O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Cesar Sabino



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Transcrição:

O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Cesar Sabino Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais IFCS. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia PPGSA. Orientadora: Prof.a Dr.a Mirian Goldenberg. Doutora em Antropologia Social. Museu Nacional. Rio de Janeiro 2004

2 Sabino, César O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Rio de Janeiro:UFRJ/PPGSA, 2004. 366p.il. Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA 1.Esteróides anabolizantes. 2. Drogas. 3. Fisiculturismo. 4. Corpo. 5. Construção de Identidade. 6. Antropologia. 7. Tese Dout (UFRJ/PPGSA) I Título

3 Agradecimentos Uma tese de doutorado nunca é uma produção individual, sua elaboração envolve a participação direta ou indireta de muitas pessoas. O exemplo de profissionalismo, atenção e dedicação tive a sorte de encontrar aqui no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) na pessoa da minha orientadora Mirian Goldenberg. Não tenho palavras para agradecer sua grande paciência, valiosa orientação e também o grande e constante incentivo que nos momentos mais difíceis sempre me proporcionou, não me deixando esmorecer no meio do caminho. Também, gostaria de agradecer à Professora Madel Therezinha Luz pela oportunidade de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre Racionalidades Médicas no Instituto de Medicina Social da UERJ e de suas exemplares aulas na mesma instituição. Durante este rico período de aprendizado desenvolvi não apenas meu interesse pelas estudos sobre corpo, gênero e saúde, mas também o interesse pelas Ciências Sociais. Com ela comecei a desenvolver o gosto e o respeito pelo ofício de pesquisador e professor nos idos de 1994. Para com as professoras Madel Luz e Mirian Goldenberg tenho uma imensa e inefável dívida. A elas minha incomensurável gratidão, respeito e admiração. Agradeço muito, também, aos professores Marco Antônio Gonçalves e Elsje Maria Lagrou as sugestões fundamentais, o atencioso carinho, as aulas repletas de questionamentos antropológicos, nas quais a tecitura do pensamento se fazia sempre presente, e as revistas importadas sobre cultura física do início do século XX trazidas da Europa que me foram gentil e generosamente presenteadas. Documentos fundamentais na elaboração de parte dessa tese. Ao professor Luis Fernando Dias Duarte gostaria de agradecer os conselhos e as pacientes sugestões sobre textos e temas importantes por ele

4 indicados e que também foram fundamentais para a elaboração desse trabalho. Agradeço ao programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ) pela acolhida em suas instalações e às funcionárias da secretaria, e amigas, Denise e Cláudia pela atenção e o carinho sempre dispensados. À CAPES agradeço a bolsa concedida, sem a qual a dedicação ao trabalho de pesquisa não poderia ter sido realizado com o aproveitamento devido. Aos meus amigos Marcelo Peloggio, Washington Dener, Marcus Siani, Andréa Osório, Sônia Beatriz e Marcelo Silva Ramos agradeço a vivacidade do pensamento (não apenas crítico, mas criador), o companheirismo e a paciência que só amigos de verdade possuem. A eles também agradeço as indicações bibliográficas, as sugestões e as críticas que foram muito úteis para a elaboração deste trabalho. À Cláudia Bomfim da Fonseca não tenho palavras para agradecer sua dedicação, a inestimável ajuda com a informática, as fotografias tiradas durante o trabalho de campo, as sugestões temáticas, o companheirismo, a paciência, e a compreensão. Á ela minha admiração, meu amor e meu carinho. Agradeço a minha mãe Irani Sabino, meus amigos e familiares, que suportaram minha inconstância (e aparente distância) durante a elaboração desta tese, mesmo sem entender o porquê dela, ou mesmo sua finalidade. Agradeço, também, a atenção de todos os amigos das academias que freqüentei durante o trabalho de campo: os professores Gustavo Lopes e Ricardo Barguine, Rafael Pacheco, Wolney Teixeira, Renata Bérenger, Márcia Novak, Tatiana Amaral, Nina Aielo, Luca Paes Leme, Rafaello, Fabrício, Luís, Rafael e tantos outros que aturaram o olhar intrometido e as perguntas freqüentes de um pesquisador.

