AVALIAÇÃO DA DOR E ANALGESIA NO ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR EM PACIENTES DE TRAUMA

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Transcrição:

308 Calil AM. Avaliação da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar em pacientes ARTIGO DE REFLEXÃO AVALIAÇÃO DA DOR E ANALGESIA NO ATENDIMENTO PRÉ-HOSPITALAR EM PACIENTES DE TRAUMA Ana Maria CALIL a RESUMO A dor é uma das principais queixas de entrada em serviços de emergência. Este artigo apresenta um material adequado e viável para a avaliação da dor em vítimas de trauma, por meio de instrumentos objetivos do fenômeno doloroso. Com isso, busca-se pontuar os efeitos nocivos da permanência da dor no organismo de um paciente póstrauma, assim como os benefícios de uma analgesia precoce, além de apresentar instrumentos de avaliação da dor possíveis de serem utilizados no cenário pré e intra-hospitalar. Constatou-se que a dor aguda na emergência é um tema pouco explorado em nosso meio, representando uma lacuna importante relacionada à assistência e à pesquisa. Descritores: Medição da dor. Ferimentos e lesões. Analgesia. RESUMEN El dolor es una de las principales quejas que lleva al ingreso en los servicios de emergencia. Este artículo señala los efectos nocivos de la permanencia del dolor en el organismo de un paciente post-traumatizado, así como los beneficios de una analgesia precoz, presentando los posibles instrumentos de evaluación del dolor que se pueden utilizar en el escenario pre e intrahospitalario. Se trata de un artículo de actualización que propone un material adecuado y viable para la evaluación del dolor en víctimas de trauma, por medio de instrumentos objetivos del fenómeno doloroso. Se constató que el dolor agudo en la emergencia es un tema poco explorado en nuestro medio, representando una brecha importante en lo tocante a asistencia e investigación. Descriptores: Dimensión del dolor. Heridas y traumatismos. Analgesia. Título: Evaluación del dolor y analgesia en la atención pre-hospitalaria en paciente traumatizado. ABSTRACT Pain is one of the main complaints at admission in emergency services. This article aims at presenting pain assessment methods in trauma patients using objective tools in pre- and intra-hospital settings. The harmful effects of pain in the posttrauma patients, and the benefits of early analgesia are discussed. We found that acute pain in emergency wards is rarely studied in Brazil, which points out a significant gap in terms of care and research. Descriptors: Pain measurement. Wounds and injuries. Analgesia. Title: Pain assessment and analgesia in pre-admission care of trauma patients. a Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente colaboradora no Curso de Pós Graduação (Lato sensu) em Emergência do Centro Universitário São Camilo, São Paulo, Brasil.

Calil AM. Avaliação da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar em pacientes 309 CONTEXTUALIZANDO A QUESTÃO A dor é uma das principais queixas de entrada em serviços de emergência, seja a sua origem clínica ou cirúrgica, e, quando relacionada ao trauma, a sua ocorrência é de 90%, sendo as dores de intensidade moderada e forte as mais comuns (1). A International Association for Study of Pain (IASP) afirma que a dor aguda vem sendo negligenciada ao redor do mundo, causando sofrimento incalculável a milhares de pacientes nos últimos vinte anos, sendo a dor pós-trauma ainda um problema pouco investigado (2). Embora freqüente, pouca atenção tem sido concedida ao traumatizado no que se refere ao controle álgico, visto que os manuais de atendimento não dedicam um capítulo específico a essa temática; tampouco a avaliação do quadro álgico faz parte dos protocolos de orientação nos cursos de atendimento integrado ao politraumatizado, sendo que a literatura em nosso meio é escassa (3,4). As repercussões orgânicas do processo álgico intenso são geralmente subestimadas ou mesmo ignoradas por médicos e enfermeiros; as condições do local do acidente e