1 ANÁLISE ACERCA DA PRODUÇÃO DE TEXTOS NA SALA DE AULA HELEN CRISTINE BIDO BRANDT DELLOSSO Núcleo deestudos e Pesquisas: Práticas Educativas e Processos de Interação Mestranda Orientadora: Profª Dra. Claudia Beatriz de Castro Nascimento INTRODUÇÃO/OBJETIVOS A escrita não é a realidade, é uma forma de significá-la, portanto é signo: algo que não é e está no lugar do que é. Para Fiorin (2006) não temos acesso à realidade uma vez que tal realidade é sempre mediada pela linguagem, o mundo mostra-se a nós semioticamente, dessa maneira os significados mediatizam semioticamente sujeito e mundo real e é por eles que esse sujeito compreende o mundo e age sobre ele. Somos seres simbólicos e a palavra é mediadora de todo nosso processo de elaboração do mundo e de nós mesmos (FONTANA e CRUZ, 1997, p. 85). Há que se considerar que a produção dos sentidos daquilo que se fala/lê/escreve acontece entre sujeitos organizados socialmente, pois toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém (BAKHTIN, 2004, p.113) independendo da classe social daquele com o qual estabelecemos interlocução. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 2004, p.113). Partindo das afirmações de Bakhtin e pensando do lugar de professora-pesquisadora preocupada com o trabalho com a linguagem na escola, remeto-me ao trabalho escolar com a linguagem, ou seja, é na interação com o outro, mediado pelo texto, que se constrói o sentido, visto que o texto, entendido como linguagem, tem papel central no processo de constituição da subjetividade e da elaboração conceitual na vida e, portanto, na escola também. Neste sentido, educação e linguagem se interpenetram e, conforme já apontado por Vygotsky (2005), o desenvolvimento da conceitualização, transcorre no processo de incorporação da experiência geral da humanidade, mediada pela prática social, pela palavra (também ela uma prática social), na interação com o(s) outros(s) (FONTANA, 2000, p.14). Para o autor, a linguagem é uma produção histórico-cultural que vai sendo apropriada, elaborada e transformada discursivamente na dinâmica das relações sociais. Neste sentido, a linguagem é a mediadora do processo de elaboração conceitual pelos alunos, quer seja no processo de leitura extração de informações, quer seja no processo de produção de textos que deem a ver suas compreensões sobre os conteúdos escolares trabalhados ou sobre a própria significação do que vem a ser o papel do produtor de textos na sociedade letrada em que estamos inseridos. Assim, minha preocupação de pesquisadora recai sobre a possibilidade de evidenciar os processos de produção textual que acontecem na escola, envolvendo leitura e escrita no sentido de que a apropriação desses conhecimentos sistematizados acerca da língua portuguesa será constitutiva também de uma subjetividade. Nesse sentido faz-se necessário compreender o sujeito como alguém singularizado, constituído por experiências e saberes diversos que podem e devem ser articulados aos saberes escolares, tornando-os culturalmente significativos, ou seja, há que se explicitar aos alunos que tais conhecimentos poderão mudar suas relações no mundo e consigo mesmos. Segundo Soares (1991) aquele que sabe ler e escrever e maneja bem o processo de produção escrita muda sua condição de ser e estar no mundo. Na condição de produção da sala de aula, o objetivo da professora caminha no sentido de ensinar os alunos a considerarem a importância do processo da produção textual ao mesmo tempo em que o objetivo da pesquisadora para este estudo é compreender os sentidos atribuídos pelos alunos do Ensino Fundamental II acerca das atividades de produção de textos instauradas e mediadas pela professora.