5 ABSTRACT The aim of this thesis is to comprehend the word vision and the social organization of bodybuilders at the Rio de Janeiro s Gyms. It intends to understand the sense of the drugs use (steroids), remedy use, diets use, and health marketing to makes the bodybuilder person through the passage rituals. It enphazise, also, the transit among the steroids and other drugs like marijuana and cocaine at the gyms, exploring the interfaces of drugs consumerism and a new health ideology with anomic violence. Resumo O Objetivo desta tese é compreender a visão de mundo e a organização social dos fisiculturistas das academias do Rio de Janeiro. Procura entender o sentido do uso de drogas (esteróides anabolizantes), remédios, dietas e o mercado da saúde. Itens que participam na construção da pessoa do fisiculturista por intermédio de rituais de passagem. Enfatiza, também, nestas instituições, a relação entre o uso de esteróides e drogas como maconha e cocaína, explorando a ligação do consumo destas com a nova idologia da saúde e a prática da violência anômica.

6 Nous avions conscience que la connaissance du sport est la clé de la connaissance de la societé. Norbert Elias Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas Nietzsche

7 ÍNDICE Apresentação 10 O Corpo Utópico 13 Capítulo I O Surgimento do Bodybuilding 28 Heróis Fundadores 37 A Gesta de Arnold Schwarzenegger 60 Capítulo II O Surgimento dos Esteróides 67 No Reino de Dionisos 76 Droga Hierarquizante 82 Apolo Rei 87 Entre Apolo e Dionisos 91 Capítulo III Ética e Estética do Esteróide 97 Do Ascetismo ao Hedonismo 110 Drogas Masculinizantes e Individualismo 121 O Complexo de Piegan 124 Ritual e Construção de Pessoa no Fisiculturismo 127 Capítulo IV Fármacos e Formas. Breves Notas Etnográficas 131

8 A Química da Forma 141 A Farmácia de Adonis 158 A Forma da Dor 169 A Lógica Classificatória Muscular 178 Séries de Repetição: A Divisão do Trabalho Muscular 199 Capítulo V Comendo como Bicho: Publicidade, Mito e Grastro(a)nomia 207 Dieta Forte 211 Publicidade e Forma 224 Mito e Mídia 228 Mitos da Forma 233 Mercadorias Classificatórias 238 Imagens e Palavras 244 Raios e Leões 248 Fábrica e Mecânica de Corpos 250 Capítulo VI Tatuagens: A Hierarquia da Epiderme 257 Pele de Homem. Pele de Mulher 262 Tatuagem e Lógica da Identidade 271 Magia Capilar ou A Louridade da Loura 276 O Cabelo do Malhador 279 A Loura Virtual 283

9 Capítulo VII Elogio à Barbárie 292 Violência Difusa 295 O Status da Briga 298 Violência Anômica 309 Considerações Finais 325 Referências Bibliográficas 329 Anexos 343

10 Apresentação Este trabalho tem como objetivo compreender a construção social do corpo nas academias cariocas de musculação e fisiculturismo, buscando aprofundar questões levantadas durante a elaboração da dissertação de mestrado Os Marombeiros. Construção de Corpo e Gênero em Academias de Musculação, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS) no ano de 2000. A dissertação, uma etnografia que buscou focalizar o cotidiano das academias de musculação da Zona Norte do Rio de Janeiro (Tijuca, Andaraí, Grajaú e Vila Isabel), destacou as relações de gênero e o uso de esteróides anabolizantes relacionado à construção da forma física nestas instituições. A análise de tais questões, embora ainda ligadas ao estudo sobre a hierarquia estética do grupo e o uso de drogas, deteve-se no subgrupo específico dos fisiculturistas (e não nos freqüentadores das academias de musculação, em geral, como havia sido desenvolvido anteriormente), focalizando e aprofundando aspectos tais como o simbolismo relacionado à alimentação do grupo, o uso de suplementos alimentares, o trânsito do uso de esteróides (denominados drogas apolíneas na dissertação de mestrado) para o consumo de drogas como a maconha e a cocaína (estas, por sua vez, denominadas drogas dionisíacas), as perspectivas míticas suscitadas pela propaganda e pelo marketing direcionado à manutenção da saúde e boa forma, o sistema simbólico expresso pelas tatuagens, o simbolismo ligado à coloração capilar e o elogio à violência. A pesquisa da tese de doutorado ampliou o espectro de academias incluindo instituições do bairro de Copacabana. O direcionamento da pesquisa para tais academias ocorreu devido ao fato de neste bairro localizar-se o maior número de academias freqüentadas por fisiculturistas, homens e mulheres, na cidade do Rio de Janeiro, atualmente. Entendendo-se por fisiculturistas, não apenas os freqüentadores de academias de musculação e fitness, em geral, mas indivíduos que se destacam do resto dos freqüentadores por dedicar grande parte do seu tempo desenvolvendo massa muscular muito acima da média, além de participarem, mas não

