Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Serviço de Fisiologia

Documentos relacionados
Fisiologia Gastrintestinal

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Disciplina de Fisiologia. Prof. Wagner de Fátima Pereira

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DEPARTAMENTO DE FISIOLOGIA TRATO GASTROINTESTINAL : SECREÇÕES

DISCIPLINA: RCG FISIOLOGIA II MÓDULO: FISIOLOGIA DO SISTEMA DIGESTÓRIO

Fisiologia gastrointestinal

INTESTINO DELGADO SECREÇÕES ENTÉRICAS E PANCREÁTICAS

Digestão e Absorção de Proteínas

SISTEMA DIGESTIVO HUMANO (Parte 4)

DIVISÃO FUNCIONAL DO TRATO DIGESTÓRIO HUMANO

Histologia 2 - Resumo Tubo Digestório

CIÊNCIAS NATURAIS 9º Ano de Escolaridade SISTEMA DIGESTIVO ALIMENTOS E NUTRIENTES MORFOLOGIA E FISIOLOGIA

Estudo Dirigido - Sistema Gastrointestinal

Biologia. Identidade dos Seres Vivos. Sistema Digestório Humano Parte 1. Prof.ª Daniele Duó

FACULDADE DE MEDICINA DEPARTAMENTO DE FISIOLOGIA E FARMACOLOGIA

Monitoria de Fisiologia 2014 Questões fisiologia gastrointestinal

SISTEMA DIGESTÓRIO HUMANO

Prof. João Ronaldo Tavares de Vasconcellos Neto

Hormônios do pâncreas. Insulina. Glucagon. Somatostatina. Peptídeos pancreáticos

Coordenação Nervosa Cap. 10. Prof. Tatiana Outubro/ 2018

Sistema Nervoso Cap. 13. Prof. Tatiana Setembro / 2016

SESC - Cidadania Prof. Simone Camelo

Fisiologia gastrointestinal

SISTEMA DIGESTÓRIO. Prof a Cristiane Oliveira

Sistema Digestório. Prof. MSc. Leandro Felício

09/03/2016. Professor Luciano Hauschild. Anatomia e fisiologia comparada do trato gastrointestinal de aves e suínos

SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO

Importância do sistema digestivo para o equilíbrio do organismo. Exploratório 9 l Ciências Naturais 9.º ano

DIGESTÃO & ABSORÇÃO DE NUTRIENTES

Bases Moleculares da Obesidade e Diabetes. Hormônios e Diabetes

Inervação sensitiva do músculo esquelético e regulação medular do movimento

Regulação nervosa e hormonal nos animais

SISTEMA MOTOR VISCERAL

SISTEMA DIGESTÓRIO 3ª SÉRIE BIOLOGIA PROF. GRANGEIRO 1º BIM

Sistema Digestivo. Prof a : Telma de Lima. Licenciatura em Biologia. "Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.

SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO

Móds. 48 e 49 Biologia B. Prof. Rafa

SISTEMA DIGESTIVO. Vera Campos. Disciplina: Anatomia e Fisiologia. Programa Nacional de Formação em Radioterapia

Aulas Multimídias Santa Cecília. Profª Ana Gardênia

PANCREAS A eliminação do suco pancreático é regulada, principalmente, pelo sistema nervoso. Quando uma pessoa alimenta-se, vários fatores geram

Drogas que atuam no Sistema Nervoso Autônomo. Astria Dias Ferrão Gonzales 2017

Bases celulares da motilidade gastrintestinal

17/11/2016. Válvula em espiral e cecos pilóricos = aumentam área de absorção no intestino. Anfíbios: cloaca; não apresentam dentes; língua protrátil.

Os alimentos representam a fonte de matéria e energia para os seres vivos

FISIOLOGIA GASTRINTESTINAL

Encéfalo. Aula 3-Fisiologia Fisiologia do Sistema Nervoso Central. Recebe informações da periferia e gera respostas motoras e comportamentais.

SISTEMA DIGESTÓRIO HUMANO. Profª.: Jucimara Rodrigues

Organismos autótrofos - produzem o próprio alimento (ex: bactérias, cianobactérias, algas e plantas).

SISTEMA NERVOSO. Prof. Fernando Belan - BIOLOGIA MAIS

Sistema Nervoso Central Quem é o nosso SNC?

Nutrição e metabolismo celular

Fisiologia Animal. Sistema Nervoso. Professor: Fernando Stuchi

Introdução ao estudo de neurofisiologia

Principais constituintes dos alimentos. Glícidos Lípidos Prótidos vitaminas água sais minerais

Móds. 29 ao 34 Setor Prof. Rafa

Biologia. Tecido Epitelial. Professor Enrico Blota.

Fisiologia do sistema nervoso

2.8. Sistema Nervoso e Sistema Hormonal

SISTEMA NEURO-HORMONAL. Ciências Naturais 9º ano Prof. Ana Mafalda Torres

Módulo II.III Fisiologia. Tratado de Fisiologia Média, GUYTON & HALL, 11º Edição. Pâncreas Endócrino

Fisiologia é o estudo das funções e funcionamento dos organismos vivos.

FISIOLOGIA HUMANA. Funções SISTEMA DIGESTÓRIO

Fisiologia do Sistema digestivo

Neoplasias do sistema endócrino

Matéria: Biologia Assunto: Tecidos Animais - Tecido Epitelial Prof. Enrico Blota

REGULAÇÃO E COORDENAÇÃO

PERÍODO ABSORTIVO E PÓS-ABSORTIVO

ENFERMAGEM ANATOMIA. SISTEMA DIGESTÓRIO Parte 2. Profª. Tatiane da Silva Campos

ANATOMIA E HISTOLOGIA DO SISTEMA DIGESTIVO

HISTOLOGIA DO TECIDO EPITELIAL - 3

DISCIPLINA DE ANATOMIA E FISIOLOGIA ANIMAL SISTEMA DIGESTÓRIO. Prof. Dra. Camila da Silva Frade

Sistema Nervoso Autônomo. Homeostasia. Sistema Nervoso Autônomo SNA X MOTOR SOMÁTICO. Sistema Nervoso Autônomo 04/10/2011. Julliana Catharina

Ingestão; Secreção; Mistura e propulsão; Digestão; Absorção; Defecação; Ingestão de Alimento. Processo Digestivo. Processo Absortivo.