CONCEPÇÕES DE LÍNGUA E LINGUAGEM Ao processo de produção textual os alunos desqualificam as atividades propostas bem como a preocupação com a apropriação da escrita, tal consideração nos remete à importância da reflexão, pelo professor, sobre o trabalho com Língua Portuguesa levando-nos, necessariamente, a pensar sobre as concepções de linguagem que embasam o trabalho do professor. No trabalho com a linguagem, em uma perspectiva discursiva, a compreensão, pelo professor, da linguagem como forma de inter-ação possibilita a compreensão das relações entre os sujeitos no momento em que falam/lêem/escrevem. Nessa perspectiva o estudo da linguagem em funcionamento coloca o professor diante de um diferente posicionamento na sala tal como apontado por Geraldi (1984) e Koch e Elias (2010): o texto também é lugar de interação de sujeitos sociais, que dialogicamente nele se constituem e são constituídos; que por meio de ações linguísticas e atividades sociocognitivas constroem a linguagem e diferentes possibilidades de sentido. Compreender tal princípio nos remete também aos conceitos de Vigotski que nos ensina que a escrita é uma forma de fala mais elaborada (2005, p.179). Segundo o próprio autor a natureza da aprendizagem da linguagem escrita depende de um treinamento artificial que requer a atenção e os esforços de professores e alunos. "A linguagem escrita [é considerada] um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança" (VIGOTSKY, 1989, p.119-120). Um exemplo dado pelo autor que reflete nosso processo mental é o rascunho que escrevemos, considerado como uma consequência do planejamento do que vamos escrever, mesmo que seja somente em pensamento. Isso ocorre porque a comunicação, através da escrita, só acontece por meio das palavras e suas combinações, transformando a fala em uma atividade de forma mais complexa (VIGOTSKI, 2005). Há, portanto, um trabalho a ser realizado pelo professor no que diz respeito às ações do aluno não só com a linguagem, mas também, sobre a linguagem. Geraldi (1997) nos ensina que no processo de compreensão das operações discursivas, os sujeitos realizarão ações que se entrecruzam o tempo todo da linguagem, com a linguagem e sobre a linguagem, isso porque segundo o autor a reflexividade é uma característica essencial da linguagem, já que ela pode se remeter a si mesma. A aprendizagem da língua é já um ato de reflexão sobre a linguagem: as ações lingüísticas que praticamos nas interações em que nos envolvemos demandam esta reflexão, pois compreender a fala do outro e fazer-se compreender pelo outro tem a forma de diálogo: quando compreendemos o outro, fazemos corresponder à sua palavra uma série de palavras nossas; quando nos fazemos compreender pelos outros, sabemos que às nossas palavras fazem compreender uma série de palavras suas. (GERALDI, 1997, p. 17). Pensando bakhtinianamente, podemos afirmar que não aplicamos as palavras do dicionário na vida; a experiência verbal do homem é um processo de apropriação mais ou menos criativo das palavras do outro, minhas palavras alheias e não palavras da língua neutra, uma vez que não somos um "Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear". (BAKTHIN, 2003, p. 179) PRINCÍPIOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS Articular o trabalho docente ao processo de pesquisa é já uma opção metodológica, ou seja, analisar as práticas de ensino de língua portuguesa bem como os processos de significação acerca da produção de textos à luz das perspectivas histórico-cultural e discursivo-enunciativa requer, então, um olhar não somente para as atividades desenvolvidas, mas para as relações que se estabelecem entre sujeitos que estão inseridos na dinâmica interativa, levando em consideração os processos históricos que determinaram tais relações. Isso não é tarefa fácil, visto o grau de complexidade existente na sala de aula. Como referencial teórico-metodológico o estudo se apóia nas perspectivas históricocultural de Vygotsky e discursivo-enunciativa de Bakhtin, portanto, é na relação com o outro, 2
pela linguagem, que o homem se constitui, constrói sua história e é constituído por ela. Dessa forma, torna-se importante conhecer os processos históricos e sociais para se compreender o desenvolvimento humano, indo além das aparências. Estudar as relações entre sujeitos é ir além da condição imediata de produção, portanto, torna-se imprescindível conhecer os processos que o levaram a ser o que é olhando-o em movimento. Optamos pela análise dos processos de ensino-aprendizagem e pelo estudo da origem dinâmico-causal, enfatizando uma análise explicativa e não apenas descritiva. Assim, é na escola que se oportunizam os processos mediadores e interlocutivos sistematizados de aprendizagem que garantirão o acesso a muitos outros conhecimentos que a princípio são ingênuos os conceitos cotidianos não sistematizados - e ao logo do processo de escolaridade, segundo Geraldi, serão substituídos por saberes organizados o que Vygotsky denomina de conceitos científicos. Dessa maneira, é nessa dinâmica da sala de aula em que a palavra é mediadora da compreensão ativa dos sujeitos envolvidos na dinâmica discursiva, que o contexto escolar não é assumido como campo de aplicação, mas como um espaço onde nas relações de ensino é possível observar as operações intelectuais, habilidades e estratégias de internalização dos conhecimentos. Portanto, tendo em vista esses princípios teórico-metodológicos, optou-se neste estudo, por desenvolver o trabalho no contexto de sala de aula, assumindo a ação pedagógica e as interlocuções instauradas como um espaço para o desenvolvimento da análise dos sentidos produzidos pelos alunos