A M U T A Ç Ã O D O S S E N T I D O S 1 9 9 6
também conferência em CiberFestival Lisboa Lisboa, Portugal, A MUTAÇÃO DOS SENTIDOS Emanuel Dimas de Melo Pimenta título: A MUTAÇÃO DOS SENTIDOS autor: Emanuel Dimas de Melo Pimenta ano: Filosofia, estética editor: ASA Art and Technology UK Limited Emanuel Dimas de Melo Pimenta ASA Art and Technology www.asa-art.com www.emanuelpimenta.net Todos os direitos reservados. Nenhum texto, fragmento de texto, imagem ou parte desta publicação poderá ser utilizada com objectivos comerciais ou em relação a qualquer uso comercial, mesmo indirectamente, por qualqueis meios, electrónicos ou mecânicos, incluindo fotocópia, qualquer tipo de impressão, gravação ou outra forma de armazenamento de informação, sem autorização prévia por escrito do editor. No caso do uso ser permitido, o nome do auto deverá ser sempre incluído.
Há algumas questões que vêm imediatamente à mente quando nos referimos à arquitectura e, consequentemente, à significação do espaço. Uma delas é relacionada à ordem. A outra diz respeito à nossa percepção sensorial. Mas, subjacente a ambas há a questão do tempo. Poderíamos resgatar todo o percurso da humanidade, da Antiguidade aos nossos dias, passar pelo papiro formidável acumulador virótico de ideias; pela pedra enquanto interconector temporal por excelência; lembrar a função exercida pelo pergaminho enquanto espécie de último simulacro cósmico do Ocidente em Bizâncio que Panofsky, traído pela cilada da predicação, avaliou enquanto conteúdo e não enquanto estratégia lógica de pensamento. Poderíamos percorrer cada passo do medievo, até a chegada do papel vindo da China, o seu início de fabricação na Península Ibérica e a quase simultânea instauração da prisão de pessoas em substituição à mutilação como repressão ao crime; a súbita transformação da noite em dia, através do relógio mecânico e da iluminação artificial; a velocidade do olho e da roda, e a pavimentação das vias de circulação; o Românico como emergência da visão central e o Gótico como domínio da visão periférica.
Poderíamos então passar pelo Iluminismo não por acaso assim chamado logo depois da imprensa de tipos móveis ter sido inventada por Gutenberg. Poderíamos, ainda, orientar as nossas atenções para a África, tribal, dominada pelo ouvido; ou nos estendermos à Ásia, repleta de fragrâncias responsáveis pela definição de territórios de todas as ordens, inclusive o temporal. Para todo o universo civilizatório que orientemos a nossa atenção, o resultado será o mesmo: a cultura material nada mais é que, em última instância, algo a que poderíamos chamar de cultura sensorial. Uma primeira observação: ordem! Temos estado viciados nos últimos cinco séculos a acreditar que ordem é, essencialmente, ordem teleológica, direccional, intencional e hierárquica. Ordem é, na verdade ou seja, na sua significação primeira apenas diferenciação. Desordem é desdiferenciação, ou entropia. Eros e tanatos.
Assim, estaríamos sempre a discutir uma questão erótica. Não por outro motivo a palavra virtual significa em suas raízes etimológicas virilidade. Portanto, a ordem deste conjunto de ideias não é teleológica a priori, nem confusa ou entrópica, mas uma lógica paratática, por coordenação e dinâmica, através da intermitente abertura de janelas. Trata-se da lógica da cibernavegação. Um turbilhão de janelas que se abrem umas atrás das outras e que permitem um contínuo trabalho de descoberta e elaboração intelectual. Não mais a contemplação passiva. Através dessa iconologia líquida de múltiplas janelas, construímos um modelo de viscosidade para a compreensão da mutação das componentes sensoriais em diferentes culturas ou, se preferirmos, o entendimento do processo de formação plástica de diferentes paletas sensoriais. Trata-se de um modelo combinatório de fácil entendimento. Tudo o que formalizamos enquanto realidade nada mais é que o resultado de um determinado equilíbrio ou desequilíbrio de nossos sentidos, isto é: como percebemos as coisas. O como percebemos, e apenas sob um ponto de vista didáctico, condiciona a formação plástica de patterns neuronais, e portanto de patterns sinápticos.