até mesmo do setor de emergência são adversas a esse tipo de tratamento e há grande desinformação sobre a farmacologia das drogas analgésicas e sobre as técnicas disponíveis. Com freqüência alega-se que a administração precoce de analgésicos poderia mascarar um indício valioso para o diagnóstico etiológico (3). No entanto, pesquisadores são enfáticos ao afirmarem que nenhum desses fatores justificaria ações negligentes frente ao paciente com dor (1-3). Em 2004, as causas externas foram responsáveis por 127.470 mortes, sendo que, desses óbitos, 37,95% foram conseqüências de agressões e 27,99% de acidentes de transporte. Esses dados estatísticos apontam a importância de estudos nessa área, ainda pouco explorada em nosso Àeio (5). A orientação quanto a analgesia ainda se baseia na prática individual, na importância ou não conferida pela equipe de saúde ao fenômeno doloroso e na orientação e crença profissional (1). A idéia inicial ao delinear-se esse material foi conhecer a publicação brasileira na área de dor/ emergência e avaliação da dor nesse cenário, assim como a de oferecer subsídios que direcionem ao desenvolvimento de pesquisas, mostrando as lacunas de conhecimento existentes. O resultado foi alarmante ao identificar a incipiência de estudos nessa área escritos por profissionais de saúde em nosso meio. Esse achado mostra a necessidade de estudos nessa área e parece paradoxal frente ao quadro epidemiológico do país. Desse modo, o objetivo principal dessa análise consiste em enfatizar os efeitos nocivos da permanência da dor no organismo de um paciente póstrauma, pontuar os benefícios da analgesia e apresentar instrumentos de avaliação da dor aguda. Trata-se de um artigo de atualização, o qual pretende fornecer subsídios viáveis e seguros para a avaliação do fenômeno doloroso no cenário da emergência/urgência e que contribuirá na assistência às vítimas de trauma. O IMPACTO DA DOR EM PACIENTES COM TRAUMA A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a uma lesão tissular real ou potencial e descrita em termos de tal dano. A dor aguda surge como um alerta de que algo no organismo não está bem. No setor de emergência, esse tipo de dor é muito freqüente, pois está relacionado a afecções traumáticas, queimaduras, infecções e processos inflamatórios (2). A evolução da dor aguda é a sua remissão: é mais intensa no início e, à medida que ocorrem a imobilização da parte lesada e a cicatrização, há redução da liberação de substâncias algogênicas, resultando na diminuição gradual da dor (2). No entanto, a persistência de processos reacionais (ativação de vias neuronais de modo prolongado e o não alívio da dor), resulta na formação de círculos viciosos com progressivo aumento das disfunções orgânicas e dos efeitos prejudiciais ao paciente traumatizado, como hipoventilação, aumento do trabalho cardíaco, diminuição da oferta de O 2 aos tecidos, diminuição da perfusão sanguínea periférica e contração muscular reflexa. Nos quadros hemorrágicos (principal inimigo no atendimento ao trauma), os estímulos nociceptivos agravam o estado de choque por deterioração do desempenho mecânico do ventrículo esquerdo devido ao aumento da perda plasmática e redução da oferta de oxigênio (6,7). O impacto da dor e da ansiedade na resposta humoral é caracterizado por um aumento dos níveis circulantes dos hormônios catabolizantes como as catecolaminas, glucagon e cortisol. Esse aumento, que pode ser de até 400% em relação ao nível