nos processos que envolvem a produção textual. Documentando o processo vivido. O registro do processo se dá a todo instante, seja pela enunciação, seja por textos produzidos individualmente ou em duplas a partir de atividades propostas por mim, professora da turma -, na dinâmica discursiva produzida no momento mesmo das aulas. Para tanto, descrevo, na pesquisa, as relações instauradas, os modos de participação dos alunos nessas relações e sua relação com a materialidade dos textos. Também registro, por meio da transcrição de gravações em áudio, a interação verbal produzida entre nós. Nas descrições realizadas no diário de campo, a partir das observações e apontamentos pessoais na forma de lembretes, procuro documentar a dinâmica estabelecida na aula e as formas não verbais que se fizeram presentes nas situações de interlocução, ou seja, os gestos, as expressões faciais de entusiasmo ou falta dele - frente às atividades realizadas -, a postura corporal frente aos diferentes gêneros de texto, suportes de leitura e atividades propostas, os modos de ler e de escrever textos, os modos de pedir a intervenção da professora, os gestos de desistência durante a escrita etc., considerando que o extra-verbal não é a causa exterior do enunciado e sim um constituinte necessário do próprio enunciado (FONTANA; GUEDES-PINTO, 2005, p.10). A PESQUISA propriamente dita. Em uma sala de oitava série (nono ano), tenho trabalhado como professora da disciplina de Língua Portuguesa com alunos entre 14 e 16 anos. Em relação ao cotidiano escolar o trabalho acontece em torno de temas, seguindo o planejamento escolar e a proposta do governo do Estado de São Paulo por meio do Caderno do aluno (material apostilado e entregue bimestralmente pelo governo do Estado de São Paulo e imposto o seu uso). No entanto, conforme os interesses dos alunos variam frente aos acontecimentos cotidianos e surgem oportunidades diversas de leitura e produção de textos, as situações de interlocução também são documentadas. Ainda que muitas vezes esses momentos não possam ser muito explorados por conta do tempo e da proposta que se deve seguir, entendo, com Saviani (2000), que o principal objetivo do professor é possibilitar o conhecimento ao aluno. Esse princípio norteia a organização das aulas e diz respeito à escolha do método a ser utilizado no processo pedagógico, com o intuito de favorecer a compreensão e domínio dos conteúdos trabalhados, 3
no caso desta pesquisa o domínio e manejo da escrita. Para o autor, é a apropriação dos conhecimentos acerca da realidade que proporciona, aos alunos, uma ação coerente frente aos acontecimentos cotidianos e, até mesmo, a busca de uma transformação. Tendo em mente tais considerações, tomo como frente de trabalho, uma investigação relativa aos modos de significação dos alunos acerca do conteúdo que me interessa trabalhar: a produção textual. Preparação para a produção de texto. Este texto socializa algumas reflexões produzidas ao longo da pesquisa que é mais ampla e que se propõe a focalizar, documentar e analisar, nas relações de ensino materializadas na sala de aula, as atividades de produção textual envolvidas na articulação que se processa entre as escolhas relativas aos modos de organização e de circulação dessa prática, pela professora, com as réplicas ativas produzidas pelos alunos. Para a discussão deste artigo, como recorte, o objetivo foi retomar um momento de preparação para a produção de um texto. Após o sinal, troca de aula, terminada a chamada foi apresentado aos alunos um esquema na lousa. Jonathan 1 : É redação, né? Professora: Por quê? Jonathan: Porque tá fazendo a bola. Lucas: Claro que é. Igual aquele dia. Professora: Vou colocar aqui alguns pontos que gostaria que escrevessem para eu saber o que acharam da conversa que tivemos outro dia. Lembram-se? Kaio: Não vou fazer nada não. [Joga a mochila no chão, senta-se, puxa o gorro e debruça sobre a carteira.] Rafael: Escrevê?! Ih! Ferrou maluco! [Continua rabiscando o livro.] Professora: Sentem-se direito. Poxa vida gente! Não percebem que fico chateada com esse descaso? Preciso que escrevam um pouco para mim. Vamos! Já! Vamos, pegando os cadernos, meninos! Acorda Thaynara! Senta Brendon! Brendon: (Vira-se para trás e conversa. Quando advertido pela professora argumenta) Não sei o que coloco?! Carla: (senta-se de lado como em todas as aulas para conversar com outras duas meninas.) Não sei escrever não, dona. Uma tentativa de análise preliminar e parcial Para compreender as interações verbais no momento de preparação para a produção textual em sala de aula, a concepção de Mikhail Bakhtin é também referencial teórico utilizado. O autor enfatiza o papel da interação verbal, da presença não apenas física do outro: Toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro (BAKHTIN, 2004, p.113 destaques do autor). O papel do outro é enfatizado pelo autor, pois por meio deste temos acesso aos signos e a toda produção humana, construída e transformada histórica, cultural e socialmente pelos homens, ao longo de todo processo da Humanidade. A participação dos alunos, seus questionamentos, interesses, dúvidas, desejos, expectativas estão, no momento da aula, relacionados com a estratégia utilizada anteriormente pela própria professora, indiciando alguns modos de interação acerca do momento de instaurar a produção de texto mediada por um desenho esquemático. Deliberadamente, trago para a condição imediata de produção, momentos já vividos que pudessem evocar sentidos que se produziram em aulas anteriores. No entanto, os alunos 4 1 Os nomes dos sujeitos foram alterados para resguardar a identidade dos participantes da pesquisa.