11 necessariamente, de campeonatos ou competições de bodybuilding. Sendo tal grupo o maior representante de aficcionados pelo desenvolvimento muscular, tendo a forma física como, se não a maior, a principal preocupação de suas vidas, determinadas dimensões existentes de maneira não muito significativa em outras academias (nas quais participam em número reduzido) puderam ser melhor analisadas e pesquisadas nestas instituições de Copacabana nas quais representam contingente significativo. Esta tese de doutorado é o resultado de 54 meses de pesquisa (trabalho de campo) em 10 academias de musculação e 2 de fisiculturismo da Zona Norte e Zona Sul cariocas: 4 academias no bairro de Vila Isabel; 3 academias no bairro da Tijuca; 2 no bairro do Grajaú; 2 em Copacabana e 1 no Andaraí. As duas academias de Copacabana pesquisadas são exclusivamente freqüentadas por fisiculturistas. No entanto, também foram pesquisados os grupos de fisiculturistas que freqüentam as academias de musculação da Zona Norte. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200 homens e 110 mulheres) com idade entre 16 e 55 anos. Porém, apenas duas entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo todos os outros relatos e conversas escritos em cadernos e diários de campo, imediatamente após o pesquisador deixar os locais de pesquisa. Foi priorizada a abordagem baseada na observação participante. Os comportamentos e as falas descritas são os dos fisiculturistas, e simpatizantes do fisiculturismo, em seu mundo cotidiano ou habitat natural, como escreveu Wacquant (2001) em seu livro sobre os boxeurs. A tese está organizada em sete capítulos. É apresentada uma breve etnografia ressaltando determinadas características consideradas fundamentais para a construção do modelo de academia descrito no relato. Esta pequena etnografia ressalta a importância, relatada pelos próprios usuários, do uso dos esteróides anabolizantes e outras drogas para a construção da identidade do grupo relacionada às suas aspirações e visão de mundo, considerando-se seu histórico e a dimensão simbólica do seu uso. Inicialmente é apresentado um breve histórico do fisiculturismo, seu surgimento, a consolidação do campo, seus ícones e sua projeção

12 internacional, destacando a função de um mito de referência para os bodybuilders: a gesta do herói Schwarzenegger. A história do fisiculturismo no Brasil não foi abordada, pois não encontrei nada de significativo sobre ela. Fato que já sugere a realização de outra pesquisa abordando apenas este aspecto. Logo após é considerada a dimensão simbólica do uso de esteróides tratado como um novo tipo de uso de novas drogas. Uso relacionado ao processo de medicamentalização de parcela significativa da cultura atual. Cultura que tende, como sugeriu Sfez (1995), a elaborar uma utopia da saúde. Também é realizado um breve histórico do surgimento dos esteróides introduz a questão do uso do discurso científico pelo mercado da forma física e dos suplementos alimentares. Em outro capítulo destaca-se o papel da publicidade relacionada à construção e manutenção dos mitos corporais modernos e sua relação com as práticas alimentares dos freqüentadores assíduos das academias de fisiculturismo. A pesquisa enfatiza o papel simbólico da alimentação e sua relação com a manutenção da forma pelos fisiculturistas, o aspecto sagrado/profano da comida, a demonização da gordura, as classificações alimentares, a consubstancialidade animal (ligada ao uso, por parte dos pesquisados, de vitaminas e drogas para animais por causa da crença de que tal compartilhar confere aquisição de propriedades animalescas consideradas virtudes pelo grupo). Também focalizam-se os significados das dietas e sua relação com o uso dos esteróides - o elixir-mor dos bodybuilders -, o papel da publicidade sobre a comida, os suplementos alimentares e a forma física e sua função classificatória cotidiana ligada à fabricação dos mitos fisiculturistas. Neste ponto, a pesquisa (pautada sobre a análise de propagandas publicitárias) foi influenciada pelo trabalho de Rocha (1995). No capítulo seguinte é relatada também, de forma breve, a experiência pessoal do pesquisador no campo, sua relação com o seu próprio corpo e com as estruturas dos dois campos de inserção profissional: o campo da academia e o insurgente campo do fisiculturismo carioca. É destacado o papel da lógica classificatória das competições e dos exercícios e a relação que estes, e sua lógica, têm com a ordenação da realidade cotidiana do grupo. Nesse âmbito, o