Anatomia e Fisiologia Sistema Nervoso Profª Andrelisa V. Parra

ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NERVOSO FUNÇÕES BÁSICAS DAS SINAPSES E DAS SUBSTÂNCIAS TRANSMISSORAS

Farmacologia. Liga de Gastroenterologia / UFC

Ciências Naturais 9.º ano Fonte: Planeta Terra Santillana.

Fisiologia. Iniciando a conversa. Percebendo o mundo. Sistema Nervoso

Órgãos Associados ao Trato Digestório Disciplina Citologia e Histologia II. Docente: Sheila C. Ribeiro Outubro/2016

Neurofisiologia. Profª Grace Schenatto Pereira Núcleo de Neurociências NNc Bloco A4, sala 168 Departamento de Fisiologia e Biofísica ICB-UFMG

FISIOLOGIA HUMANA UNIDADE II: SISTEMA NERVOSO

FISIOLOGIA FISIOLOGIA ANIMAL 4/3/2011 SISTEMAS DO ORGANISMO

FISIOLOGIA DA CONTRAÇÃO MUSCULAR DISCIPLINA: FISIOLOGIA I

FISIOLOGIA HUMANA SISTEMA DIGESTÓRIO

Farmacologia Autonômica colinérgica

Móds. 29 ao 34 Setor Prof. Rafa

CURSO DE IRIDOLOGIA APRESENTANDO SISTEMA NERVOSO SIMPÁTICO E PARASSIMPÁTICO. Prof. Dr. Oswaldo José Gola

Desenvolvimento Embrionário

UNIFACISA Faculdade de Ciências Médicas Curso: Medicina Disciplina: Fisiologia Médica I Professor: Diego Neves Araújo Prova Unidade I

2.3. Sistema Digestivo

Neurônio. Neurônio 15/08/2017 TECIDO NERVOSO. corpo celular, dendrito e axônio

A Diabetes É uma doença metabólica Caracteriza-se por um aumento dos níveis de açúcar no sangue hiperglicemia. Vários factores contribuem para o apare

Sumário. Anatomia funcional do trato gastrintestinal e dos órgãos que drenam nele 1

Anatomia e Fisiologia Animal Sistema Nervoso

SISTEMA HORMONAL. Funções: coordenação do organismo e manutenção do seu equilíbrio

Coordenação nervosa e hormonal COORDENAÇÃO NERVOSA. Prof. Ana Rita Rainho. Interação entre sistemas. 1

Metabolismo Animal. Zoot. M.Sc. Bruno Duarte Alves Fortes Doutorando em Ciência Animal EV/UFG Departamento de Produção Animal

Boca -Faringe - Esôfago - Estômago - Intestino Delgado - Intestino Grosso Reto - Ânus. Glândulas Anexas: Glândulas Salivares Fígado Pâncrea

CIÊNCIAS HUMANAS E SUAS TECNOLOGIAS. voltar índice próximo CIÊNCIAS. Unidade º ANO» UNIDADE 1» CAPÍTULO 3

TECIDO NERVOSO (parte 2)

UNIVERSIDADE DE RIO VERDE FACULDADE DE ODONTOLOGIA PROGRAMA DE DISCIPLINA

Transcrição:

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Serviço de Fisiologia Aula Teórico-Prática REGULAÇÃO NEUROENDÓCRINA DA MOTILIDADE E SECREÇÕES GASTROINTESTINAIS Texto de Apoio Paulo Castro Chaves Prof. Doutor Adelino Leite Moreira Porto, Ano Lectivo 2001 / 02

2 Índice Índice... 1 Regulação da Função Gastrointestinal... 3 Hormonas Gastrointestinais... 7 Distribuição e libertação das hormonas GI... 9 Acções e interacções das hormonas GI... 11 Hormonas candidatas... 14 Peptídeos Neurócrinos... 15 Peptídeos Parácrinos... 16 Aplicação clínica... 17 Regulação da secreção gástrica... 18 Estimulação da secreção gástrica... 19 Estimulação nervosa... 19 Estimulação pela Gastrina... 19 Estimulação pela Histamina... 20 Efeito multiplicativo dos mediadores que estimulam a secreção ácida... 20 Regulação da secreção de pepsinogénio... 20 Inibição da secreção ácida... 21 Fases da secreção gástrica... 21 Conclusão... 22

3 Regulação da Função Gastrointestinal Para o tracto gastrointestinal (GI) exercer as suas diversas funções de motilidade, secreção e absorção necessita de mecanismos de regulação. Embora os sistemas de regulação neuro-humoral permitam integrar essas actividades do sistema GI, a maioria das células musculares e secretoras têm uma actividade intrínseca que lhes confere algum grau de autonomia. Assim, a função resulta da interacção entre os sistemas reguladores e as propriedades locais intrínsecas. Apesar de ser mais conveniente discutir o papel do sistema nervoso autónomo e dos sistemas endócrinos/parácrinos separadamente, nunca é de mais lembrar que na realidade estes funcionam em conjunto. Os peptídeos do sistema GI podem ser endócrinos, parácrinos ou neurócrinos. Os peptídeos endócrinos, ou hormonas, são libertados para a circulação geral e atingem todos os órgãos (excepto aqueles em que existe uma barreira, como o cérebro). Ligam-se a receptores específicos localizados nos tecidos alvo. Existem cinco hormonas GI com função perfeitamente estabelecida: secretina, gastrina, colecistocinina, peptídeo gástrico inibitório (GIP) e motilina. Existe ainda um vasto grupo de peptídeos, denominados por hormonas candidatas, em que não se conhece a sua função fisiológica ou o seu mecanismo de libertação. Os peptídeos parácrinos são libertados pelas células endócrinas e atingem por difusão, através do espaço extracelular, os tecidos alvo vizinhos. Apesar do mecanismo de difusão não permitir a sua acção em tecidos mais distantes, podem actuar sobre largas áreas do tracto GI, porque as células que os produzem e libertam têm uma vasta distribuição. Um agente parácrino pode também actuar sobre as células endócrinas, regulando a libertação dos peptídeos endócrinos. É o que acontece com a histamina, um importante agente regulador que actua de forma parácrina. Alguns peptídeos GI estão localizados em neurónios e actuam como neurócrinos ou neurotransmissores. Um neurotransmissor é libertado perto da célula alvo e apenas tem que difundir através da fenda sináptica. Os peptídeos neurócrinos podem estimular ou inibir a libertação de peptídeos endócrinos ou parácrinos.

