Informa. Questões fundiárias e o desmatamento na Amazônia. Analista Socioambiental e Coordenador de Capacitação em Gestão Ambiental - PQGA

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Transcrição:

Informa Outubro 15 nº 2 Questões fundiárias e o desmatamento na Amazônia Hélio Beiroz, Analista Socioambiental e Coordenador de Capacitação em Gestão Ambiental - PQGA As questões fundiárias estão no cerne da problemática do desmatamento na Amazônia brasileira. A distribuição espacial das áreas desmatadas até 2014 (Figura 1) segue um padrão de maior concentração nas áreas de fronteira entre o bioma Amazônia e o bioma Cerrado. Tais áreas correspondem também às áreas de expansão da fronteira agropecuária e de maior concentração de rodovias federais e estaduais. Esse cenário, amplamente conhecido, de relação entre desmatamento, abertura de estradas e avanço da fronteira agropecuária na Amazônia representa um grande desafio à gestão ambiental do bioma, uma vez que as rodovias são importantes vetores de integração dos municípios da região entre si e com as regiões vizinhas e que as atividades agropecuárias são elementos importantes de geração de renda para a população e do PIB de diversos municípios. Segundo dados dos últimos cinco anos do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), do Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), propriedades privadas, terras públicas não destinadas, áreas sem informação fundiária e assentamentos, juntos, abrangem cerca de 80% das áreas de desmatamento na Amazônia. Felizmente, no interior de Terras Indígenas, Unidades de Conservação e áreas protegidas de outros tipos o desmatamento é bem menor, embora não irrelevante.

Figura 1: Desmatamento acumulado e no ano de 2014 na Amazônia. Extraído de Imazon. Boletim do Desmatamento da Amazônia Legal, 2014 (http://imazon.org.br/wp/wp-content/uploads/2014/12/mapa_sad_nuv_08_2014_bioma.jpg). Dentro das categorias citadas como de maior gravidade, contudo, o comportamento do desmatamento é bem diferenciado. Com relação aos assentamentos, os altos níveis de desmatamento se concentraram em alguns poucos assentamentos. Segundo o Imazon/SAD, no ano de 2014 apenas em seis assentamentos a área desmatada ultrapassou dois quilômetros quadrados, sendo que em dois deles os valores atingiram oito quilômetros quadrados. Tais dados evidenciam o caráter concentrado do desmatamento em assentamentos, desmistificando o papel dos assentamentos para o desmatamento. Apesar dos números relevantes, a concentração aponta para a hipótese de que a gravidade do desmatamento em assentamentos se dê em casos pontuais, onde pode haver carência de condições para implantação de modelos que favoreçam o uso sustentável dos lotes.

No caso das propriedades privadas, temos, em muitos casos, o acúmulo de práticas de desrespeito à legislação ambiental vigente, especialmente no que se relaciona à manutenção da cobertura vegetal nativa em Áreas de Preservação Permanente, Reservas Legais e demais áreas sujeitas a normas específicas. O aumento da fiscalização e do monitoramento vem refletindo uma redução desse quadro, conforme indicam dados de monitoramento do Inpe e as iniciativas associadas ao Cadastro Ambiental Rural, que, entre outros elementos, torna obrigatória a delimitação das áreas protegidas no interior das propriedades. Apesar dos esforços, ainda estamos longe do que pode ser considerado um quadro aceitável em relação ao desmatamento em propriedades privadas. Em parte, isso se deve à dificuldade de se associar valor de mercado à floresta em pé. As áreas limpas, prontas para inserção de gado, ou monoculturas, como a de soja, são mais valorizadas do que as de propriedades com ampla cobertura de floresta. O panorama para alteração desse quadro é ainda nebuloso, uma vez que sistemas produtivos associados à floresta ainda são pouco incentivados e recebem poucos investimentos e apoio técnico, se comparados ao modelo de pecuária extensiva e monocultura de grãos. Esse quadro se perpetua, mesmo com a grande quantidade de estudos e indicadores que apontam para a produção de menor porte, diversificada e de menor impacto socioambiental como um ator imprescindível para a segurança alimentar no Brasil. Ou seja, há uma relação clara entre a concentração de terras e o modelo produtivo extensivo/monocultor e a intensidade e extensão do desmatamento, tornando a questão dos arranjos espaciais fundiários de extrema pertinência para a questão. Com relação à terra pública não destinada e terras sem informação fundiária, estamos lidando com categorias que sofrem pressões de características muito semelhantes, culminando com o desmatamento. A situação de instabilidade (ou insegurança) fundiária gera um cenário por vezes aparente, mas, infelizmente, muitas vezes real de impunidade quanto aos crimes ambientais, o que favorece práticas que não se restringem ao desmatamento por corte raso, mas também por corte seletivo, atividades de caça e pesca ilegais, garimpos, entre outras. Em tais casos, a questão fundiária é protagonista no surgimento e continuidade desses cenários desfavoráveis ao controle do desmatamento ilegal e outros graves problemas sociais e ambientais do bioma. As áreas em questão são alvo não apenas de incursões para atividades ilegais, mas também da prática da grilagem, que, associada à especulação e valorização da terra limpa, acentuam o desmatamento.

