Resenha Review. CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão (Org.) Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência Belo Horizonte: Fino Traço, 2012

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Transcrição:

Resenha Review CONDÉ, Mauro Lúcio Leitão (Org.) Ludwik Fleck: estilos de pensamento na ciência Belo Horizonte: Fino Traço, 2012 CARLOS ALBERTO MOURTHÉ JUNIOR Universidade Federal de Minas Gerais UFMG 120 Fleck caracteriza o conhecimento de uma época, de uma sociedade ou mesmo de um grupo ou organização com o que ele chamou de estilo de pensamento. O estilo de pensamento é constituído a partir de atividades sociais desenvolvidas por essa comunidade ou coletivo, o que Fleck denominou coletivo de pensamento. Para ele, o conhecimento não avança por meio de grandes rupturas como, por exemplo, na conhecida concepção de mudança de paradigma de Thomas Kuhn mas de modo incremental, quando ações e ideias trafegam de diferentes modos entre estilos de pensamento criados pelos diferentes coletivos de pensamento. Mauro Lúcio Leitão Condé, na apresentação da obra Ludwik Fleck (1896-1961) foi um médico e microbiologista polonês que realizou uma série de inovadoras reflexões sobre a natureza da atividade científica. Com essa apresentação, Mauro Lúcio Leitão Condé inicia o livro ao qual se dedica essa resenha. Estruturado em sete artigos, ele é um mosaico de olhares sobre a restrita, porém frutífera obra do pesquisador, que publicou seu principal texto em alemão, no ano de 1935 Gênese e desenvolvimento de um fato científico (publicado no Brasil em 2010 pela editora Fabrefactum) mas ganhou notoriedade apenas após a sua morte. A mais ilustre e representativa apresentação de Fleck ao mundo acadêmico aconteceu no prefácio do reconhecido livro de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, onde ele afirma que Fleck, além de antecipar muitas de suas próprias ideias, alertou-o para a importância da sociologia da comunidade científica. A frase de Kuhn, trazida no prefácio de Condé, antecipa alguns dos importantes elemento transversais aos diversificados olhares tecidos nos artigos que constituem esta obra.

Como as mãos desenhadas por M. C. Escher em sua famosa litografia, produtos que se produzem em processo, o pensamento circular de Fleck constitui-se aqui como uma preciosa ferramenta com as quais são feitas visitas reflexivas àqueles que visitam a sua obra. O livro organizado por Mauro Condé sistematiza a emergência de um coletivo de pensamento expressão fundante dos pensamentos de Fleck - que pode ser identificado nas convergências discursivas de um grupo de sete autores em seus respectivos capítulos: Fleck em seu tempo. Fleck em nosso tempo: gênese e desenvolvimento de um pensamento, de Ilana Löwy (INSERM Paris). Ludwik Fleck Sua Vida e Obra, de Johannes Fehr (Universidade de Zurique). Mannheim, Fleck e a compreensão humana do mundo, de Carlos Alvarez Maia (UERJ). Ciência e linguagem: Ludwik Fleck e Ludwig Wittgenstein, de Mauro Lúcio Leitão Condé, (UFMG). Fato e pensamento em Ludwik Fleck e Walter Benjamin, de George Otte (UFMG) Os circuitos de Fleck e a questão da popularização da Ciência, de Bernardo Jefferson de Oliveira (UFMG) Escrever a história para ver e aprender a perguntar: a indefinição produtiva da epistemologia de Luwik Fleck e a história da medicina reprodutiva, de Martina Schlünder (Institut für Geschichte der Medizin in der Charité) Como já foi dito, é com as ferramentas fleckianas que passamos a compreender as reflexões produzidas por esse grupo. Cada um dos integrantes tem suas regulações coercitivas, constituem um estilo de pensamento que traz recursivamente a valorização de elementos centrais da obra de Fleck, dentre eles a discordância de uma objetividade própria das proposições neopositivistas, e uma consequente referência social do conhecimento. A seguinte citação de Fleck: Deixemos pois, a questão da observação sem pressuposições de lado, que psicologicamente, é um contrassenso e, logicamente, uma brincadeira, acompanhada do comentário de Carlos Álvares Maia (p. 74): Deve-se acrescentar: e historicamente é uma fraude falaciosa. O reino ontológico das coisas em si, doravante, encontra-se seriamente ameaçado, ilustram a transversalidade dessa posição epistemológica na obra, bem como o apreço do grupo de autores. Não se pode deixar de ressaltar que, apesar de toda