4 A parede do tracto GI contém grande número de neurónios formando redes altamente complexas. É enervada pelo sistema nervoso autónomo, que pode ser dividido em sistema nervoso extrínseco e sistema nervoso intrínseco ou entérico. A enervação extrínseca tem origem em neurónios fora do tracto GI, sendo formada por ramos parassimpáticos e simpáticos. As fibras parassimpáticas, até ao nível do cólon transverso, têm origem no núcleo dorsal do vago. A partir daí têm origem em neurónios cujos corpos celulares estão localizados na região sagrada da espinal medula. São fibras pré-ganglionares longas que terminam em neurónios colinérgicos dos plexos submucoso e mientérico do sistema nervoso entérico. Além disso, estes ramos contêm fibras aferentes cujos receptores estão localizados em vários tecidos do intestino. As fibras aferentes terminam no cérebro e na espinal medula. A estimulação parassimpática aumenta a actividade motora e secretora. As fibras simpáticas pré-ganglionares têm origem na espinal medula e terminam nos gânglios pré-vertebrais e para-vertebrais (celíacos, mesentéricos e hipogástricos). Aí têm origem as fibras simpáticas pós-ganglionares. A maioria destas fibras termina nos plexos submucoso e mientérico do sistema nervoso entérico. Algumas fibras simpáticas terminam directamente nas células musculares e secretoras. Também aqui, existem fibras aferentes que se projectam nos gânglios pré-vertebrais e/ou na espinal medula. A activação simpática tem um efeito inibidor na transmissão sináptica do sistema nervoso entérico. A estimulação simpática inibe a actividade motora da muscular externa, mas estimula a contracção de muscularis mucosae e de alguns esfíncteres. Algumas fibras simpáticas enervam os vasos sanguíneos, provocando vasoconstrição. Outras enervam ainda estruturas glandulares da parede GI. As fibras aferentes (intrínsecas e extrínsecas) fazem parte de arcos reflexos locais, regionais e centrais. A nível da mucosa e muscular externa existem quimioreceptores e mecanoreceptores. Os corpos celulares de alguns destes receptores estão localizados nos plexos entéricos, mediando sobretudo reflexos locais. Outros corpos celulares têm uma localização mais central, a nível dos gânglios das raízes dorsais espinais ou do gânglio nodoso do vago, mediando reflexos regionais ou centrais. Esta actividade reflexa permite um controlo fino das actividades motoras e secretoras.

5 Figura 1: Vias reflexas no sistema gastrointestinal A enervação intrínseca é formada pelo sistema nervoso entérico. Os corpos celulares dos neurónios entéricos estão localizados em plexos ganglionares localizados na parede intestinal. Destes neurónios partem numerosas ramificações que formam um vasto conjunto de plexos não ganglionares. Os gânglios estão localizados a dois níveis da parede intestinal: 1. na muscular externa, entre a camada circular e longitudinal (plexo mientérico); 2. na submucosa (plexo submucoso). Os plexos não ganglionares estão localizados a vários níveis, nomeadamente na lamina própria (plexo mucoso), no interface entre a submucosa e a muscular externa ou na serosa. Os plexos são formados por vários tipos de células: - neurónios motores que enervam o músculo liso; - neurónios secretores que regulam a secreção exócrina e endócrina da mucosa; - neurónios sensitivos que respondem ao estiramento, tonicidade, glicose ou aminoácidos; - interneurónios.

6 Os plexos mientérico e submucoso recebem fibras simpáticas e parassimpáticas. Os interneurónios destes plexos estabelecem a ligação entre as fibras aferentes sensitivas e os neurónios eferentes para o músculo liso e células secretoras. Podem, assim, controlar muitas actividades, mesmo quando a enervação extrínseca está ausente. Os sistemas simpático e parassimpático modulam actividades que são controladas pelo sistema nervoso entérico. De uma forma geral, pode-se dizer que o plexo mientérico está mais relacionado com o controlo da actividade peristáltica, e o plexo submucoso com a actividade secretora endócrina e exócrina. Existe uma grande variedade de substâncias que funcionam como neurotransmissores a nível do sistema nervoso autónomo. Algumas destas foram relacionadas com vias específicas, enquanto outras têm um papel fisiológico menos definido. A maioria das fibras eferentes pré-ganglionares extrínsecas contém acetilcolina. Este neurotransmissor exerce a sua acção em neurónios localizados nos gânglios prévertebrais ou no sistema nervoso entérico. A noradrenalina encontra-se em muitos dos terminais das fibras eferentes pósganglionares do sistema nervoso simpático. Também exerce acções directamente sobre neurónios do sistema nervoso entérico. Foram já identificados diversos neurotransmissores nos interneurónios do sistema nervoso entérico (quadro 1), como acetilcolina, serotonina, peptídeo intestinal vasoactivo (VIP), NO e somatostatina. A acetilcolina e as taquicininas (como a substância P) foram identificadas em neurónios que exercem uma acção excitatória sobre as células musculares; o VIP e o NO em neurónios inibitórios para o músculo. Os vasos sanguíneos intestinais também podem ter uma enervação dupla: extrínseca noradrenérgica e intrínseca, por fibras do sistema nervoso entérico. Os mediadores entéricos são, entre outros, o VIP e a serotonina, sendo responsáveis pela hiperemia que acompanha a digestão dos alimentos. Os neurónios entéricos libertam uma grande variedade de mediadores com acção sináptica, parácrina ou endócrina.