Apenas sob um ponto de vista didáctico pois ao revelarmos os nossos pensamentos, sob o manto de qualquer linguagem verbal ou não projectamos tais formações em nossas manifestações. O loop sensorial resultante é uma espécie de poderoso atractor estranho. Esse é o sentido daquilo a que chamamos de cosmos. Para os índios Bororo, no Brasil Central, o cosmos está presente na designação plástica das suas aldeias, que replica a imagem do céu e a funde com o compromisso social da função e movimentação das pessoas através de percursos especializados. Em Stonehenge, na Grã Bretanha, ou no cromlech das Almendras, em Portugal, por exemplo, o cosmos é uma quase tradução directa do próprio céu estrelado. Não por outro motivo ainda chamamos, vulgarmente, o espaço sideral de cosmos, revelando uma memória ancestral que lança suas teias aos nossos mais distantes antepassados. Para a Grécia Antiga já não bastam o céu e a natureza das estações climáticas; passa a vigorar um dos códigos da perspectiva que não era plana. Em Roma Antiga, a função das tarefas sociais departamentalizada pela intensificação do uso da visão toma lugar. 6
Mas, há uma coincidência espectacular: o verbo e o alfabeto fonético coincidem na confecção daquilo a que chamamos de civilização Ocidental, ou melhor, do nosso ethos, nosso arquétipo primeiro. O alfabeto fonético, introduzido inicialmente pelos Fenícios, transformado e amplificado pelos Gregos, é uma poderosa ferramenta cognitiva cuja etimologia é invisível ao contrário dos hieróglifos e dos ideogramas cuja natureza etimológica é puramente viusal. O seu sentido último são os sons tornados visuais, num notável exercício trans-sensorial. Ambos, alfabeto fonético e verbo, representaram uma configuração lógica que, através de seus altos e baixos, dos seus momentos mais ou menos intensificados, permaneceu enquanto formato básico válido até ao século XX. Entretanto, com o aparecimento do telefone surge, pela primeira vez, a ideia do tempo real e da desformatação. Isto é: pessoas que podem estar em lugares diferentes permanecendo num único lugar. Tudo o que era estereotipado se torna rapidamente livre de formatos padrão. E se as ideias estavam antes restritas a um determinado contexto territorial, passam gradualmente com o rebaixamento dos estereótipos a obedecer a uma nova dinâmica de tempo.
A aura da obra de arte, desintegrada pelos meios de reprodutibilidade técnica, transfere-se para a informação. Não é mais o objecto que possui a aura, mas, a ideia ou conjunto de ideias, de informação. Da mesma forma não é a ideia ou o conjunto de ideias que dá notoriedade, mas sim a sua síntese na figura da marca. Essa é a imagem primeira do tempo real. Tomada a certa distância, e com alguma cautela, o princípio do tempo assimétrico opondo passado e futuro defendido por vários pensadores, mais parece uma imitação paramórfica do discurso verbal: partículas discretas de informação distribuídas polar e diacronicamente. Ilya Prigogine defende essa visão Aristotélica do tempo com um desconcertante argumento: se não existisse uma tal diacronia, como poderia haver evolução? Richard Feynman e John Wheeler dão uma resposta: tudo dependeria da escala. Isto é, em termos fractais, em que parte do tempo estaria o ponto de máxima sintonia fina dos eventos, no passado ou no futuro? Em lugar nenhum, apenas no campo enquanto saliência ou pregnância. Afinal, qual seria a posteridade possível numa escala tão diminuta de existência?