essa coesão em torno desses pensamentos e, por maior que possa ser o distanciamento alcançado pelos autores no que diz respeito às influências de um pensamento neopositivista, todos estão imersos em uma cultura científica forjada pelos próprios fundamentos dessa corrente. Recorrendo novamente à epistemologia fleckiana, os círculos exotéricos nos quais o coletivo de pensamento em que os autores da obra se inserem, podem permear seus discursos e sofrer influências que ofuscam e até criam pontos cegos aos possíveis potenciais inovadores emergentes na obra do médico polonês. Nas palavras de Fleck, citado por Ilana Löwy (p. 25): os pesquisadores não estão isolados do mundo exterior. Eles são afetados por eventos fora da ciência, ao mesmo tempo que interferem neles (um rio que faz o seu leito). Os dois capítulos iniciais, em especial o primeiro, de Ilana Löwy, se dedicam a um aprofundamento do contexto de vida de Fleck. A importância de uma reflexão sobre as conexões sociais presentes nos percursos profissional e pessoal de Fleck são, de acordo com suas próprias proposições, fundamentais para a compreensão dos produtos gerados em seu trabalho. A citação de Fleck por Johannes Fehr (p. 39) evidencia essa convicção: Cognição é a atividade humana que mais depende das condições sociais, e conhecimento é um produto social por excelência. Os detalhes sobre a vida e trajetória profissional de Fleck, pela lente de Ilana Löwy evidenciam um cenário de dedicação à pesquisa biológica aplicada e uma alta produtividade social de seus resultados. Mesmo passando parte de sua carreira subjugado pelo exército alemão levado ao campo de concentração e retirado posteriormente para que pudesse produzir uma vacina contra o tifo, que trazia muitas baixas ao exército nazista a sua carreira em pesquisas imunológicas e microbiológicas possibilitou um fértil terreno para a emergência de sua teoria científica. Para Löwy, sua 121

122 visão marginal, que sempre questionou os protocolos convencionais e a visão dominante a respeito das diretrizes dos estudos imunológicos, baseados nas relações entre estruturas fixas de bactérias (antígenos) e das moléculas bem definidas no soro (anticorpos) (p. 15), integrava o conjunto de elementos formadores de uma visão ecológica, sistêmica, distanciada das tradições de sua época. Segundo Löwy, outro fator que deve ter influenciado na construção de seu pensamento complexo seria a tradição crítica de reflexão sobre a prática médica, desenvolvida pela escola polonesa de filosofia e medicina. Ludwik Fleck sempre foi convicto de que uma construção teórica da ciência deveria necessariamente estar embasada nas atividades cotidianas dos pesquisadores. Apesar de ter construído toda a sua carreira nas interações em uma bancada de laboratório, escolheu como objeto de reflexão uma atividade científica da qual não foi protagonista. A trajetória da emergência da reação de Wasserman exame usado no diagnóstico da sífilis, que teria gerado um novo ramo da medicina, a sorologia foi a referência usada por Ludwik Fleck na elaboração de seu complexo arcabouço epistemológico. E foi refletindo sobre a complexidade do contexto de produção científica que Fleck deixa claro um dos elementos centrais de sua obra a relação entre observador e observado. Para Fehr, a maior contribuição da teoria fleckiana deriva dessa associação imbricada: as reflexões sobre a linguagem. De acordo com esse autor (p. 42), Fleck afirma em uma de suas publicações que com os (então) recentes avanços da teoria quântica, tornou-se claro que toda observação de fenômenos atômicos influencia no curso dos mesmos, no entanto, argumenta que a interdependência entre o observador e observado é ainda mais notável no campo das ciências biológicas. A crítica que Fleck faz a Carnap e outros protagonistas do círculo de Viena, que propunham a utilização da linguagem da física para que outras disciplinas fossem aceitas como científicas, é um dos elementos centrais trazidos por Fehr, rumo à evidenciação da importância da linguagem na epistemologia de Fleck: uma linguagem unificadora de todas as disciplinas não seria um feito da ciência, mas suas extinção (p. 45-6). A pretensão de se construir um completo edifício axiomático da ciência, sustentado em uma realidade objetivamente definida, é relativizada por Fleck quando esse autor integra a dimensão social do observador e sua contínua