7 Polipeptídeo Neurónios motores VIP Substância P CCK Somatostatina Neurotensina Encefalinas Galanina Neurónios secretores GRP CGRP Somatostatina VIP Substância P Principal efeito Relaxamento da frente da onda peristáltica e relaxamento dos esfíncteres Contracção do músculo liso Inibição do esvaziamento gástrico Inibição da motilidade intestinal Relaxamento do músculo liso circular Relaxamento do músculo liso e contracção pilórica Contracção do músculo liso intestinal Libertação de gastrina Libertação de somatostatina Inibição da secreção gástrica e intestinal Estimulação da secreção intestinal Inibição da secreção ácida e estimulação da secreção de pepsina Quadro 1: Polipeptídeos segregados pelos neurónios do sistema nervoso entérico. Hormonas Gastrointestinais O tracto GI é o maior órgão endócrino do organismo. A própria Endocrinologia surgiu com a descoberta de uma hormona gastrointestinal, a secretina. Apesar da actividade da secretina ter sido identificada em 1902, a sua estrutura molecular apenas foi identificada nos anos sessenta. Isto porque as múltiplas formas dos peptídeos presentes no tracto GI e na circulação impediu a definição do número e natureza destas moléculas. De acordo com o conceito tradicional, uma hormona GI é uma substância produzida por um tipo de célula endócrina dispersa por uma região relativamente bem definida do tracto GI proximal. Daqui é libertada para o sangue por um estímulo específico (actividade nervosa, distensão, estimulação química), atingindo o órgão alvo,

8 onde regula a motilidade ou a secreção ou até a proliferação das suas células. A secretina, gastrina e CCK são as hormonas GI clássicas. A nova biologia das hormonas GI continua a afirmar que estas hormonas são peptídeos libertados para o sangue por um estímulo apropriado. Contudo, surgiram novas características reveladas pelas modernas técnicas de biologia molecular: 1. existem múltiplas hormonas agrupadas em diversas famílias; 2. cada gene tem diversos fenótipos; 3. diversos órgãos, para além do tracto GI, exprimem os genes destas hormonas, nomeadamente células neuroendócrinas (da adeno-hipófise, glândula tiróide ou supra-renal), células do sistema nervoso central (córtex cerebral, cerebelo, hipotálamo) ou dos tractos respiratório e urogenital, entre outros; 4. as células processam as pró-hormonas de forma específica, reflectindo a possibilidade de utilizar um gene para a síntese de diversos peptídeos bioactivos. Como já foi referido, existem cinco hormonas GI que têm uma função perfeitamente estabelecida: secretina, colecistocinina (CCK), gastrina, peptídeo gástrico inibitório (GIP) e motilina. Os outros peptídeos são hormonas candidatas. As hormonas GI podem dividir-se, sob o ponto de vista funcional e estrutural, em duas famílias principais. A primeira é formada pela gastrina e pela CCK. Os cinco aminoácidos terminais da extremidade carboxil das moléculas de gastrina e CCK são idênticos. Toda a actividade biológica da gastrina pode ser reproduzida apenas com os quatro aminoácidos terminais da extremidade carboxil. Este tetrapeptídeo é, portanto, o fragmento mínimo necessário para a actividade da gastrina. O fragmento activo mínimo da molécula de CCK é formado pelo heptapeptídeo na extremidade carboxil. A CCK pode activar os receptores da gastrina relacionados com a secreção ácida, também chamados receptores CCK-B; a gastrina pode activar os receptores da CCK responsáveis pela contracção da vesícula biliar, também denominados receptores CCK-A. Cada hormona, contudo, é muito mais potente quando actua nos seus próprios receptores. A acção sobre um tipo particular de receptores depende em grande medida

9 da estrutura da molécula. Se mais semelhante à da gastrina actua nos receptores CCK-B; se mais relacionada com a da CCK actua nos receptores CCK-A. A maioria das hormonas peptídicas tem uma marcada heterogeneidade. Por macro-heterogeneidade entende-se a ocorrência de cadeias peptídicas de vários comprimentos nos diversos tecidos que resultam do diferente processamento pós translacional. Por exemplo, a gastrina que foi isolada pela primeira vez tinha 17 aminoácidos (G17). Mais tarde demonstrou-se que o principal componente responsável pela imuno-reactividade sérica da gastrina era formado por 34 aminoácidos (G34). Ambas resultam do processamento de uma molécula de pro G17 e pro G34, respectivamente. Durante o período interdigestivo (basal), a maioria da gastrina sérica é G34, libertada a partir da mucosa duodenal. Após uma refeição é libertada uma grande quantidade de G17, que constitui um estímulo importante para a estimulação da secreção ácida gástrica. A micro-heterogeneidade refere-se a diferenças na estrutura de um aminoácido, provocadas por sulfatação de resíduos de tirosina da molécula de gastrina, por exemplo. Tal como a gastrina, a CCK tem também grande heterogeneidade. A CCK segregada no duodeno e jejuno é sobretudo do tipo CCK-8 e CCK-12. Os nervos entéricos e pancreáticos contêm CCK-4, enquanto os neurónios cerebrais contêm CCK- 58 e CCK-8. A segunda família é formada pela secretina, VIP, GIP e glicagina. Distribuição e libertação das hormonas GI As Hormonas Gastrointestinais estão localizadas em células endócrinas espalhadas pela mucosa GI desde o estômago até ao cólon. Estas células não estão agrupadas, mas dispersas ao longo da mucosa. Pela natureza da sua distribuição, é praticamente impossível remover cirurgicamente a fonte de uma hormona em particular e examinar os seus efeitos de forma isolada, o que dificulta o seu estudo. As células endócrinas intestinais são membros do chamado sistema APUD (amine precursor uptake decarboxilation). São derivadas de células neuroendócrinas com origem no ectoblasto embrionário. Ultraestruturalmente, as células endócrinas GI têm grânulos concentrados na, base junto dos capilares. Os grânulos fundem-se com a membrana celular e libertam as hormonas em resposta a determinados estímulos nervosos, físicos ou químicos