13 simbolismo relacionado a crenças em mau-olhados, superstições e azar marcam sua presença de reencantamento de um mundo onde o ascetismo apresenta-se constantemente. O significado, por exemplo, dos números ímpares na lógica classificatória do grupo é bastante sugestivo. O capítulo posterior dá continuidade a essa análise simbólica focalizando, porém, a hierarquia inscrita não apenas nos músculos, mas na pele dos fisiculturistas por intermédio de suas tatuagens. É ressaltado de que forma tais desenhos e inscrições possuem uma gramática própria traduzindo relações de violência simbólica específicas do grupo, demarcando papéis sociais relacionados ao gênero e à classe social. A seguir, é focalizada a função simbólica do cabelo, a importância do cabelo louro e dos pêlos alourados situados em determinadas regiões do corpo feminino e sua relação com a hierarquia estética das academias. Também é destacado o sentido positivo para os homens da ausência de pêlos, enquanto que para as mulheres a presença de tais itens pode, ao contrário, ter o mesmo sentido positivo. Por fim, o aspecto da violência simbólica traduzida em práticas físicas surge no último capítulo da tese com a análise do cultivo e da exaltação do estilo rústico, por vezes antiintelectual e violento, por parte destas pessoas que cultivam os músculos e o consumo da forma. O corpo utópico Atravessamos uma época na qual o culto à forma corporal ganhou amplitude inédita. Não é mais novidade: músculos definidos e inflados, tatuagens, piercings, implantes de silicone, botox, bronzeado artificial, cirurgias plásticas, estão constantemente presentes no cotidiano das grandes cidades e na mídia atual. Uma espécie de cultura do corpo nos dois sentidos: da forma física e sistema subjetivo vem se consolidando, ao menos em parte, nas sociedades complexas hodiernas, articulando padrões estéticos perseguidos por um crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu corpo. Estes, ao buscarem a construção de um corpo mais adequado aos ideais estéticos hegemônicos ligados à adoração física vigentes nestas sociedades, acabam

14 por construir também uma ética singular diretamente radicada na estética. Corpo como axis mundi. Este processo tem conduzido indivíduos e grupos de determinados extratos sociais a buscarem uma perfeição física obviamente inalcançável - radicada na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, métodos milagrosos e consumismo de produtos da indústria químicofarmacêutica como esteróides e suplementos alimentares, além de vitaminas e fortificantes dos mais variados tipos (Luz, 1997; Del Priore, 2000; Pope, Phillips & Olivardia, 2000; Nascimento, 2003). A preocupação não apenas com a aparência, mas com a forma física, - com o entalhe muscular lapidado a ferro, suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias-, apesar de ser poduzida coletivamente, torna-se carregada de investimento individual. Homens e mulheres famosos anunciam na imprensa e nos programas de televisão, as transformações corporais que decidiram realizar lançando mão de recursos tais como personal trainners, nutricionistas, cirurgiões plásticos e outros profissionais do rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde entendida aqui como boa forma física. De acordo com tal ideal, cada indivíduo é considerado responsável (e culpado) pela sua juventude, beleza e saúde: só é feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um deve buscar em si as imperfeições que podem - e devem - ser corrigidas (Goldenberg, 2002; Luz, 2000). Neste âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado que o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma pode significar, neste fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, disciplina e talento para vencer, galgando os patamares da hierarquia social. A saúde torna-se um mandamento com efeito normalizador e adquire características de uma utopia, entendida, segundo Sfez (1995), como projeto que supera, por sua natureza praticamente religiosa dado seu caráter universalista -, a ideologia. Esta, embora pretenda universalidade é reconhecida pelos teóricos enquanto discurso particular, ou seja, discurso originário de uma parcela específica da sociedade, sendo portanto discurso parcial. No caso das práticas corporais ligadas primordialmente ao paradigma estético esta utopia está atravessada por representações de beleza ancoradas nos valores individualistas da cultura contemporânea. Assim,