transformação no processo de observação: É uma correlação viva e ativa, um remodelar e ser remodelado. Para Fehr (p. 46) o trabalho de Fleck pode ser lido como tentativa radical de considerar a multiplicidade de estilos de pensamento coexistentes e divergentes não como um defeito ou obstáculo, mas como um pré-requisito indispensável à prática da ciência com todas as dificuldades de tradução resultantes. O diálogo que Mauro Condé promove entre as obras de Ludwig Wittgenstein e Ludwik Fleck enriquece e reforça a abordagem de Fehr sobre a importância da linguagem na obra dos autores. Para Mauro Condé, a relação do homem com o mundo em Wittgenstein tem um nítido ponto de confluência na obra de Fleck, que reserva um lugar decisivo para a linguagem não apenas na compreensão do conhecimento científico, mas na própria estruturação da nossa ideia de realidade (p. 77). A tentativa de isolamento do objeto pretendida pela lógica e abordagens empíricas, a impossibilidade de existência de um fato isolado, independente dos contextos sociais, a influência da experiência prática sobre as construções na linguagem e a possibilidade de reconhecimento do fato, apenas pela validação de suas conexões sistêmicas, geram um conjunto de elementos de convergência entre as obras de Wittgenstein e Fleck, discutidas em quatro tópicos por Mauro Condé: (1) crítica ao empirismo e ao logicismo, bem como a todo tipo de dualismo; (2) o social como base do conhecimento; (3) a perspectiva pragmática (ou primado da prática); (4) o conhecimento como um processo sistêmico. A discussão sobre esses elementos integradores culmina em uma reflexão, sintetizada pelo título do trecho final do capítulo: O conhecimento é social e o social está estruturado como linguagem. Além do diálogo promovido por Condé entre as obras de Wittgenstein e Fleck, outros dois autores constroem esse tipo de interação. O primeiro deles é Carlos Álvares Maia, que traz um diálogo da obra de Ludwik Fleck com a do sociólogo húngaro Karl Mannheim. Carlos Maia inicia seus comentários definindo a heresia cometida em 1952 por Mannheim, quando propõe, em plena efervescência de ideias neopositivistas, uma teoria do conhecimento que se baseia não nas ciências exatas

mas na história (p. 55). A posição de Mannheim que atinge um cenário onde conviviam sem maiores divergências ou disputas dois modelos cognitivos, o realismo, próprio das ciências da natureza e o relativismo, característico das ciências humanas, cria tal desconforto e reações, especialmente por parte de uma das maiores referências do neopositivismo do círculo de Viena, Rudolf Carnap, que a sociologia do conhecimento é condenada a três décadas de abandono. Esse evento, teria sido, de acordo com Carlos Maia, um dos motivos da invisibilidade da obra de Fleck, publicada em 1935, e que só voltou à discussão depois da emergências de novos contextos (programa forte) e a publicação de Gênese e desenvolvimento de um fato científico, em inglês, no ano de 1979. A obra de Fleck teria iluminado áreas sombrias permeadas por perguntas emergentes à época: de que forma a natureza também participa das negociações que produzem as crenças ao seu respeito? E a natureza, não é ativa? (p. 67), e que, para ele, não teriam encontrado consistência suficiente nos textos de Bruno Latour e Thomas Kuhn. Para Carlos Maia, corroborado por Georg Otte (p. 109), o atrevimento de Fleck consiste em constatar que a existência do fato isto é, a evidência de sua coerção depende do estilo de pensamento do sujeito; de sua percepção. Os conflitos entre os adeptos da teoria ondulatória e corpuscular da luz, desde os tempos de Newton e Huygens até os tempos do alvorecer da mecânica quântica, no início do século XX, são exemplos canônicos, na historiografia da ciência, para essa questão. Os fatos observados por uma teoria que serviam de sua comprovação empírica não sensibilizavam os adeptos da teoria oposta. São dois estilos de pensamento, logo, são dois conjuntos de fatos comprobatórios. (p.69) Georg Otte é o terceiro autor que promove um diálogo entre obras. A produção de Fleck, desta vez é refletida juntamente com a do historiador alemão, Walter Benjamin. A leitura que Benjamin traz da história, não admitindo que há um passado que de fato foi, mas sim um conjunto de reminiscências, é um dos exemplos trazidos por Georg Otte que o aproxima das proposições do médico polonês. Para