10 relacionados com as refeições ou com a presença de alimentos no lúmen GI. Estas células possuem microvilosidades na membrana apical que podem conter receptores aos quais de ligam substâncias do conteúdo luminal. A gastrina é produzida pelas células G das glândulas da região do antro gástrico. Também é produzida pelas células das ilhotas pancreáticas durante a vida fetal. Não se sabe se o pâncreas do indivíduo adulto sintetiza gastrina, embora ocorram no pâncreas tumores secretores de gastrina, os gastrinomas. Relativamente à CCK, para além de ser segregada por células endócrinas do intestino proximal, as células I, pode também ser encontrada em neurónios do íleo terminal e cólon. É sintetizada ainda por neurónios do sistema nervoso central, especialmente do córtex cerebral, onde parece estar envolvida nos mecanismos reguladores da ansiedade e do apetite. A secretina é sintetizada pelas células S localizadas nas glândulas da porção proximal do intestino delgado. O gastric inhibitory peptide (GIP) é produzido pelas células K da mucosa duodenal e jejunal. A tabela 2 mostra os estímulos que são fisiologicamente mais importantes para a libertação das hormonas GI. Gastrina CCK Secretina GIP Motilina Proteínas S S O S O Lípidos O S S- S S- Glícidos O O O S O Ácido I S- S O S- Distensão S O O O O Estímulo nervoso S O O O S Quadro 2: S: estímulo fisiológico para a libertação; S-: de importância secundária; O: sem efeito; I: inibe a libertação fisiologicamente A libertação de gastrina é regulada pelo conteúdo gástrico, pela actividade vagal e por factores da circulação sanguínea. Assim, a secreção de gastrina aumenta com a presença de peptídeos ou aminoácidos (especialmente, fenilalanina e triptofano), que actuam directamente nas células G. A atropina não inibe a resposta da gastrina a uma refeição, porque o

11 neurotransmissor das fibras pós-ganglionares parassimpáticas é o gastrin-releasing peptide (GRP) e não a acetilcolina. A secreção de gastrina pode ainda ser estimulada pela distensão gástrica e pelo cálcio sérico. A distensão pura do antro gástrico, por exemplo pela insuflação de um balão, activa receptores antrais que estimulam a libertação de gastrina. Durante uma refeição, este estímulo pode ser desencadeado pela presença de alimentos no lúmen. As proteínas, na forma de peptídeos ou aminoácidos isolados, libertam a gastrina e a CCK. Os ácidos gordos com mais de 8 carbonos ou os seus monoglicerídeos são o estímulo mais potente para a libertação de CCK. Os glícidos não influenciam a libertação de gastrina, secretina ou CCK, mas estimulam a libertação de GIP. O GIP também é libertado pelos lípidos e proteínas. A secretina é libertada quando o ph duodenal é inferior a 4,5. Também é libertada pela presença de ácidos gordos no lúmen intestinal. A libertação de secretina provocada pela acidez é um exemplo dos mecanismos de feedback: estimula a síntese de suco pancreático alcalino que neutraliza o ácido gástrico. Esta neutralização inibe a própria síntese de secretina. A motilina é libertada ciclicamente (aproximadamente de 90 em 90 minutos) durante o jejum. A sua libertação é inibida pela atropina e pela ingestão de uma refeição. Para além de estimular a libertação de secretina, o ácido exerce um importante efeito de feedback negativo sobre a libertação de gastrina. De facto, a acidificação da mucosa antral abaixo de ph 3,5 inibe a libertação de gastrina. Por outro lado, doentes com gastrite atrófica ou anemia perniciosa, patologias caracterizadas pela hiposecreção de ácido, podem ter níveis séricos extremamente altos de gastrina. Existem algumas circunstâncias em que as próprias hormonas podem influenciar a libertação de peptídeos GI. Em circunstâncias fisiológicas normais, esses mecanismos têm pouca importância, excepto a libertação de insulina induzida pelo GIP. Acções e interacções das hormonas GI As hormonas GI têm uma grande variedade de acções, muitas das quais de reduzida importância fisiológica. Os efeitos fisiológicos mais importantes das hormonas GI estão representados no quadro 3.

12 Acção Gastrina CCK Secretina GIP Motilina Secreção de ácido S I I Secreção pancreática de HCO - 3 S S Secreção pancreática de S enzimas Secreção biliar de HCO - 3 S Contracção da vesícula biliar S Esvaziamento gástrico I Libertação de Insulina Crescimento da mucosa S Crescimento pancreático S S Motilidade gástrica Motilidade intestinal Quadro 3: S: estimulação; I: inibição S S S A acção principal da gastrina é estimular a secreção de ácido pela mucosa gástrica. A gastrina liberta histamina das células ECL, a qual aumenta a secreção gástrica ao ligar-se ao receptor H2 das células parietais. Apesar das células parietais exprimirem o receptor da gastrina, estudos na mucosa intacta in vivo mostraram que a influência da gastrina na secreção ácida se deve sobretudo à libertação de histamina. Existe um grande debate sobre o papel da gastrina na regulação do tónus do esfíncter esofágico inferior, mas tudo indica que a níveis fisiológicos seja nulo. Pode também estimular a motilidade gástrica e estimular a secreção de insulina, embora este último efeito surja apenas com refeições proteicas. Uma das funções mais importantes da gastrina é a sua actividade trófica. De facto, a gastrina estimula a síntese de RNA, proteínas e DNA, tal como a proliferação das células da mucosa do intestino delgado, cólon e das glândulas oxínticas do estômago. Se se proceder a uma antrectomia, estes tecidos atrofiam. A administração exógena de gastrina impede essa atrofia. Os doentes com tumores que segregam continuamente gastrina, apresentam uma hiperplasia e hipertrofia da região secretora de ácido do estômago. A gastrina também estimula o crescimento das células enterochromafin-like (células ECL) do estômago, existindo a possibilidade do