15 é a estética, mais que a racionalidade médica e seus modelos (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério sociocultural maior de enquadramento dos sujeitos para determinar se realmente são saudáveis, ou se precisam exercer alguma atividade de saúde, através do estabelecimento de padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do corpo que ao modelo doença/prevenção (Luz, 2003: 5. Grifos da autora). Tais imperativos relacionados a estratégias sociais impelem um crescente número de indivíduos a lutarem contra sua genética e o processo inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma espécie de obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude. Tal obsessão pode ser percebida pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos lançados a cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas inovadoras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos implantes de silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, do consumo de substâncias químicas de tipos variados para diminuir a porcentagem de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em forma de cremes para atenuar as marcas de expressão. Este poder normalizador, padrão de atuação coletiva que leva inconscientemente milhões de pessoas a desejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético, paradoxalmente vai de encontro ao ideal de liberdade individual inerente à representação do individualismo da cultura ocidental 1 (Luz, 1988; 2000; Dumont,1985). 1 -Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, modernidade e Ocidente, consideramos, da mesma forma que Duarte (1999:22), viável a utilização do ponto de vista comparado da hipótese de que participamos de um sistema de significação específico a que se pode chamar, tentativamente, de cultura ocidental moderna, que implica uma certa maneira de perceber e compreender os fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender fenômenos das outras culturas.

16 Este processo gerontofóbico e somatófilo no caso da sociedade brasileira pode apresentar características peculiares ressaltadas por diversos sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuilding 2 amador, as brasileiras e brasileiros articulam recursos técnicos universais para otimizar partes específicas do corpo valorizadas pela sua cultura. Partes tais como nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e peitos nos casos masculinos, são trabalhados por exercícios com pesos para alcançar forma e volume adequados ao padrão estético vigente (Da Matta, 1996). De acordo com Malysse (1999; 2002), a atual expansão das técnicas de construção do corpo no Brasil ao menos no Rio de Janeiro onde o autor realizou trabalho de campo tendem a reiterar as profundas hieraquias sociais disfarçadas pela cordialidade das interações nas quais o contato corporal se realiza sem significar, contudo, proximidade social, de fato. Diz o autor: no contexto do culto carioca ao corpo, este é o portador de valores de distinção social. No Rio, não é apenas a beleza em si que constitui o valor fundamental da distinção social, mas também a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua aparência...essa relação de espelho com o corpo confirma de maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca (...). Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente. Nesse contexto, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em direção ao corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada e 2 - O Bodybuilding ou fisiculturismo pode ser sumariamente definido como uso de exercícios progressivos de força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver uma musculatura específica. Este desenvolvimento é conseguido através de exercícios contínuos realizados com pesos acoplados a barras que podem ser curtas ou longas e/ou em máquinas projetadas para tal. O uso de tais pesos é controlado em conformidade com o objetivo estético do executante. Em geral, a quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo. Relacionado a tal prática existe todo um saber sobre nutrição, fisiologia e uso de remédios e substâncias diversas que circula nas academias de musculação. Este saber geralmente tem por base os conhecimentos científicos ligados à ciência médica ou biomedicina. Contudo, grande parte do conhecimento articulado pelos fisiculturistas e personal trainers é prático, ou seja, apreendido e produzido no cotidiano de tais instituições por intermédio da experimentação intuitiva ou por simples imitação. Assim, uma substância (remédio,