310 Calil AM. Avaliação da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar em pacientes basal, é errático com conseqüências hemodinâmicas variáveis. Os efeitos metabólicos da resposta hormonal ao estresse incluem aumento do consumo de oxigênio, glicogenólise e lipólise. A resposta corpórea ao trauma provoca uma síndrome de adaptação geral ou resposta ao estresse, que pode ser amplificada por vários outros fatores, como dor, ansiedade, medo, hipo e hipertermia, hipovolemia, acidose, jejum, desidratação, hipóxia infecção, sepse, imobilização prolongada, desconforto entre outros (6). Em relação aos efeitos deletéreis da dor no paciente traumatizado, a hipóxia é o que mais tem chamado a atenção em estudos recentes, uma vez que esse tópico se constitui no centro da terapêutica ao paciente traumatizado, juntamente com a reposição volêmica (7,8). Melhorar a perfusão tissular, minimizar a lesão celular e as alterações fisiológicas relacionadas com a hipóxia, controlar o quadro hemorrágico, manter parâmetros vitais estáveis e a estabilidade da coluna cervical são os objetivos prioritários do atendimento ao traumatizado (3). Parece claro, portanto, que a adequada avaliação, controle e alívio da dor, além do aspecto humanitário, deve se constituir parte vital da assistência imediata ao acidentado, visando contribuir para a manutenção de funções fisiológicas básicas e deve evitar os efeitos colaterais nocivos advindos da permanência da dor. Além das conseqüências neurológicas, circulatórias, metabólicas e respiratórias, não raro um paciente com dor agita-se e agrava as suas lesões traumáticas (1). O procedimento de sedação e analgesia é uma prática central, esperada e fundamental para o médico especialista em emergência. Além disso, esses procedimentos exigem profissionais que tenham conhecimento, compreensão, experiência com os analgésicos a serem utilizados e habilidade para monitorar o paciente e as respostas à medicação (9). CARACTERÍSTICAS DO SERVIÇO PRÉ- HOSPITALAR E AS POSSIBILIDADES FRENTE À DOR E À ANALGESIA O atendimento pré-hospitalar é, por definição, qualquer assistência realizada fora do ambiente hospitalar, utilizando meios e recursos disponíveis, com resposta adequada à solicitação. Portanto, pode variar desde uma simples orientação telefônica ao envio de uma ambulância de suporte básico ou avançado até o local de evento, visando à manutenção da vida, a evitar agravos e até mesmo à minimização de seqüelas (10,11). A regulamentação dos serviços de atendimento pré-hospitalar no Brasil ocorreu por meio da Portaria nº 2.048/GM, do Ministério da Saúde, denominando o atendimento pré-hospitalar móvel como Serviço de Atendimento Móvel de Urgências (SAMU) (10). Os serviços de atendimento pré-hospitalar SAMU-192 e SAMU Resgate-193, além das unidades de suporte básico e avançado, contam também com a unidade de suporte intermediário, composta por enfermeiro e motorista, que surgiu pela deficiência de completar o quadro médico. O objetivo dessa unidade é prestar apoio às outras unidades, realizando atendimento intermediário sob orientação do médico regulador por telemedicina. É importante ressaltar que essa unidade não é oficial, pois ainda se encontra em processo de discussão (10). A composição operacional da equipe no suporte básico do Samu Resgate (193) consta de três bombeiros socorristas; no suporte básico Samu Resgate (192), de um motorista, dois auxiliares ou técnicos de enfermagem; no suporte avançado (192), de um médico, um ou dois enfermeiros, um motorista ou um médico, um enfermeiro e um bombeiro socorrista (10). As equipes trabalham em regime de plantão de acordo com a carga horária estipulada e predeterminada, garantindo 24 horas diárias de funcionamento. Os principais tipos de atendimento são acidentes de transporte, acidentes de trabalho, acidentes pessoais, agressão, catástrofes, infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral, arritmias, emergências obstétricas, tentativas de suicídio, broncoespasmo e alterações de comportamento (11-13). Observa-se que grande parte dos atendimentos é referente às causas externas. Estudo referente à análise da gravidade da lesão e do trauma, realizado em nosso meio, mostram que a maioria da população (60%) apresenta gravidade de lesão AIS 3 (sem ameaça a vida) e, em 58,7% dos casos, a gravidade do trauma é leve ou moderada. As regiões corpóreas mais afetadas são membros inferiores e superiores, cabeça/pescoço e superfície externa, e as lesões mais comuns são fraturas fechadas, fraturas abertas, abrasões e