13 aparecimento de tumores carcinóides com origem nestas células quando há uma hipersecreção de gastrina. Os efeitos tróficos da gastrina limitam-se aos tecidos GI e são antagonizados pela secretina. O principal efeito da secretina é a estimulação da secreção pancreática de fluído e bicarbonato; um dos principais efeitos da CCK é a estimulação da secreção pancreática de enzimas. Para além disso, a CCK tem um importante efeito de potenciação da acção da secretina. Ambas as hormonas estimulam a proliferação celular no pâncreas exócrino. Para além dos efeitos exercidos no pâncreas, a secretina estimula a secreção biliar de fluido e bicarbonato. Esta acção é também partilhada pela CCK, embora o efeito da secretina seja mais potente. Nos cães, a secretina é um potente inibidor da secreção de ácido estimulada pela gastrina. No humano, esta função tem menor significado fisiológico, embora se torne evidente nalgumas circunstâncias patológicas. A secretina é uma espécie de antiácido natural, já que praticamente todas as suas acções reduzem a acidez duodenal. Para além dos seus efeitos sobre a secreção biliar e pancreática, a CCK regula a contracção da vesícula biliar e o esvaziamento gástrico. É a hormona GI com uma acção mais potente sobre a contracção da vesícula biliar. Tem também um efeito inibidor do esvaziamento gástrico. Juntamente com a secretina, aumenta a contracção do esfíncter pilórico, impedindo o refluxo gastro-duodenal. A secreção de GIP é estimulada pela presença de glicose e lipídeos no duodeno. Em altas doses, inibe a motilidade e secreção gástrica, daí o seu nome. Mas, estudos recentes mostraram que essa actividade inibitória não é significativa nas concentrações fisiológicas. Ao mesmo tempo, descobriu-se que o GIP estimula a secreção de insulina. A glicose administrada por via oral tem um efeito libertador de insulina maior do que a administração intravenosa. Esta observação levantou a hipótese da existência de um factor intestinal libertador de insulina segregado pela mucosa GI. A glicagina e seus derivados, a gastrina, secretina, CCK e GIP têm essa acção. Contudo, o GIP e o glucagon-like polypeptide 1 (GLP-1) parecem ser os únicos factores que estimulam a secreção de insulina em concentrações fisiológicas. A motilina é responsável pelo complexo mioeléctrico migratório que tem início no estômago no indivíduo em jejum, de 90 em 90 minutos, e que se propaga até ao

14 intestino delgado. A sua libertação cíclica para o sangue é inibida pela ingestão de uma refeição. Esta é a única função conhecida da motilina. Hormonas candidatas Como já foi referido, existem peptídeos isolados no tracto GI que podem mais tarde vir a ser classificados como hormonas GI. Existe uma grande variedade de hormonas candidatas, mas apenas três têm, actualmente, interesse fisiológico: enteroglicagina, polipeptídeo pancreático e peptídeo YY (quadro 4). Peptídeo Libertado por Acções Polipeptídeo pancreático Proteínas Lipídeos secreção pancreática de bicarbonato e enzimas Glicose Peptídeo YY Lipídeos secreção gástrica esvaziamento gástrico Enteroglicagina Hexose Lipídeos secreção gástrica esvaziamento gástrico libertação de insulina Quadro 4: Hormonas candidatas O polipeptídeo pancreático (PP) foi descrito pela primeira vez como uma impureza no processo de isolamento da insulina. Do ponto de vista fisiológico, a sua acção mais importante é a inibição da secreção pancreática de bicarbonato e enzimas. O que tem impedido a sua classificação definitiva como hormona GI é a dificuldade em isolar este peptídeo do tecido pancreático, não permitindo, por isso, o esclarecimento definitivo das suas acções. O peptídeo YY (PYY) é libertado pelas refeições, especialmente pelos lipídeos. Existe no sangue em concentrações suficientes para inibir a secreção e o esvaziamento gástrico. Os seus efeitos não parecem ser directos, já que não inibe a secreção estimulada pela acetilcolina ou pela histamina. Inibe, contudo, a secreção estimulada por via nervosa.

15 O gene da proglicagina, a precursora da glicagina, está expresso não só nas ilhotas pancreáticas, mas também nas células endócrinas da mucosa GI (células L). No pâncreas, o principal produto do processamento da proglicagina é a glicagina. Os peptídeos derivados da proglicagina no intestino são: glicentina, oxintomodulina, polipeptídeo relacionado com a glicentina (GRPP), peptídeo glicagina like tipo I (GLP- 1) e II (GLP-2). Todos são segregados para o sangue em resposta à ingestão de glicídos e lípidos. Apenas a oxintomodulina e o GLP-1 têm actividade biológica provada. A GLP-1 é o peptídeo insulinotrópico mais potente que é conhecido. Também inibe a secreção de glicagina, o que também contribui para baixar a concentração de glicose no sangue. Este efeito está preservado em doentes com diabetes tipo 2 não insulinodependentes. Devido a este efeito, o GLP-1 está a ser estudado no sentido da sua utilização como arma terapêutica nestes doentes. O GLP-1 também inibe a secreção e a motilidade GI. Peptídeos Neurócrinos Inicialmente, julgou-se que todos os peptídeos tinham origem em células endócrinas e, portanto, que seriam hormonas ou hormonas candidatas, consoante os seus mecanismos estivessem perfeitamente esclarecidos ou não. Com o aparecimento de técnicas imuno-citoquímicas sofisticadas para a localização dos peptídeos, chegou-se à conclusão que muitos destes estavam antes localizados nos nervos intestinais. Existem três peptídeos neurócrinos com funções fisiológicas estabelecidas: peptídeo intestinal vasoactivo (VIP), peptídeo libertador de gastrina ou bombesina (GRP) e as encefalinas (quadro 5). Peptídeo Localização Acções VIP Mucosa e músculo intestinal Relaxamento do músculo liso intestinal GRP ou bombesina Mucosa gástrica libertação de gastrina Encefalinas Mucosa e músculo intestinal tónus muscular liso Quadro 5: Peptídeos neurócrinos O VIP provoca o relaxamento das células musculares lisas GI. Para além disso, o VIP é responsável pelo relaxamento das células musculares lisas vasculares sendo, portanto, um agente vasodilatador. Está também presente em neurónios colinérgicos do