Para Prigogine, o tempo é subjacente a tudo. E ele tem razão, mas a sua razão está justamente aí dentro do modelo que a elegeu. Para quem exercita frequentemente a visão, a lógica de Prigogine é clara. Para quem exercita a audição como tribos africanas ou da Amazónia ela nada mais seria que um artifício cósmico. Para se ter uma ideia de como o nosso cosmos literário conduziu a uma forte ilusão de divórcio entre aquilo que se entende por percepção sensorial e a nossa concepção de mundo basta lembrar, como exemplo, as experiências que o investigador canadiano John Wilson realizou em 1961 com tribos Africanas. Segundo essas experiências, um indivíduo absolutamente distante da educação literária não é capaz de perceber exactamente o que acontece durante a projecção de um filme de cinema. Ele precisaria de ser previamente treinado, em termos sensoriais, para adquirir uma tal habilidade. O próprio cinema nada mais é que uma peça simbólica fortemente convencionalizada, mesmo quando parece ser realista. Em 1903, apesar dos quatro séculos anteriores de intenso exercício literário, o célebre filme The Great Train Robbery de Edwin Porter provocou desmaios e muita confusão quando George Barnes, no papel de xerife, voltavase para a tela e disparava seu revólver contra os espectadores. 9
A crença de que com o uso intensivo dos meios interactivos como os computadores estaríamos apenas intensificando o uso privilegiado da visão nada mais é que uma aparência uma ilusão que projecta o meio anterior, a literatura, como seu conteúdo. Quando operamos um computador, massageamos tactilmente nossas retinas através da emissão de luz dos monitores. Interferimos na informação com as nossas mãos e os nossos dedos uma integração que deverá aumentar sensivelmente com a popularização do uso das luvas ou outros sensores como possível substituição do mouse. O telefone meio interactivo por excelência simplesmente não é visual. O ciberespaço não representa apenas a degradação da ideia física do espaço fechado e a instauração de uma espécie de ethos planetário na combinação turbulenta de diferentes ethos. Antes de mais nada, ele representa, através da atomização dos estereótipos, um radical redesign de nossa paleta sensorial. A defesa de um determinado contexto étnico se transforma, assim, em puro folclore, tornando obsoleta qualquer ideia de nacionalismo. O artificial é substituído pela Natureza, no seu modo de operar. Não mais enquanto imitação seguindo os passos de Aristóteles e de São Tomás de Aquino, mas a natureza enquanto processo em auto organização. 10
A eliminação dos estereótipos conduz à uma ressacralização da realidade, fenómeno que, algumas vezes, ainda é curiosamente tomado como sacrilégio principalmente em alguns meios artísticos, por aqueles que não são capazes de perceber o verdadeiro papel da arte enquanto desconstrução cultural. O estabelecimento de uma nova condição do sagrado re-introduz, de forma dinâmica, todos os nossos sentidos na acção criativa do dia a dia. Por isso passamos a sentir uma certa identidade com determinados aspectos da vida cultural do Japão, onde a vivência quotidiana tem sido, há vários séculos, uma experiência estética. E estética é exactamente isso: ordem e percepção sensorial. O meio líquido do ciberespaço produz novos nómadas, desta vez virtuais. E se a sua condição primeira é a solidariedade, o nómada não desenvolve uma arquitectura como a convencionamos pensá-la ou mesmo uma escrita. O nómada não reconhece espaços fechados. A arquitectura virtual é, assim, fundamentalmente relacional, dinâmica, trans-sensorial e aberta. Não se trata de uma tentativa de estabelecer um padrão comportamental, como desejaria a antiga lógica hierarquizante. A nova lógica não conhece o apocalipse. 11
Tais transformações sensoriais não apenas tornam obsoletas as ideias de território e da tradição como coisas estanques e isoladas no tempo, como também definem um novo percurso para nossos impulsos mais íntimos. Hannah Arendt observava que entre os Gregos não existia a ideia do desejo, mas apenas a do maravilhamento. Foram necessários alguns séculos de treinamento visual intensivo através do uso do papiro durante o Império Romano para que, apenas no século I, emergisse a ideia do desejo e com ela a do pecado, para não falar de todas as atrocidades cometidas em seus nomes. Afinal, não estaríamos resgatando hoje no desejo a antiga condição do maravilhamento? 12