Calil AM. Avaliação da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar em pacientes 311 laceração, contusão cerebral, fraturas simples de crânio e luxação de coluna cervical (13). As lesões citadas acima são descritas na literatura como muito dolorosas, e a analgesia precoce poderia evitar todos os efeitos deletéreis causados pela dor citados anteriormente, bem como para as demais regiões corpóreas (1). Em estudo realizado em nosso meio avaliando aspectos da dor e analgesia no pré-hospitalar em pacientes de causas externas, constatou-se que, de 139 vítimas estudadas, 40% avaliaram a dor como intensa e 19% como insuportável, e os locais mais freqüentes de queixa álgica foram membros inferiores e superiores, cabeça e face. Analgésicos só foram utilizados em 4,3% das remoções, embora houvesse analgésicos em 14,5% das viaturas, médico em 15,1% dos veículos e lesões muito dolorosas como fraturas em 28,1% dos casos (13). É importante citar esses estudos para dar uma dimensão do número de pacientes possíveis de serem analgesiados, ou seja, pacientes estáveis, sem alterações hemodinâmicas ou respiratórias, Escala de Coma de Glasglow = 15, que não se encontram em risco de vida iminente, com lesões que não ameaçam a vida, mas que causam muita dor. A avaliação e o tratamento álgico no trauma deveriam ser iniciados durante o atendimento préhospitalar devido aos inúmeros benefícios advindos ao paciente, situação raramente encontrada na prática clínica (1-11). As principais dificuldades citadas na literatura são a precariedade das condições e a dificuldade da anamnese e do exame físico no local do acidente, vivência prática na escolha e prescrição de um fármaco no cenário de pré-hospitalar junto às vítimas de trauma e conhecimentos básicos de drogas e técnicas analgésicas (9). Frente a esses entraves, não se pode deixar de questionar: não seriam os médicos e enfermeiros do serviço pré-hospitalar capazes de tal avaliação e determinação de condutas? Não seria a telemedicina um recurso ideal nesse contexto? A seqüência de atendimento à dor iniciada durante o pré-hospitalar não teria continuidade no setor de emergência, como tantas outras? A documentação dos processos não induziria a condutas mais homogêneas entre as equipes? As drogas analgésicas não seriam utilizadas com maior segurança? Acredita-se que o aspecto mais importante na implementação da avaliação álgica e posterior tratamento seja a de padronizar uma conduta, ou seja, fazer com que todo o profissional envolvido no atendimento à pacientes traumatizados investigue a dor e que essa prática se torne uma rotina. A padronização de condutas (protocolos de assistência) orienta as equipes a seguirem um mesmo caminho, uniformiza a linguagem e familiariza condutas, como ocorreu em nosso país com as etapas do Advanced Trauma Life Support (ATLS), que determina as condutas no atendimento ao trauma (3). Cumpre ressaltar que a média de tempo consumido na fase de pré-hospitalar em nosso meio é de 41 minutos (13), e que a dor após o trauma para 79% dos pacientes inicia-se logo após evento traumático e é descrita em 82% dos casos como uma dor contínua (1). Sendo assim, parece um grande equívoco e contra senso o início da analgesia não ocorrer no período pré-hospitalar. É inquestionável a prioridade de ressuscitação e estabilização do quadro no atendimento ao trauma ou a qualquer agravo à saúde, mas é fundamental o questionamento sobre outros aspectos que favoreçam a qualidade da assistência, tais como a inclusão da avaliação e controle da dor e os benefícios dessa prática. INSTRUMENTOS PARA A AVALIAÇÃO DA DOR NA EMERGÊNCIA Inúmeros são os estudos que relatam que a dor na emergência é subavaliada e subtratada, advindo dessa situação o termo oligoanalgesia (1-14). A dor muitas vezes intensa vivenciada por esses pacientes pode perdurar por horas, sem que qualquer tipo de conduta analgésica seja proposta. A situação dessas pessoas é duplamente custosa, uma vez que, a associada à dor, existe o sentimento de culpa, perda, dano e frustração que freqüentemente acompanham uma situação violenta e inesperada (1). Estudos reforçam a importância da padronização de condutas analgésicas no atendimento inicial aos pacientes de trauma e apontam como iatrogenia o não alívio da dor, os efeitos colaterais advindos da mesma e a possibilidade de novas lesões resultantes da agitação psicomotora causada pela dor (3-8). Nesse sentido, propõe-se a utilização do diagrama corporal (15) e da escala numérica (16) como instrumentos objetivos, de fácil uso e compreen-

