Physis e Poiêsis Existência e Essência Homem, Natureza e Técnica Daniel Durante Pereira Alves RESUMO: Busca-se, seguindo os passos do filósofo Andrew Feenberg, utilizar duas distinções gregas, a distinção entre physis e poiêsis, e entre essência e existência, para refletir sobre a relação entre homem e natureza e sobre qual é o papel da técnica nesta relação.
0. Introdução Andrew Feenberg é um Filósofo norte-americano que fez seu doutorado com Herbert Marcuse (UCSD-1973 - A Dialética da Teoria e Prática) e que estuda, entre outras coisas, Filosofia da Tecnologia. Em uma conferência de 2003 - O que é Filosofia da Tecnologia - Feenberg faz uma interessante apresentação do que, para ele, é a origem grega da filosofia da tecnologia e, em seguida, apresenta algumas abordagens contemporâneas ao tema e posiciona as suas idéias sobre a tecnologia.
Vou utilizar esta descrição de Feenberg sobre a origem grega e sobre a abordagem contemporânea de senso comum quanto à tecnologia para refletir sobre nossas relações com a natureza. Se faz sentido cogitar algum tipo de separação ou dicotomia entre homem e natureza, então a tecnologia (ou de modo mais geral a técnica) é um dos elementos fundamentais nesta eventual separação. Afinal, se há coisas não é naturais, os produtos de nossa técnica (nossos artefatos) certamente estão entre estas coisas. Vamos começar pelo começo.
1. Distinção grega entre physis e poiêsis PHYSIS: natureza. Aquilo que cria a si mesmo, o que emerge para fora de si mesmo. Mas nem tudo o que existe é physis. Há coisas no mundo que dependem de outras, além de si próprias, para virem a ser. POIÊSIS: atividade prática de produção na qual os seres humanos se engajam quando fabricam algo. Aos produtos da poiêsis chamamos ARTEFATOS. Entre eles estão os produtos das artes, ofícios e até das convenções sociais.
2. A Techne e a Poiêsis TECHNE: conhecimento ou disciplina associado a alguma forma de poiêsis. A medicina é uma techne cujo objetivo é curar o doente. A carpintaria é uma techne cujo propósito é construir a partir da madeira. Para os gregos, cada techne inclui, além dos métodos de produção, um PROPÓSITO e um SIGNIFICADO para os artefatos cuja produção ela guia. As technai mostram a MANEIRA CORRETA de fazer as coisas em um sentido muito AMPLO.
Mesmo sendo dependente da atividade humana, o conhecimento nas technai não está sujeito à opinião ou intenção subjetiva. Até os PROPÓSITOS das coisas produzidas são definidos pelas technai. Os propósitos são, portanto, objetivos. Não dependem de nossa vontade. As concepções modernas e contemporâneas de técnica e tecnologia, originam-se na idéia grega de techne, mas com significativas divergências, que veremos mais adiante.
3. Distinção entre Existência e Essência EXISTÊNCIA: responde à pergunta sobre se algo é ou não é. ESSÊNCIA: responde à pergunta sobre o quê a coisa é. Que algo seja e o que ele é parecem ser duas dimensões independentes do ser. Na tradição da filosofia ocidental tem sido dada mais atenção à essência que a existência. Afinal, para além da alegação de que algo seja ou não seja (de sua existência), qualquer outro esclarecimento parece ser sobre o que é (a essência).
4. Diferenças entre Essência e Existência no Âmbito da Physis e da Poiêsis NA POIÊSIS (Essência x Existência) Separação clara entre essência e existência. Um artefato existe primeiro como uma idéia (que já exprime sua ESSÊNCIA) e só depois chega a EXISTÊNCIA, através da fabricação humana. Mas para entendermos bem isso, precisamos nos lembrar que, para os gregos, a própria idéia do artefato não é arbitrária ou subjetiva, mas pertence a uma techne. Cada techne contém a ESSÊNCIA da coisa a ser feita, anteriormente ao ato de fazer.
A idéia, a essência da coisa é assim uma realidade independente da própria coisa em si, e até do fabricante da coisa. E mesmo o propósito da coisa a ser produzida está incluído em sua idéia, em sua essência. Ainda que nós humanos façamos artefatos, os fazemos de acordo com um plano e para um propósito que é um aspecto objetivo do mundo.