tecer suas conclusões George Otte ainda lança mão dos fundamentos biológicos da obra do médico: ao contrário de Kuhn, que organiza as mudanças de paradigma como revoluções, Fleck traz uma visão evolutiva para as mudanças, com analogia às mutações. Apesar dessa postura evolutiva, Fleck faz questão de não trazer um pensamento relacionado ao progresso da ciência ou de uma ciência mais verdadeira. Para ele uma variedade de estilos de pensamento não devem ser diferenciados com o critério de verdadeiro ou falso. Os dois últimos capítulos do livro, apesar de serem escritos por autores que, assim como os demais, mostram afinidade e ressaltam a relevância inovadora da obra de Fleck, são os únicos a apontarem críticas mais diretas ao trabalho do autor. O primeiro deles, Bernardo Jeferson Oliveira, por trazer uma discussão sobre a aplicabilidade recente da epistemologia fleckiana, compartilha inúmeras questões implicadas com a adequação contemporânea de suas reflexões, assim como com as dúvidas sobre as extrapolações, que poderiam, inclusive, ter referência em um possível inacabamento da obra do autor. A outra, Martina Shlünder, destaca as críticas do sociólogo Jonathan Harwood, segundo o qual, Fleck apresenta inconsistências conceituais. O capítulo de Bernardo Oliveira traz uma abordagem diferente dos demais. Trata de temas fulcrais da obra de Fleck, porém não tão visitados pelos outros autores: a ciência dos manuais, dos periódicos, dos livros didáticos e os tráfegos intra- e intercoletivo de pensamentos. Além disso, Oliveira se detém prioritariamente na aplicabilidade da epistemologia fleckiana, no que diz respeito à compreensão da dinâmica de produção do conhecimento científico. Bernardo Oliveira inicia sua abordagem trazendo um comentário à citação lacônica de Kuhn no prefácio da edição em inglês de Gênese e desenvolvimento de um fato científico (p. 126): Kuhn reconhece, relendo a obra décadas depois, que provavelmente havia se inspirado mais nela do que registrou em seus escritos. Apesar de reconhecer a importância de Kuhn, Bernardo Oliveira revela a complexidade de contribuições de Fleck no âmbito da educação científica a partir da seguinte pergunta: Em que medida as práticas educativas e de divulgação científica fazem parte da ciência? (p. 123) O último capítulo, de Martina Shlünder, é o relato de uma experiência de aplicação da epistemologia fleckiana sobre a seguinte pergunta, ligada ao contexto médico: a partir de quais estruturas epistêmicas, sociais e políticas, verifica-se a reprodução e a fertilidade como objetos médicos e científicos? Partindo daí, Martina Shlünder faz um trajeto de visita 123

ao potencial de utilização da teoria da ciência de Fleck, bem como se utiliza das críticas de Jonathan Harwood, para tecer detalhes de contraponto a esse autor, enaltecendo e trazendo mais vigor ao trabalho de Fleck. Shlünder, quase ao final de seu artigo, faz duas referências pouco discutidas em todo o livro. Uma delas diz respeito ao uso da palavra pensamento nas expressões centrais de Fleck: estilo e coletivo de pensamento. Para ela a palavra não traz apenas a dimensão do senso comum contemporâneo: Essa ênfase no pensar não é apenas sobre as ideias e pensamentos, mas como nos mostra o livro de Fleck também no movimento de materiais, práticas, ferramentas, substâncias (p. 152). Outro elemento interessante manifestado pela autora diz respeito ao sentimento e o humor presentes na obra do médico: Foi dito por sua viúva que Fleck, na escrita de seu livro, riu bastante (p. 152). Esta resenha, à luz da epistemologia fleckiana, mostra uma interação com um livro tecida por meio de um estilo de pensamento. As reflexões sobre o objeto, indissociáveis do olhar do observador, trazem apenas mais elementos para que a visita do leitor a essa enriquecedora obra amplie o coletivo de pensamento formado por tão interessantes olhares diversos que convergem. Esse livro traz à comunidade brasileira um importante enriquecimento no que se trata de uma abordagem epistemológica e historiográfica. Cada vez mais visitada e ainda relativamente pouco explorada, tendo em vista todas as potencialidade de emergência da obra, as proposições de Fleck, pouco a pouco emergem em coletivos de pensamentos que se intercambiam e apontam para um sentido de convergência e integração em um sistema social tão pautado pela divergências e intolerância. 124