16 sistema nervoso autónomo, potenciando a acção da acetilcolina nas glândulas salivares. Contudo, o VIP e a acetilcolina não coexistem em outros neurónios do tracto GI. Para além destes efeitos, o VIP tem acções comuns com moléculas de estrutura semelhante, como a secretina ou o GIP. Logo, estimula a secreção pancreática, inibe a secreção gástrica e estimula a secreção intestinal. A bombesina foi isolada pela primeira vez a partir da pele de anfíbios. O seu correspondente no organismo humano é peptídeo libertador de gastrina (GRP). O GRP está presente nos neurónios da mucosa gástrica e é libertado pela estimulação vagal, conduzindo à libertação de gastrina. Os produtos luminais da degradação das proteínas também estimulam a libertação de gastrina através de um mecanismo mediado pelo GRP. Existem duas encefalinas (leu-encefalina e met-encefalina), que diferem em apenas um aminoácido. Activam receptores opiáceos. Estão presentes em neurónios nas camadas mucosa e muscular do tracto GI. Os receptores opiáceos nas células musculares lisas da camada circular têm um efeito de contracção: as encefalinas são responsáveis pela contracção do esfíncter esofágico inferior, pilórico e ileocecal. Os opiáceos lentificam o trânsito intestinal. Estes peptídeos também inibem a secreção intestinal. A combinação destes efeitos é responsável pela eficácia dos opiáceos no tratamento das diarreias. Peptídeos Parácrinos Tal como as hormonas, os peptídeos parácrinos são libertados pelas células endócrinas e são semelhantes aos neurócrinos, porque actuam em receptores localizados perto do local de libertação. A somatostatina foi isolada pela primeira vez no hipotálamo, sendo um factor inibitório da libertação da hormona de crescimento. Desde a sua descoberta demonstrou-se estar presente na mucosa gástrica, duodenal e pancreática em altas concentrações, inibindo a libertação de todas as hormonas GI. Assim, a somatostatina inibe de forma parácrina a libertação de gastrina e, portanto, a secreção gástrica. Tem também um efeito inibitório directo sobre as células parietais. A histamina é o outro agente parácrina mais importante. É produzida pelas células ECL por descarboxilação da histidina. É libertada pela gastrina, estimulando em seguida a secreção de ácido pelas células parietais ao ligar-se a receptores histamínicos

17 tipo 2. Potencia a acção da gastrina e da acetilcolina na secreção ácida. É por esta razão que os agentes antagonistas dos receptores H2, como a cimetidina ou a ranitidina, são inibidores eficazes da secreção de ácido pelas células parietais gástricas. Aplicação clínica Existem tumores pancreáticos produtores de gastrina, libertando-a de forma contínua para a circulação, sem qualquer relação com as refeições. Esta doença é conhecida por gastrinoma ou síndrome de Zollinger-Ellison. A hipergastrinemia provoca hipersecreção de ácido através de dois mecanismos. Por um lado, pela acção trófica da gastrina que conduz a um aumento da massa de células parietais e, portanto, a uma maior capacidade de secreção. Por outro lado, os níveis séricos aumentados de gastrina estimulam de forma contínua a secreção de ácido pela mucosa hiperplásica. As complicações deste síndrome (ulceração péptica fulminante, diarreia, esteatorreia e hipocalémia) são causadas pela presença de grandes quantidades de ácido no intestino. A presença contínua de ácido no duodeno esgota a capacidade de neutralização do pâncreas e provoca erosões e ulcerações da mucosa. Em grandes quantidades, a gastrina inibe a absorção de fluídos e electrólitos, o que origina a presença de maiores quantidades de líquidos no lúmen intestinal. O aumento da trânsito intestinal também contribui para a diarreia. A esteatorreia é produzida pela inactivação da lípase pancreática e pela precipitação dos sais biliares, devido ao baixo ph. A gastrina é determinada por radioimunoensaio. Se o valor normal de gastrina no sangue for de 50 pg/ml, a gastrina sérica em doentes em jejum com gastrinoma excede 200 pg/ml. Contudo, existe alguma sobreposição entre os valores de gastrina em doentes com gastrina e úlcera duodenal péptica, o que pode originar falsos positivos. É necessário, por isso, recorrer a testes mais específicos, como a estimulação com refeições proteicas, infusões intravenosas de cálcio e de secretina. Doentes com gastrinoma não libertam gastrina em resposta à refeição. Isto pode ser provocado pelo baixo ph do conteúdo gástrico devido à estimulação pelos níveis já elevados de gastrina. Os doentes com gastrinoma têm uma resposta exagerada a infusões de cálcio, devido à libertação de gastrina pelo tecido tumoral. Estes teste é realizado através de

18 uma infusão de gluconato de cálcio durante três horas. Simultaneamente, mede-se a secreção de ácido e colhem-se amostras de sangue em intervalos de uma hora, para determinação da concentração de gastrina. O pico de secreção da gastrina obtém-se 3 horas depois do início da infusão. Na maioria dos doentes com gastrinoma, as concentrações séricas irão pelo menos duplicar (cerca de 500pg/ml). Doentes com úlcera péptica comum podem ter um aumento moderado nos níveis séricos de gastrina após a infusão de cálcio, mas raramente excederão 200 a 300 pg/ml. O teste mais específico é a injecção de secretina. A secretina inibe a libertação antral de gastrina, mas na maioria dos doentes com gastrinoma estimula a libertação de gastrina pelas células tumorais. Existe ainda outro síndrome caracterizado pela hipersecreção de peptídeos gastrointestinais: a cólera pancreática ou síndrome da diarreia aquosa. É uma doença frequentemente letal, que resulta da hipersecreção de VIP por um tumor das células das ilhotas pancreáticas. Este peptídeo estimula a secreção intestinal de fluídos e electrólitos, produzindo uma diarreia profusa, responsável pela doença. Regulação da secreção gástrica A regulação da secreção gástrica é um modelo paradigmático da forma como todos estes sistemas hormonais e nervosos interagem entre si. Os principais factores que estimulam a secreção gástrica são a acetilcolina, a gastrina e a histamina. A acetilcolina estimula todos os tipos de células secretoras das glândula gástricas, incluindo a secreção de pepsinogénio pelas células principais, de HCl pelas células parietais e muco pelas células mucosas. A gastrina e a histamina têm uma acção predominante sobre as células parietais, sendo o seu efeito sobre as outras células muito reduzido. Um conceito importante a reter é o de potenciação. Dois estimulantes têm uma acção de potenciação quando o efeito da sua administração simultânea excede a soma das respostas individuais. Existem várias respostas no tracto GI que dependem deste efeito. No estômago, por exemplo, a histamina potencia os efeitos da gastrina e da acetilcolina nas células parietais.

