MODERNOS MOVIMENTOS DE AFIRMAÇÃO HOMOSSEXUAL 1

Construção, desconstrução e reconstrução do ídolo: discurso, imaginário e mídia

SOCIEDADE, EDUCAÇÃO E VIDA MORAL. Monise F. Gomes; Pâmela de Almeida; Patrícia de Abreu.

Educação para a Cidadania linhas orientadoras

Há 4 anos. 1. Que dificuldades encontra no seu trabalho com os idosos no seu dia-a-dia?

Apresentação. Cultura, Poder e Decisão na Empresa Familiar no Brasil

DUNKER, C.I.L. Desautorização da Mãe pelo Pai. Revista Pais e Filhos, A Desautorização da Mãe pelo Pai

ALTERA O CÓDIGO CIVIL, PERMITINDO O CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO

ABCEducatio entrevista Sílvio Bock

nossa vida mundo mais vasto

Proposta Curricular do Estado de São Paulo para a Disciplina de Sociologia

Entendendo como funciona o NAT

LIDERANÇA, ÉTICA, RESPEITO, CONFIANÇA

As parcerias e suas dinâmicas: considerações a ter em conta para a promoção da mudança

Projecto para a Auto-suficiência e Desenvolvimento Sustentáveis do Município de Almeida

FORMANDO AS LIDERANÇAS DO FUTURO

Logística e a Gestão da Cadeia de Suprimentos. "Uma arma verdadeiramente competitiva"

Pressupostos e diferenciações em relação ao senso comum

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas. Grupo de Pesquisa em Interação, Tecnologias Digitais e Sociedade - GITS

COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL

Marketing Turístico e Hoteleiro

Um forte elemento utilizado para evitar as tendências desagregadoras das sociedades modernas é:

Avanços na transparência

ADMINISTRAÇÃO GERAL MOTIVAÇÃO

Projeto de lei n.º /XII

Unidade II FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL. Prof. José Junior

ASTRONOMIA. A coisa mais incompreensível a respeito do Universo é que ele é compreensível Albert Einstein

O papel da mulher na construção de uma sociedade sustentável

Começo por apresentar uma breve definição para projecto e para gestão de projectos respectivamente.

KARL MARX ( )

MATRIZ DA PROVA DE EXAME DE EQUIVALÊNCIA À FREQUÊNCIA SOCIOLOGIA (CÓDIGO 344 ) 12ºAno de Escolaridade (Dec.-Lei nº74/2004) (Duração: 90 minutos)

Análise e Desenvolvimento de Sistemas ADS Programação Orientada a Obejeto POO 3º Semestre AULA 03 - INTRODUÇÃO À PROGRAMAÇÃO ORIENTADA A OBJETO (POO)

3º Bimestre Pátria amada AULA: 127 Conteúdos:

A evolução do conceito de liderança:

satisfeita em parte insatisfeita em parte insatisfeita totalmente

2010/2011 Plano Anual de Actividades

Colégio Senhora de Fátima

PARA ONDE VAMOS? Uma reflexão sobre o destino das Ongs na Região Sul do Brasil

Rekreum Bilbao, Vizcaya, Espanha,

CONFERÊNCIA AS RECENTES REFORMAS DO MERCADO LABORAL EM PORTUGAL: PERSPECTIVAS DOS PARCEIROS SOCIAIS 1

CURSOS PRECISAM PREPARAR PARA A DOCÊNCIA

Presidência da República Casa Civil Secretaria de Administração Diretoria de Gestão de Pessoas Coordenação Geral de Documentação e Informação

Projeção ortográfica de modelos com elementos paralelos e oblíquos

John Locke ( ) Colégio Anglo de Sete Lagoas - Professor: Ronaldo - (31)

Identificação do projeto

Algumas vantagens da Teoria das Descrições Definidas (Russel 1905)

GRUPO I Escolha múltipla (6 x 10 pontos) (circunda a letra correspondente à afirmação correcta)

24 O uso dos manuais de Matemática pelos alunos de 9.º ano

Seção 2/E Monitoramento, Avaliação e Aprendizagem

O relacionamento amoroso em «ARRET»

A Epistemologia de Humberto Maturana

SUGESTÕES PARA ARTICULAÇÃO ENTRE O MESTRADO EM DIREITO E A GRADUAÇÃO

O Indivíduo em Sociedade

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E S C O L A D E A R T E S, C I Ê N C I A S E H U M A N I D A D E

FEMINISMOS PLURAIS E FEMINISMOS EM ÁFRICA

O que é Administração

Família nuclear casal e filhos solteiros.