NA PHYSIS (Essência x Existência) A distinção entre essência e existência não é tão clara assim para as coisas naturais. A coisa e sua essência emergem juntas, estão juntas. A essência não parece ter uma existência separada. A flor emerge junto com o que a torna uma flor. Que ela seja, e o que ela é "ocorrem", de certo modo, simultaneamente. Podemos até construir, mais tarde, um conceito da essência da flor, mas isto é uma produção nossa, e não algo essencial à sua natureza, como o é para os artefatos. A própria idéia de uma essência para as coisas da natureza é uma construção nossa. Isto é a base da ciência do conhecimento das coisas (ou, em grego, da episteme).
O conhecimento ativado na techne é muito diferente daquele da episteme. No conhecimento ativado na techne, as essências dos objetos são fundamentais. Afinal, é a partir delas que eles são definidos, produzidos e vêm a ser. Já a episteme, o conhecimento da natureza, parece ser uma atividade puramente humana, à qual a própria natureza seria indiferente. Com esta diferença em mente, vamos dar uma olhada muito rápida para a Teoria das Idéias de Platão.
5. A Teoria das Idéias e a Techne Para Platão, o conceito da coisa existe num reino ideal, independente da própria (materialização da) coisa. As idéias/formas não dependem de suas instâncias para existir. Repare como esta teoria é similar à nossa análise da techne. Na techne as essências imateriais das coisas da poiêsis já estão dadas, independentemente da materialização das coisas. Mas Platão não limita sua teoria das idéias aos artefatos, às coisas da poiêsis. Ela a aplica a todo o ser. O que Feenberg sugere é que Platão utiliza a estrutura da techne para explicar não apenas os artefatos (produtos da poiêsis), mas também a própria natureza (a physis).
6. Homem, Natureza e Técnica p/ Gregos Platão entende a própria natureza como se dividindo em existência e essência, da mesma forma como ocorre com os artefatos. Esta se torna a base da ontologia grega. Nesta concepção, não há nenhuma descontinuidade radical entre a fabricação técnica e a auto-produção natural, porque ambos compartilham a mesma estrutura. A techne inclui propósito e significado para os artefatos. Platão transporta estes aspectos da techne ao reino da natureza, enxergando toda a natureza em termos teleológicos.
A essência das coisas naturais inclui um propósito da mesma forma como ocorre com a essência dos artefatos. O mundo é, portanto, um lugar cheio de significados e intenções. Esta compreensão do mundo e da natureza, exige uma compreensão do homem que lhe seja correspondente. Nós, humanos, não somos os mestres da natureza, mas trabalhamos com seus potenciais para trazer à fruição um mundo significativo. Nosso conhecimento deste mundo e nossa ação nele não são arbitrários, mas são, de uma certa forma, a finalização do que está oculto na natureza.
Há tanto um aspecto TÉCNICO na natureza, a separação radical entre essência e existência, entre projeto e ser, quanto há, também, um aspecto NATURAL na técnica, pois não somos os senhores nem de nossos próprios artefatos. O conhecimento, nas technai não está sujeito à opinião ou intenção subjetiva. Podemos, no máximo, finalizar o que está oculto na natureza. Dessa forma, tomando estas idéias como básicas para a cultura grega, não pode haver distinção alguma entre homem e natureza para os gregos. Cada artefato, produto da poiêsis, apenas chega a ser, a existir, porque sua possibilidade já estava dada em sua essência ideal. Nós, seres humanos, podemos apenas ser instrumentos para a realização dos projetos da natureza. Somos natureza. Somos instrumentos para a realização da natureza.
7. BACON, DESCARTES E A TÉCNICA NA FILOSOFIA MODERNA Estamos, contemporaneamente, em um mundo diferente do mundo dos gregos antigos. Temos um senso comum muito diferente do deles. Coisas que lhes eram óbvias não são óbvias para nós. Continuamos compartilhando com eles as distinções fundamentais entre as coisas que se fazem, a natureza, e as coisas que são feitas, os artefatos, e também entre existência e essência. Mas compreendemos estas distinções de uma maneira diferente da dos gregos.