recusam-se a escrever, tanto quando Kaio diz não vou fazer nada não, e Rafael enuncia Ih! Ferrou maluco, quanto por suas posturas Kaio puxa o gorro e debruça sobre a carteira e Rafael continua rabiscando seu livro. Estes gestos de desprezo para com a atividade, provocam a réplica que se produz pela professora, visto que no movimento dialógico, o extraverbal também é constitutivo do sentido que se produz. Há que se destacar também, que segundo Bakhtin (2003) não se diz qualquer coisa para qualquer pessoa, de qualquer jeito. Há o tema, o estilo e o conteúdo a ser dito, demarcado, inclusive, pelos lugares sociais ocupados. Eu disse o que disse, do meu lugar de professora por me entender, como explicitado por Fontana (2001) em "Sobre a AULA, uma leitura pelo AVESSO", que o professor ocupa um lugar bem definido. Ainda que seja democrático, sua posição hierárquica pode antecipar a possibilidade de que seja levado em conta pelos alunos. Sua fala é uma fala de autoridade. Minha forma de enunciar passou, também, sem que eu me desse conta naquele momento, por um sentimento de cansaço da professora que trabalha, quase que diariamente, com o descaso: Não percebem que fico chateada com esse descaso? Segundo Bakhtin, a palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (2003, p.113), o que pressupõe relações sociais. De acordo com os lugares sociais que ocupamos, são modeladas e direcionadas nossas ações e nossos discursos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao considerar que a escrita não é a realidade, mas uma forma de significá-la há que se compreender que somos seres simbólicos e por meio da palavra significamos o mundo e nós mesmos. Metodologicamente, analisar as práticas de ensino de língua portuguesa bem como os processos de significação acerca da produção de textos pelos alunos à luz da teoria histórico-cultural requer, então, um olhar para as relações que se estabelecem entre sujeitos que estão inseridos na dinâmica interlocutiva da sala de aula. Mediada pela prática da pesquisa fui percebendo um outro lugar a ser ocupado pela professora que se preocupa com o ensino da língua para seus alunos. Há que se levar em conta que um trabalho com a linguagem, na escola, requer do professor tanto a preocupação com a sua dimensão discursiva, mas também com a possibilidade de que o sujeito reflita sobre a língua em uma dimensão também mais técnica da linguagem, visto que como constitutiva da subjetividade humana também a apropriação e dominação deste sistema particular de símbolos e signos, conforme já anunciado por Vygotsky (2005), prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural do sujeito. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M.M. Estética da Criação Verbal. SP: Martins Fontes, 4ª ed. 2003.. Marxismo, Filosofia e Linguagem problemas fundamentais do Método Sociológico na Ciência da Linguagem. SP: Hucitec, 11ª ed. 2004. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. SP: Ática, 2006. FONTANA, R.; CRUZ, M.N. Psicologia e Trabalho Pedagógico. SP: Atual, 1997.. Sobre a aula: uma leitura pelo avesso. In: Presença Pedagógica. V. 7, n.º 39, p. 31-37, mai./jun. 2001. GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula leitura e produção. 4ª ed. Cascavel, PR: Assoeste, 1984.. Portos de passagem. 4ª ed. SP: Martins Fontes, 1997. KOCH, Ingedore V. ELIAS, Vanda M. Ler e Compreender os sentidos do texto. 3ª ed. SP: Contexto, 2010. VIGOTSKI, L Semenovich. Pensamento e Linguagem. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.. Formação Social da Mente.Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 5