Há uma relação direta entre o planejamento, a gestão e o ordenamento fundiário e a capacidade de fiscalização, monitoramento e responsabilização por ações ilegais. A precariedade do quadro fundiário favorece a ilegalidade e prejudica o planejamento de ações com vistas ao controle do desmatamento ilegal. Tem impacto negativo, também, sobre a capacidade do poder público e da sociedade civil de implementar estruturas produtivas de baixo impacto socioambiental que se insiram de maneira competitiva no mercado regional, nacional e internacional. Poderíamos, ainda, abordar de forma mais específica os reflexos socioeconômicos da questão fundiária na Amazônia que prejudicam a qualidade de vida da população e seus arranjos produtivos, especialmente nas áreas rurais. Mas, no presente texto, apenas ratificamos, em consonância com o que diversos estudiosos, especialmente do campo da geografia agrária e da sociologia, afirmam: esses impactos socioeconômicos retornam, com rebatimento direto sobre o desmatamento, como, por exemplo, a extração e comercialização ilegal de madeira. A precariedade do cenário fundiário é, sem dúvidas, uma das questões mais complexas associadas ao desmatamento. A terra, além de ter um valor comercial, é a matéria-prima para a produção de toda a base alimentar, é parte indissociável da identidade cultural de diversos povos, é o canal de acesso a diversos recursos naturais indispensáveis e, consequentemente, é fonte de poder e influência sobre as decisões políticas de gestão e planejamento do território. Infelizmente, não é incomum que indivíduos envolvidos em irregularidades fundiárias e ambientais ocupem importantes cargos nos poderes executivos e legislativos dos municípios. O Município tem um papel importante na resolução dessas questões. Apesar de boa parte das políticas fundiárias se originarem na esfera federal, há diversas frentes nas quais a atuação do Município é, quando não obrigatória, de grande relevância. O licenciamento de atividades locais, a execução do Cadastro Ambiental Rural, o monitoramento e a fiscalização de atividades de extração e comercialização de produtos florestais, a regularização ambiental de lotes rurais, o planejamento do uso da terra são alguns exemplos dessas frentes. Iniciativas como as do Programa de Qualificação da Gestão Ambiental Municípios Bioma Amazônia (PQGA), do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), favorecem o cumprimento do papel do Município em relação à questão fundiária. Além da oferta de consultoria técnica e jurídica, de apoio à atuação do Legislativo e da articulação intermunicipal, o programa oferece capacitação, na forma de educação a distância, sobre temas relacionados à gestão ambiental municipal na Amazônia. Vários dos cursos oferecidos tratam de assuntos relacionados à estrutura fundiária e seus problemas, bem como de instrumentos acessíveis aos Municípios para lidar com tais desafios.

Em síntese, trata-se de um quadro em que as relações de poder (político e econômico, se é possível abstrair tal separação no contexto), as questões fundiárias e o desmatamento se autoalimentam e geram uma rede de relações entre pessoas e estruturas que perpetuam ações ilegais e os avanços sobre a floresta. Assim, a questão fundiária ocupa uma posição central na questão do desmatamento na Amazônia e se coloca como um dos grandes desafios a serem superados para que caminhemos a passos firmes em direção à eliminação do desmatamento ilegal no bioma. É essencial que esse desafio seja encarado com a devida atenção e intensidade de esforços, à altura de sua complexidade e gravidade. Leia mais artigos