É comum pensarmos nas essências como convencionais em lugar de reais. ==> Por exemplo, o significado e propósito das coisas é algo que criamos e não que descobrimos. A brecha entre nós, humanos, e o mundo se alargou. Não somos meros instrumentos do mundo, mas conquistamos o mundo. Descartes prometeu que nos tornaríamos "os mestres e possuidores da natureza" através do cultivo das ciências. Bacon reivindicou que "conhecimento é poder". A pergunta principal que nós dirigimos ao ser não é o que é, mas como funciona. A ciência não nos revela as essências das coisas, mas responde à pergunta sobre como funciona.
No contexto moderno, a tecnologia não realiza as essências objetivas inscritas na natureza do universo, como o faz a techne, A tecnologia, na concepção do senso comum, surge como puramente instrumental, como livre de valores. Não responde a propósitos inerentes, mas é apenas um meio a serviço de metas subjetivas que nós escolhemos conforme nossa vontade. Para o senso comum contemporâneo, meios e fins são independentes uns dos outros. Um dos slogans dos grupos defensores das armas é: "Armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas".
Armas seriam um meio independente dos fins que seus usuários concretizam através de seu uso: Posso usar arma tanto para roubar um banco, quanto para proteger a lei. Dizemos que a tecnologia é neutra, significando que ela não tem nenhuma preferência entre os vários usos possíveis aos quais pode ser aplicada. Nesta abordagem, a natureza não é um mundo que emerge para fora de si mesmo (uma physis), mas é matéria-prima, é um estoque de materiais esperando para serem transformados em qualquer coisa que desejarmos.
O mundo é compreendido mecanisticamente e não teleologicamente. Está aí para ser controlado, usado, sem qualquer propósito interno. Fizemos avanços técnicos enormes com base nesta compreensão da realidade. Nada parece nos deter em nossa exploração do mundo. Nossos meios tornam-se sempre mais eficientes e poderosos. Mas para quais fins? As metas de nossa sociedade não podem mais ser especificadas em um conhecimento do tipo da techne ou da episteme, como o foram para os gregos. Elas permanecem como escolhas arbitrárias puramente subjetivas, sem nenhuma essência que nos guie.
Estamos afastados da natureza e esta nossa desnatureza nos separa do mundo, nos distancia do mundo, nos isola. Nossa liberdade nos separa do mundo. Vivemos uma crise. Sabemos COMO chegar, mas não sabemos POR QUE estamos indo e nem mesmo PARA ONDE estamos indo. A Natureza não serve mais para nos guiar. Os gregos viviam em harmonia com o mundo, enquanto que nós estamos alienados dele devido justamente à nossa liberdade para definir nossos propósitos da maneira como desejarmos.
8. NEM NATURAL, NEM DESNATURADO O que Feenberg propõe é que devemos superar esta dicotomia. Nem o determinismo grego, nem a neutralidade moderna explicam nossa situação no mundo. Se, por um lado, não somos meros instrumentos para a finalização da natureza, como acreditavam os gregos, por outro, não temos tanta liberdade para fazermos o que quisermos das coisas que produzimos, como acreditam os defensores da neutralidade. Temos, sim, liberdade para escolher nossos propósitos, mas não liberdade absoluta. Nossos artefatos não são neutros, carregam valores substantivos, que não se adéquam a todas as escolhas possíveis.
Ao mesmo tempo que eles nos dão mais poder, também nos distanciam das consequências imediatas de nossos atos. Eu talvez não tenha coragem de matar alguém empurrando-o de uma ponte com minhas próprias mãos, mesmo que seja para salvar muitas outras vidas. Mas talvez eu tenha coragem de matar esta mesma pessoa, apertando um botão, se eu souber que com isso salvarei muitas outras vidas. A mediação técnica, então, interfere em meus julgamentos morais! Carrega valores! Interfere em nossos valores! Feenberg propõe o que ele chama de "Teoria Crítica da Tecnologia", defendendo que ela é tanto carregada de valores, não se adéqua a todas as nossas escolhas, quanto é instrumento para realizar os propósitos que nós escolhemos, e não mero prolongamento da natureza.
Somos natureza, physis. Fazemos parte das coisas que emergem para fora de si mesmas. Não somos natureza, pois nos engajamos na poiêsis e produzimos artefatos com os quais moldamos o mundo de acordo com nossos propósitos. Mas nossos propósitos não se adéquam a todos os artefatos. Bem, entender melhor como se dá isso,... Talvez em uma disciplina complementar no próximo semestre?!...