Portugués PRUEBA DE ACCESO A LA UNIVERSIDAD 2012 BACHILLERATO FORMACIÓN PROFESIONAL CICLOS FORMATIVOS DE GRADO SUPERIOR. Examen

O SUJEITO EM FOUCAULT

Introdução. instituição. 1 Dados publicados no livro Lugar de Palavra (2003) e registro posterior no banco de dados da

Colégio Cenecista Dr. José Ferreira

O Planejamento Participativo

1.3. Planejamento: concepções

Mobilização Social. o que nos MOVE?... nos MUDA, nos TRANSFORMA, nos AFETA? a RAZÃO? a E-MOÇÃO? os AFETOS?... nossas CONVICÇÕES?

1 A sociedade dos indivíduos

Transcrição:

2007 Tempestade num Copo de Água Perspectivas Antropológicas sobre o Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo VII Reunião de Antropologia do Mercosul. Porto Alegre, 23-26 Julho 2007. MR 05 - Parentalidades e conjugalidades homossexuais no mundo contemporâneo Data: 24 de julho 2007. Local: Auditório Faculdade de Arquitetura (Promoção ABA e Apoio Projeto Cnpq Civil, Conjugalidades, Homoparentalidades, SEM). Coordenação Miriam Pillar Grossi (UFSC, Brasil); Debatedora Anna Paula Uziel (UERJ, Brasil). Miguel Vale de Almeida MIGUELVALEDEALMEIDA.NET 2007

VII Reunião de Antropologia do Mercosul. Porto Alegre, 23 26 Julho 2007. MR 05 Parentalidades e conjugalidades homossexuais no mundo contemporâneo Data: 24 de julho 2007. Local: Auditório Faculdade de Arquitetura (Promoção ABA e Apoio Projeto Cnpq Civil, Conjugalidades, Homoparentalidades, SEM). Coordenação Miriam Pillar Grossi (UFSC, Brasil); Debatedora Anna Paula Uziel (UERJ, Brasil) TEXTO ANTERIORMENTE APRESENTADO NO CICLO DE CONFERÊNCIAS A TEMPESTADE E O COPO D ÁGUA, LIVRARIA ALMEDINA, LISBOA, 2006 Miguel VALE DE ALMEIDA ISCTE e CEAS, Lisboa mvda@netcabo.pt Tempestade num Copo de Água. Perspectivas Antropológicas sobre o Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo. 0 Até há pouco tempo a Antropologia considerava a temática do parentesco (incluindo, portanto, o casamento) como o núcleo da sua identidade disciplinar. A razão para tal era aparentemente óbvia: as sociedades anteriores à modernidade ou que haviam permanecido marginais em relação a ela estruturar se iam em torno de regras de parentesco. Estas dariam conta daquilo que para nós seriam os campos autónomos do político, do económico e até do religioso. Mas nas últimas décadas do século 20 deram se importantes transformações: por um lado, o âmbito da pesquisa antropológica deixou de estar ligado a sociedades ditas primitivas, alargando se a toda(s) a(s) sociedades(s); por outro, as concepções teóricas sobre o parentesco passaram por fortes críticas e revisões, sobretudo graças à influência da problematização do género e da sexualidade. Um dos efeitos curiosos destas transformações é que a nossa visão clássica do parentesco como ventríloquo do político, do económico, etc., se pode agora aplicar também às sociedades ditas