17 esteticamente orientada por imagens-norma ou por uma iconologia desse culto corpo. (2002:131). Tocar-se em quantidade maior do que outros povos em espaços públicos e privados não equivale à proximidade social efetiva, como uma análise apressada poderia concluir. Paradoxalmente, o contato físico com o outro, neste caso, pode significar distanciamento hierárquico e instrumentalização egoísta da alteridade. Neste processo, o problema das representações sociais relacionadas à estética do corpo brasileiro aparecem ligadas à concepção de que este corpo encarnaria uma beleza inigualável, tida como produto nacional (inclusive para exportação como diz o senso comum) que não estaria associada diretamente às questões de reivindicação étnicopolítica 3. Este aspecto alude a uma percepção falsa de democratização, radicada mais em um movimento estetizante, e acima de tudo mercadológico, que de fato político (Fry, 2001; 2002). Não havendo no Brasil vínculo direto entre práticas cosméticas e contestação às formas de opressão sexual ou racial, a questão da beleza surgiria enquanto produto final da miscigenação -, valorizada, neste caso. Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da mulher brasileira, com sua cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas pernas grossas e seu andar malemolente são produto da mistura de raças, tal mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida) um item indicativo da democracia racial brasileira, cultura supostamente capaz de sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente diferenciador: não há beleza maior do que a da mulher brasileira, diz o senso comum nacional. Esta ode à beleza miscigenada da brasileira (Freyre, 1986), - clichê suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum fisiculturista percebe ter funcionado no seu aprimoramento estético é repassado para todos aqueles que desejam alcançar tal aprimoramento. 3 - O trabalho de Bomfim (2002) sugere como prática comum à cultura nacional a manipulação circunstancial da identidade étnica denominada etnia virtual. Este processo ocorre quando indivíduos ou grupos manipulam uma suposta ascendencia minoritária ciganos (no caso específico do trabalho da autora), negros, etc - com o intuito de construir um papel vantajoso em determinado contexto social. Este esteticismo populista pode ser claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para negros em universidades públicas no Brasil mais especificamente no Rio de Janeiro -, situação na qual vários indivíduos considerados brancos se declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente, vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. N.o 244. 20/jan/2003. p.p. 36-7). Rezende e Maggie também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno, etc., tornam-se atribuições que podem variar de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala. (2002:15).

18 de guia turístico que esconde o fato de as percepções estéticas serem produto da socialização -, é imagem dominante na representação da identidade nacional (Edmonds, 2002) radicada no senso comum; muitas vezes contrabandeado para os estudos sociológicos. Tal representação que concebe a beleza da brasileira como produto da miscigenação esquece que a grande maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas mundo afora pelo seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada têm de musas mestiças, ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou italianas: Gisele Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana Weickert, Ana Hickmann, etc. E é justamente tal padrão eurocêntrico de beleza feminina que impera na mídia e que domina, se não na morfologia ao menos na etnia, o campo das academias de musculação. Sendo instituições de classe média as academias pesquisadas expressam as idiossincrasias relativas às visões de mundo dos seus freqüentadores. Tais concepções a respeito das relações étnicas estão de acordo com o que foi percebido por John Norvell. O trabalho do autor coloca em xeque as conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas camadas médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca, destacando a ambigüidade presente no discurso deste grupo que usa de eufemismos para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se claros, alvos, morenos claros, e assim por diante, quando confrontados com suas características européias 4. Como a representação do Brasil é a de uma nação totalmente miscigenada, não se fala de brancura ao menos em discursos oficiais e politicamente corretos - como característica valorizada; assim os informantes evitam referir-se a si mesmos como brancos, mesmo quando descendentes diretos de imigrantes europeus com todas as características inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo, e quando o fazem, é com 4 - Farias (2002) escreve que no Brasil ser bronzeado é símbolo de status. A cor bronzeada, o estar moreno, ou ser moreno, com toda ambigüidade que tal termo possui (e por isso mesmo) é sinônimo de positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, este discurso é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época do verão. Em outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco, ao menos no discurso.

19 incômodo ou constrangimento. Apesar de tal constatação discursiva o trabalho de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a prática difere, algumas vezes, daquilo que é dito: os cariocas de classe média observam que não partilham os valores culturais que constituem o núcleo da nação...em algum momento começam a falar sobre o passado de imigrantes de sua família...apontam, quase com melancolia, que não gostam particularmente de carnaval, festa tão brasileira e miscigenada de inversão, sexo e entrega. Muitas vezes saem da cidade nessa época, fugindo para locais elegantes de veraneio nas montanhas ou na praia. Confessam que não sabem dançar samba. Só as mulatas do morro sabem realmente sambar. Falam sobre o povão, as massas racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria, sua irreverência. Um advogado de classe média alta me disse: Assim como você é gringo aqui, eu também. Apontou para rua e explicou: Meu nome não é da Silva. No uso gíria o tempo todo. Não sambo. Não tenho sangue negro. Este último ponto, relativo à ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora se descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista, essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles preferem fazer referências a parentes imigrantes específicos, e não a parentes negros, mulatos ou indígenas. Reconhecem que sua família de fato não é tão misturada quanto a norma brasileira, embora haja muito provavelmente um parente indígena ou negro em algum lugar do passado. Às vezes admitem que haveria tensão na família se eles ou seus filhos tivessem uma relação sexual pública com uma pessoa de pele escura. Embora a maioria dos homens aponte a mulata como padrão de beleza e alvo de desejo sexual no Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas parecem limitar-se ou a representações, como desfiles