312 Calil AM. Avaliação da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar em pacientes são do paciente no setor de emergência e pré-hospitalar, devido a rapidez de aplicação e possibilidade de avaliações contínuas do quadro álgico, inclusive para pessoas que não conhecem a escrita (1). A intensidade dolorosa é componente de grande expressão da experiência dolorosa e o mais aferido na prática clínica e de pesquisa, sendo indispensável para o planejamento da terapia antálgica e verificação da adequação do esquema proposto. Para aferição da intensidade dolorosa, têm sido recomendadas escalas numéricas e descritores verbais. As escalas numéricas são graduadas de zero a dez, onde zero significa ausência de dor e dez significa a pior dor imaginável. Apesar de simples, essa escala é muito utilizada para o reajuste terapêutico. Além disso, apresenta como vantagem a facilidade do uso, necessitando apenas de um pouco de cooperação do paciente, pois é de fácil compreensão (16,17). O uso de diagramas corporais para aferição do local da dor tem sido recomendado. O paciente aponta no seu corpo ou no diagrama a região ou regiões dolorosas. O conhecimento de todos os locais dolorosos, a análise em conformidade com a distribuição nervosa da região e a identificação de possíveis grupos musculares envolvidos podem ajudar a compreender a etiologia e a magnitude do quadro. Devem ser investigados também a localização, início da dor, duração e periodicidade dos episódios dolorosos, qualidade sensitiva, padrão evolutivo, fatores agravantes e atenuantes da dor e outros sintomas associados (17). Em relação à dor e ao tratamento álgico no período pré-hospitalar em nosso meio, a pouca literatura referente ao tema aponta que a analgesia poderá ser realizada em pacientes com a via aérea controlável e hemodinamicamente estável; que as doses propostas dependem da resposta individual e do quadro clínico no momento, não havendo uma droga de escolha ideal para todo paciente (16,17). A pouca utilização de opióides em pacientes de trauma (1) parece um paradoxo,uma vez que essas drogas deveriam ser utilizadas para dores de moderada e forte intensidade. Além disso, a morfina, especificamente, além de ter efeito analgésico, reduz o consumo de oxigênio pelo miocárdio e proporciona uma sedação leve, o que em muitos casos favorece o exame físico e o não agravamento de lesões ortopédicas e vasculares. Em nosso meio, como medicações obrigatórias em suporte avançado, aparecem os seguintes fármacos: meperidina, hidantoína, diazepan e midazolam (4). Sendo assim, observa-se a possibilidade de analgesia durante o período pré-hospitalar. Estudos apontam que as dores de forte intensidade deveriam ser tratadas com opióides fortes, sendo a morfina a droga de escolha nessa situação (1-14). Reconhece-se que mudanças de postura deverão ser adotadas para a implementação desse processo, compreendendo que, talvez, a maior delas deva-se dar nos bancos escolares com o aumento das aulas de dor e anlagesia, assim como assegurar aos futuros enfermeiros e médicos maior segurança e conhecimento acerca das drogas a serem utilizadas, sobretudo os opióides. Figura 1 Diagrama Corporal. Nota: No diagrama acima é possível o paciente apontar o local de maior intensidade álgica, assim como ser utilizado em pacientes com impossibilidade temporária de comunicação verbal. CONCLUSÃO As repercussões nocivas na vigência da dor não aliviada em pacientes de trauma podem