modernas. Procurarei, a partir duma perspectiva disciplinar antropológica, defender a ideia de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma consequência lógica da dinâmica das práticas do parentesco em sociedades e culturas como a nossa. 1 Embora o caso não seja único ou o único a desafiar verdades adquiridas pela antropologia os Na da região dos Himalaias na China desafiaram recentemente algumas das nossas supostas certezas 1. Porquê? Porque, tal como foi tão publicitado, porque os Na viveriam sem a instituição do casamento. Com mais rigor: vivem sem nenhuma instituição de aliança. Irmãos e irmãs vivem juntos toda a vida, criando os filhos e filhas das mulheres. À semelhança de qualquer sociedade, proibem o incesto entre determinadas categorias de parentes: apesar de viverem juntos, irmãos e irmãs não têm relações conjugais ou sexuais entre si. Mas tão pouco têm relações conjugais com pessoas de fora da casa, antes praticam um sistema mais ou menos furtivo ou visível de visitas nocturnas, durante as quais e as informações que temos referemse por defeito à heterossexualidade um homem se dirige a casa duma mulher. Estas relações afectivas e sexuais podem prolongar se ou não, mas nunca assumem a forma da conjugalidade, da constituição duma nova unidade doméstica ou da efectivação de uma aliança entre dois grupos através do reconhecimento de um laço entre os membros do casal. O resultado deste sistema é a inexistência social de pais (homens) ou esposos. As relações de visita são relações heterossexuais consensuais em que os parceiros permanecem como membros das suas casas natais. Após a visita nocturna, os homens Na regressam pela manhã às suas casas, partilhadas com mães, tias, tios e 1 Hua, Cai, 2001, A Society Without Fathers or Husbands: The Na of China. Cambridge: MIT Press.

irmãos e irmãs. Os parceiros podem terminar a relação de visita quando entenderem e podem ter outros amantes durante ou entre relações mais longas. Nas casas matrilineares dos Na o pai (em rigor, o genitor) é considerado socialmente pouco importante e a sua identidade era muitas vezes desconhecida. Os Na partilham a ideia, ainda que flexível, da família como o conjunto de membros de sangue ou adoptados da casa e vêem na como central dos pontos de vista económico, social e emocional. Segundo eles, é para manter a estabilidade da família que não desejam que ela se funde em arranjos românticos considerados instáveis. 2 Os Na são um exemplo desafiador não por apresentarem (mais) uma forma de casamento diferente do nosso modelo, mas por não terem casamento. Ora, a centralidade do casamento está associada a quase todas as teorias antropológicas clássicas, desde logo as teorias da aliança que definem o casamento como forma de estabelecer alianças entre grupos. Já o evolucionista Tylor dizia no século 19 que as sociedades primitivas confrontavam se com um dilema: marrying out ou dying out (casar fora ou morrer). Paralelamente, muitas análises do parentesco escolheram enfatizar a produção da continuidade através das gerações. Assim, quer o laço entre pai/mãe e filho/a, quer o laço entre esposos, tiveram maior ou menor centralidade nas análises. O casamento seria, de qualquer modo, a instituição central, por juntar os esposos enquanto indivíduos mas também, ou sobretudo, por estabelecer alianças entre os seus grupos de origem (linhagens, clãs, etc). Provavelmente aquela que se tornou a foma canónica da teoria da aliança tenha sido a de Claude Lévi Strauss. Analisando os laços estreitos entre duas instituições a consanguinidade e a afinidade

o antropólogo estruturalista francês verificou que estas davam origem a uma classificação do mundo social segundo regras matrimoniais. Na base da teoria da aliança está o tabu do incesto. A proibição universal do incesto empurraria os grupos humanos para a exogamia. Proibindo, numa dada sociedade, o casamento entre certas categorias de parentes, o tabu do incesto constituir se ia como prescrição negativa. O resultado do tabu do incesto seria a oferta da filha ou irmã de um homem a alguém fora do círculo familiar, começando assim um circuito de trocas de mulheres, já que em troca o doador recebe uma mulher de um outro grupo. A teoria da aliança postula portanto a troca recíproca ou generalizada fundadora da afinidade. 3 Talvez seja evidente para as mentalidades de hoje, meio século depois da formulação de Lévi Strauss, o problema que ela levanta: quem troca quem? Quem estabelece os termos da troca? Bem antes de Lévi Strauss, já Engels havia sido explícito quanto ao que ele chamava a derrota histórica das mulheres com o estabelecimento do patriarcado, isto é (e usando categorias de hoje), a propriedade dos termos da troca por parte dos homens. Mas foi preciso esperar pela influência da teoria feminista na antropologia (resultante, obviamente, de transformações nas relações sociais de género nas sociedades produtoras de teoria antropológica) para que essas questões alterassem a visão do parentesco (note se, porém, que a teoria da troca e da aliança era, para a época, um avanço, pois centrava se na produção de sociedade e não na produção de população; é que muito do senso comum sobre estes assuntos baseavase e baseia se ainda na ideia simplista e essencialista da necessidade de reprodução da espécie ).