20 carnavalescos ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição e casos secretos, por exemplo. (Norvell, 2002:261). Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e conseqüentemente a mídia, articularem discursos sobre a beleza miscigenada que não condizem na prática com a realidade que elas mesmas reproduzem. Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e freqüentadores das academias de musculação em geral, tal processo é similar. O padrão de beleza apresentado nas representações dos indivíduos mostra-se eminentemente europeu. As representações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas algumas vezes, também a oprimí-lo. Sobre a tríade conceitual beleza juventude 5 saúde 6 um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez mais, empurrados ao consumo de práticas ligadas à boa forma (Del Priore, Op. 5 - A categoria juventude apresenta-se como portadora de ambigüidade que lhe é inerente pelo fato de não gozar de consenso entre os especialistas nem mesmo em termos de delimitação etária. Certo é que, nas sociedades complexas ocidentais, mais especificamente entre as camadas médias urbanas, ela é um signo que reúne um conjunto de categorias relacionadas ao corpo, à vestimenta e ao estilo de vida, ou seja, o conceito juventude assume o aspecto de produto, tendo um valor simbólico calcado em uma estética específica que gera, por usa vez, a produção de significativa variedade de bens e serviços que têm impacto direto sobre os discursos sociais que a identificam, e que também podem ser consumidos por adultos no intuito de estender no tempo sua capacidade de portarem tal signo de juventude. Este aspecto exclui do processo as classes baixas, posto que são os indivíduos de setores médios e altos aqueles que possuem acesso à educação de fato podendo postergar as responsabilidades inerentes à vida adulta, sendo, por isso, capazes de emitir por mais tempo os signos sociais da juventude. Assim, o signo juventude está praticamente restrito, ao menos no Brasil, às camadas média e alta, as quais possuem acesso à educação superior e à moratória na plenitude do termo (Reis, 2000). Nas academias de musculação é possível notar outra manifestação deste signo relativo aos indivíduos da chamada meia idade. Tais indivíduos, por já terem se desfeito das responsabilidades relativas à idade adulta formação de família, criação de filhos, conquista de determinados bens, etc. ou seja, por já terem passado, com relativo sucesso, por tal fase, rearticulam o signo da juventude, como se tentassem readquirir um tempo perdido. Desta forma, em academias de classes mais altas é comum, por exemplo, a presença de senhoras quase sexagenárias com corpos portando todos os símbolos relacionados à juventude. O mesmo pode ser dito dos homens. Certa vez, ao chegar a uma sala de musculação em uma academia da zona sul avistei, virada em minha direção de costas, uma loura alta vestindo colant vermelho. O corpo curvilíneo, definido e bronzeado chamava atenção. Repentinamente ela virou o rosto e percebi que, apesar do corpo jovem, suas feições pareciam ter nascido décadas antes do resto do corpo. Esta mulher lembrava uma pintura cubista a qual os retoques da cirurgia plástica haviam definido as caracterísiticas anacrônicas das partes do corpo. Imediatamente lembrei de um trecho do poema de Bandeira poema no qual o autor ironiza outro trabalho de Castro Alves - chamado Teresa (1996:136):... Quando vi Teresa de novo/ Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo/ (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)... 6 - A OMS define saúde como estado de bem estar físico mental e social, ou seja um estado ideal e, portanto, inexistente em sua plenitude. Na prática, a saúde surge como um paradigma polissêmico e polifônico, um aparente monolito simbólico, até certo ponto ideológico em sua homogeneidade... [representando] um conjunto híbrido de imagens, representações, significados, diretrizes, e práticas sociais sintetizadas (ou sincretizadas)... (Luz, 1999:2. Grifo da autora).