levar a piora do quadro clínico e, pela agitação psicomotora, agravar lesões já existentes. A adequação da analgesia, sempre precedida de uma avaliação minuciosa, pode levar a inúmeros benefícios, sobretudo nos sistemas circulatório e respiratório. Recomenda-se a utilização dos instrumentos de avaliação da dor apresentados para padronizar a interpretação do fenômeno doloroso, realizar aferições freqüentes, facilitar a avaliação e a ação dos fármacos, documentar o processo e diminuir enganos, danos e frustrações irreversíveis para o paciente e toda a equipe multidisciplinar. A literatura nacional é incipiente em relação à avaliação da dor aguda nos cenários de pré-hospitalar e intrahospitalar, demonstrando a necessidade de estudos nessas áreas. A participação do enfermeiro nessa jornada manter-nos-á atualizado e na linha de frente no desenvolvimento de pesquisas que revertam em

Calil AM. Avaliação da dor e analgesia no atendimento pré-hospitalar em pacientes 313 benefícios à sociedade, permitam uma visão mais individualizada de cada paciente e contribuam para a melhoria da qualidade da assistência ao paciente traumatizado. REFERÊNCIAS 1 Calil AM. Dor e analgesia em vítimas de acidentes de transporte atendidas em um pronto socorro [tese]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2003. 2 International Association for Study of Pain. Consensus development conference statement: the integrated aproach to the management of pain 1994;6(3):491-529. 3 American College of Surgeons. Committe on trauma: advanced trauma life support manual. 3 rd ed. Chicago; 2004. 4 National Association of Emergency Medical Technicians (USA), American College of Surgeons. Atendimento pré-hospitalar ao traumatizado: básico e avançado. Rio de Janeiro: Elsevier; 2004. 5 Sousa RMC. Perfil de morbidade e mortalidade brasileiro e suas repercussões sociais. IN: Calil AM, Paranhos WY. O enfermeiro e as situações de emergência. São Paulo: Atheneu; 2007. p. 1-15. 6 Revell M. Injury, infection and critical care. Journal of Trauma 2003;54(2):363-7. 7 Rivers E. Early intervention for severity shock. Journal of Trauma 2005;173(9):222-6. 8 American College of Emergency Phisicians. Clinical policy for procedural sedation and analgesia in the emergency department. Annal Emergency Medical 1998;31(5):663-77. 9 Fonseca SC. Atendimento pré-hospitalar. In: Calil AM, Paranhos WY. O enfermeiro e as situações de emergência. São Paulo: Atheneu; 2007. p. 315-8. 10 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 2048/GM, de 05 de novembro de 2002: dispõe sobre o regulamento técnico dos sistemas estaduais de urgência e emergência [documento na Internet]. Brasília (DF); 2002 [citado 2008 fev 25]. Disponível em: http://dtr2001. saude.gov.br/sas/portarias/port2002/gm/ GM-2048.htm. 11 Fogaça V, Pimenta CAM, Carvalho MB. Dor e analgesia em vítimas de trauma no atendimento pré-hospitalar. Revista Dor 1997;5(1):221-39. 12 Iervolino T. Atendimento de emergência. Revista do COREN-SP 2006;66:2-3. 13 Malvestio MAM. Predeterminantes de sobrevivência em vítimas de acidentes de trânsito submetidos a atendimento pré-hospitalar de suporte avançado à vida [tese]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2005. 14 Calil AM, Pimenta CAM, Birolini D. The oligoanalgesia problem in the emergency room. Clinics 2007;62(5):591-9. 15 McCaffery M, Pasero C. Undertreatment of acute pain with narcotics. American Journal of Nursing 1976;76(10):1586-91. 16 Gallasch CH, Alexandre NMC. The measurement of musculaokeletal pain intensity: a comparision of four methods. Revista Gaúcha de Enfermagem 2007;28(2):260-5. 17 Pimenta CAM, Cruz DALM, Santos JLF. Instrumentos para avaliação da dor: o que há de novo em nosso meio? Arquivo Brasileiro de Neurocirurgia 1998; 17(1):15-24. Endereço da autora / Dirección del autor / Author s address: Ana Maria Calil Alameda Fernão Cardim, 140, ap. 61, Jd. Paulista 01408-020, São Paulo, SP E-mail: easallum.fnr@terra.com.br Recebido em: 18/07/2007 Aprovado em: 13/03/2008