Usemos um exemplo da crítica radical feminista dos anos setenta, The Traffic in Women: Notes on the Political Economy of Sex, de Gayle Rubin. Para ela, o sistema de sexo/género (que poderia chamar se também modo de reprodução ou patriarcado ), reproduz se no e pelo parentesco. Os sistemas de parentesco são feitos, antes de tudo o mais, de formas concretas de sexualidade organizada algo que é praticamente do domínio do inquestionável (porque naturalizado) na teorização de Lévi Strauss e de toda a antropologia anterior. Rubin reconhece que a a troca de mulheres não pode ser caricaturalmente reduzida a um fenómeno de mercadorização e objectificação; no entanto, implica efectivamente uma distinção entre quem dá e quem recebe, fazendo dos homens os beneficiários do produto das trocas, sendo que esse produto é a organização social ela mesma. Na economia do sexo e do género, antes ainda do tabu do incesto, a divisão do trabalho pelos sexos seria a forma de instituir um tabu contra a semelhança de homens e mulheres. Este tabu, exacerbando as diferenças biológicas entre os sexos, cria o género. Mas este tabu é o também em relação a tudo o que não seja o emparelhamento de homem e mulher. Os indivíduos seriam, então, engendrados para garantir o casamento, e a heterossexualidade pode ser vista como um processo instituído, já que o tabu do incesto pressuporia um tabu anterior contra a homossexualidade. 4 A um nível bastante abrangente e geral, a teoria da aliança com base na troca continua a ser operativa. Mas sabemos hoje quanto ela esteve influenciada pelo nosso modelo cultural assente no casamento como fundador de alianças e relações de afinidade. E como que a ela sobrepõe se agora uma consciência do género como processo

socialmente instituído e ainda que com menor aceitação na antropologia mainstream a articulação dessa construção do género com a institucionalização da heterossexualidade. A teorização clássica do parentesco e do casamento estava preocupada sobretudo com a ideia de estabilidade social e com a divisão entre os processo reprodutivos biológicos e as lógicas da reprodução social. Estes dois fundamentos têm sido postos em causa. O primeiro, pela velocidade, extensão e diversidade das transformações nas relações de género, sexualidade e família nas sociedades contemporâneas, levando a uma atenção às práticas do parentesco e aos discursos sobre o parentesco, e não só uma atenção à estrutura. O segundo, por uma visão menos dicotómica da separação entre natureza e cultura, em que a primeira é vista como parcialmente constituída pela segunda. Estas inovações vêm desde a influência da antropologia americana do parentesco, sobretudo com Schneider, na linha da atenção americana à produção de significados ou sentido (meaning), por oposição a uma visão da cultura (de raiz britânica e francesa) como mero reflexo de estruturas sociais. Schneider argumentava que a reprodução sexual é um símbolo central do parentesco num sistema definido por duas ordens dominantes, a da natureza e a da Lei. A união sexual, através do casamento, de dois parceiros não relacionados, fornecia a ligação simbólica entre as duas ordens, resultando em crianças ligadas aos pais através de laços de sangue uma substância biogenética partilhada, simbolizadora duma solidariedade perene. A linguagem da natureza tem sido portanto crucial no parentesco euro americano, um modelo específico que, no entanto, teria contaminado a análise antropológica. O parentesco era veremos adiante se ainda o é visto nas

sociedades euro americanas, como o reconhecimento social do relacionamento biológico. Mas Marilyn Strathern argumentou nos anos noventa que a natureza, antes vista como um conjunto de características intrínsecas, já não pode ser dada por adquirida. Se se levar em conta a reprodução tecnicamente assistida, percebe se que ela é percepcionada como auxiliando a natureza. Mas na realidade, a natureza deixa aqui de ser exterior e passa a ser uma questão de escolha. Quanto mais a natureza é ajudada pela tecnologia, e quanto mais o reconhecimento da parentalidade é circunscrito pela legislação, mais difícil se torna pensar numa natureza independente da intervenção social. Identificando um regresso ao parentesco a partir dos anos noventa na antropologia, Carsten elenca como factores o feminismo, os estudos gay e lésbicos e o trabalho de Strathern After Nature (1992). Um aspecto central é a assunção de que a biologia não tem em toda a parte o mesmo tipo de função fundacional que tem no ocidente. E as fronteiras entre biológico e social estão esfumadas. É assim que o termo relatedness surge para denotar abertura aos termos nativos sobre relacionar se, estar relacionado com, em vez de dependência em definições prévias de estruturas, regras e nomenclaturas de parentesco. Não admira, pois, que muitos trabalhos recentes sobre parentesco, se concentrem na identificação daquilo que, na prática, constitui para as pessoas, a rede de relações significativas e eficazes. Note se que muitos desses trabalhos são já sobre as práticas e os sentidos da relações entre pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos biológicos (feitos com ou sem sexo) ou adoptados. 5