19 Estimulação da secreção gástrica O estômago humano em repouso segrega 10 a 15% do ácido que é segregado na estimulação máxima. A secreção basal de ácido tem um ritmo diurno, sendo mais intensa à noite e menos ao acordar. A causa desta variação diurna é desconhecida, já que os níveis plasmáticos de gastrina são praticamente constantes na fase interdigestiva. O estômago vazio tem, portanto, algum fluído no seu interior, sendo o seu ph inferior a 2. Logo, na ausência de alimentos, a mucosa gástrica está acidificada. Estimulação nervosa A estimulação nervosa da secreção gástrica pode ter início a partir de estímulos provenientes do cérebro ou do estômago. Os sinais com origem no estômago activam dois tipos de reflexos: - reflexos vagovagais longos, que são transmitidos desde a mucosa gástrica até ao tronco cerebral e daí até ao estômago pelo nervo vago; - reflexos curtos, com origem local e que se localizam inteiramente no sistema nervoso entérico. Os estímulos que podem desencadear estes reflexos incluem a distensão gástrica, estímulos tácteis na mucosa gástrica e a presença de estímulos químicos (nomeadamente aminoácidos, peptídeos e ácido) O neurotransmissor libertado por todas as terminações nervosas é a acetilcolina, com uma excepção. As terminações que enervam as células G libertam GRP (gastrinreleasing peptide). A acetilcolina estimula a secreção ácida através da ligação a receptores muscarínicos M3 na membrana basal da célula parietal. Esta ligação abre canais de Ca ++, permitindo a entrada de Ca ++ para dentro da célula, o que estimula a secreção de HCl. Tal como a gastrina, a acetilcolina também estimula a libertação de histamina a partir das células enterochromaffin-like (ECL). Estimulação pela Gastrina Os estímulos nervosos (vagais ou locais), para além de uma estimulação directa das células parietais, conduzem também à libertação de gastrina a partir das células G

20 antrais e da região pilórica. A gastrina é libertada para a corrente sanguínea e acaba por atingir as glândulas da mucosa gástrica (acção endócrina). A gastrina não tem uma acção excitatória directa nas células parietais muito potente. As suas acções devem-se sobretudo a um efeito indirecto sobre a libertação de histamina. Liga-se a receptores CCK-B que aumentam a concentração intracelular de Ca ++. Estimulação pela Histamina A histamina é o principal mediador fisiológico da secreção de HCL. É libertada por células enterochromaffin-like (ECL) localizadas na mucosa gástrica. Tem uma acção parácrina. As células ECL libertam histamina sobretudo após estimulação pela gastrina e pela acetilcolina. A histamina liga-se a receptores H2 na membrana celular da célula parietal que aumentam a concentração intracelular de AMPc, estimulando a secreção ácida. Efeito multiplicativo dos mediadores que estimulam a secreção ácida Nenhum dos três mediadores atrás descritos é eficaz quando actua isoladamente. De facto, para que exista uma secreção substancial de ácido é necessária a presença simultânea dos três. Existe uma secreção basal, não estimulada, de pequenas quantidades histamina. Quando existe uma estimulação nervosa (vagal ou local), que liberta Acetilcolina e GRP, todos os mediadores passam a estar presentes, o que origina uma secreção abundante de ácido pelas células parietais (acção de potenciação). Regulação da secreção de pepsinogénio A regulação da secreção de pepsinogénio é menos complexa. Ocorre em resposta a dois estímulos: 1. estimulação das células pépticas pela Acetilcolina libertada pelos terminais nervosos vagais ou entéricos; 2. estimulação em resposta ao ácido luminal. O ácido não estimula directamente as células pépticas, mas através de reflexos entéricos.

21 Inibição da secreção ácida Existem vários mecanismos que inibem a secreção ácida. Os estímulos subjacentes são a presença de ácido, produtos da digestão lipídica ou a hipertonicidade no duodeno e parte proximal do jejuno. A presença de ácido no duodeno estimula a libertação para a circulação de secretina. A secretina inibe a produção de ácido através de dois mecanismos: - inibe a libertação de gastrina pelas células G; - inibe a resposta das células parietais à gastrina. Outras hormonas, como o GIP, CCK, VIP e somatostatina, também inibem a secreção ácida gástrica. Estas hormonas também reduzem a motilidade gástrica. Figura 3: Regulação da secreção ácida Fases da secreção gástrica Existem três fases na estimulação da secreção de ácido (quadro 6) em resposta a uma refeição: cefálica, gástrica e intestinal. Fase Estímulo Via Estímulo para a célula parietal Cefálica Visão, olfacto, Nervo vago: Acetilcolina

22 mastigação, deglutição 1. células parietais 2. células G Gástrica Distensão gástrica Reflexos vagais e locais: 1. células parietais 2. células G Intestinal Produtos de digestão no 1. células G duodeno intestinais 2. células endócrinas intestinais Gastrina Acetilcolina Gastrina Gastrina Enterogastrona? Quadro 6 Na fase intestinal, enquanto o ph permanece acima de 3, há um predomínio das influencias excitatórias. Quando a capacidade de neutralização do quimo gástrico diminui e o ph baixa para menos de 2, as influências inibitórias predominam. Conclusão Embora seja mais conveniente estudar o sistema nervoso autónomo e os sistemas endócrinos/parácrinos separadamente, é importante compreender que eles não funcionam de forma isolada. De facto, os sistema reguladores interagem entre si na regulação da secreção, motilidade e absorção. É o que acontece na função gástrica ou pancreática, por exemplo. As células-alvo têm uma actividade basal, modulada peptídeos neurócrinos ou endócrinos. Estes são libertados por nervos ou células glandulares endócrinas em resposta a estímulos específicos endógenos ou exógenos. Por exemplo, a visualização de alimentos pode alterar diversos aspectos da função GI, tal como acontece com a presença de alimentos no lúmen gástrico ou intestinal. Independentemente da sua origem, estes estímulos são integrados em sistemas nervosos ou endócrinos, modulando a resposta da célula alvo. Assim, há exemplos de libertação de hormonas pela actividade nervosa ou de modulação da actividade nervosa por hormonas, bem como de células efectoras que são influenciadas simultaneamente pela actividade nervosa e hormonal.

23