Posto isto, o que é que, em antropologia, sabemos? Sabemos que a vida em sociedade é um feixe de relações; que essas relações passam pelo crivo de alguma aceitação e definição social; que essas relações são práticas significativas que constituem o sentido de Pessoa; que há guiões culturais que fornecem os símbolos que dão sentido a essas relações; que essas relações assumem formas e conteúdos muito diferentes consoante tempos e culturas; e que tudo isto está sujeito a conflito e mudança, sendo essa mudança feita através da adaptação e abrangência a e de realidades novas por parte do guião pré existente. Ao contrário dos Na, temos na relação de aliança/casamento, uma instituição central. Sabemos pela sociologia histórica que o ideal relacional ocidental tem vindo a construir se, lentamente ao longo dos últimos séculos, como romântico, conduzido à pura relação referida por Giddens. A relação que se define nos seus próprios termos constitui talvez o significado central da conjugalidade nas sociedades euro americanas de hoje. Coexiste, é certo, com outros modelos históricos (nada muda de repente e totalmente) e existe, obviamente, uma disputa propriamente política, sobre estes modelos e seus significados. Centrais nesta dinâmica conflitiva são: a questão do género e do estatuto de homens e mulheres; a questão da reprodução e da separação possível entre sexualidade reprodutiva e não reprodutiva; a questão do amor romântico e da importância identitária e social do par conjugal; a questão da parentalidade. Em que é que todos estes elementos contribuiram para o surgimento da reivindicação do casamento entre pessoas do mesmo sexo? É mais simples do que parece. (Daí, aliás, a tempestado no copo d água ). A relação de aliança sancionada na forma casamento deixou praticamente de existir. Mas não seguimos o caminho dos Na, acabando com a relacionalidade da relação

conjugal. Passámos a dar lhe o sentido de relação binária privilegiada, constitutiva da coabitação, da partilha económica, da satisfação sexual e emocional. De tal modo, que não precisa já do reconhecimento ritual e legal a não ser quando este a) é condição necessária para o usufruto de certos direitos e/ou b) oferece status, reconhecimento, ou significado simbólico às pessoas. A relação conjugal não é já, tão pouco, necessária para o reconhecimento dos laços de filiação nem para o exercício da parentalidade (pense se no fim da categoria da ilegitimidade, na monoparentalidade, na adopção, da reprodução medicamente assistida, nas recomposições familiares pós divórcio e segundos casamentos etc). Embora a futurologia seja uma ciência sem objecto, é bem possível imaginar que o casamento (o contrato e a figura legal propriamente dita) venha a deixar de existir afinal não existiu sempre, mas sim como alternativa ao sistema de alianças que decaiu com a modernidade, tendo aberto caminho para o tipo de conjugalidade que temos hoje. Poderá deixar de existir não por causa duma qualquer decadência da conjugalidade mas justamente pelo contrário, pela importância pessoal/social da conjugalidade da pura relação e pelas mudanças na reprodução e na parentalidade. Mas neste momento ele existe. Existindo casamento propriamente dito, o reconhecimento legal do casamento entre pessoas do mesmo sexo é, pois, uma questão propriamente política, é parte do trabalho de completar o processo de transformação cultural da modernidade euro americana: desvinculado da reprodução, desvinculado da filiação e desvinculado da aliança entre grupos, ao casamento só falta a desvinculação da heterossexualidade. Esta já se iniciou com o reconhecimento cultural e legal da conjugalidade homossexual, por exemplo nas uniões de facto. Mas

na existência de um cardápio de conjugalidades social e politicamente reconhecidas, falta apenas a igualdade de acesso a elas todas. É que além da relação sexual afectiva tendencialmente conjugal e constitutiva de família, não é a igualdade das pessoas perante a lei, afinal de contas, um dos significados centrais da cultura euro americana contemporânea? Para a antropologia, que tem a obrigação de analisar os conflitos sociais em torno dos significados centrais duma cultura, a resistência à igualdade no acesso ao casamento é a última forma de manutenção do tabu sobre a homossexualidade a que Rubin se referia na sua definição do sistema de sexo género.