UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL: A função social do contrato ACADÊMICA: CLEOMARA ANHALT São José (SC), junho de 2004
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL: A função social do contrato Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação do Prof. MSc. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior. ACADÊMICA: CLEOMARA ANHALT São José (SC), junho de 2004
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA RENOVAÇÃO DA TEORIA CONTRATUAL: A função social do contrato CLEOMARA ANHALT A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI. São José, «dia da defesa» Banca Examinadora: Prof. Luiz Magno Pinto Bastos Júnior Prof. «título, se houver» «Nome» - Membro Prof. «título, se houver» «Nome» - Membro
DEDICATÓRIA Dedico este trabalho A Deus, que sempre segurou minha mão e me conduziu, mesmo nos momentos mais difíceis; A meu pai, cujo sonho era me ver formada em Direito; Especialmente à minha mãe, Maria, e aos meus irmãos Arleu e Arlete, de quem sempre tive apoio e incentivo; Ao meu noivo Volnei, pelo companheirismo manifestado e amor incondicional. iii
AGRADECIMENTOS Às minhas amigas advogadas Dras.Terezinha Baldissera e Maristela Baldissera e ao amigo advogado Marco Aurélio de Melo, que tanto me incentivaram desde o início do curso; Aos meus colegas de trabalho, pelo incentivo e compreensão; A minha querida amiga Mariane Baldissera, companheira de todas as horas; Aos meus professores, em especial ao meu orientador Professor Luiz Magno Pinto Bastos Júnior, pela dedicação e apoio; A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste trabalho, o meu reconhecimento maior. iv
Se a determinação das coisas, por meio das leis, constitui uma natureza, agir como se a máxima do nosso ato devesse tornar-se primacial no domínio da vontade representa lei universal da natureza. Afonso Bertagnoli v
SUMÁRIO RESUMO...VII INTRODUÇÃO...1 1 LIBERDADE CONTRATUAL E O DOGMA DA AUTONOMIA DA VONTADE NA TEORIA CONTRATUAL CLÁSSICA....5 1.1 ORIGENS E FUNDAMENTOS DA LIBERDADE CONTRATUAL...5 1.2 PRINCÍPIOS GERAIS...8 1.2.1 Autonomia da vontade...8 1.2.2 Princípio da obrigatoriedade ou vinculatividade do contrato...9 1.2.3 Princípio da segurança jurídica...10 1.3 CONDIÇÕES DE VALIDADE DO CONTRATO...11 1.3.1 Agente capaz...13 1.3.2 Objeto lícito, possível, determinado ou determinável...14 1.3.3 Forma prescrita ou não defesa em lei...15 1.4 DESFAZIMENTO DO NEGÓCIO ATRAVÉS DA INTERVENÇÃO JUDICIAL...15 1.4.1 Proteção da autonomia da vontade e os vícios de consentimento...16 1.4.2 Suspensão da execução da vontade em face de atos supervenientes (caso fortuito e força maior)...18 1.4.3 Cláusula rebus sic stantibus...19 1.4.4 Exceção de contrato não cumprido...22 2 EVOLUÇÃO CONTRATUAL DA INTERVENÇÃO À MASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS...24 2.1 DA INTERVENÇÃO PARA O DIRIGISMO...26 2.2 DA AUTONOMIA DA VONTADE FORMAL À ÊNFASE NO EQUILÍBIO MATERIAL...30 2.3 CONTRATOS DE MASSA E DE ADESÃO...33 3 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE CONTRATUAL: A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO...39 3.1 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL (PRINCIPIALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL)...41 3.2 PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS E A PROTEÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA...47 3.3 BOA-FÉ CONTRATUAL E EQUILÍBRIO ENTRE AS PARTES...51 CONSIDERAÇÕES FINAIS...59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...62
RESUMO O objetivo deste trabalho é construir uma visão panorâmica histórico-filosófica do contrato e proceder a uma rápida análise de sua função social, frente ao fenômeno da constitucionalização do direito civil e da massificação dos contratos. No primeiro capítulo faz-se um breve histórico da teoria contratual, onde se aborda a origem e os fundamentos da liberdade contratual, sua evolução e a concepção clássica do contrato, para depois discorrer sobre os princípios gerais, enfatizando autonomia da vontade, obrigatoriedade ou vinculatividade do contrato e segurança jurídica, por se tratarem de princípios de indiscutível importância para o tema proposto. Não menos importante, dentro da sua concepção social, são as condições de validade dos contratos, bem como as possibilidades de desfazimento do negócio por intervenção judicial, razão porque também são abordados. Fala-se, então, sobre a proteção da autonomia da vontade e os vícios de consentimento, da suspensão contratual e da função reativa ao princípio da autonomia da vontade através da execução do contrato não cumprido e da cláusula rebus sic stantibus. No segundo capítulo, analisa-se o intervencionismo nas relações contratuais e as conseqüentes restrições ao princípio da autonomia da vontade. Por caracterizar uma forma de restrição à autonomia da vontade, cuja utilização é cada vez mais freqüente, são mencionados os contratos de massa e de adesão. Finalmente, no terceiro capítulo, analisam-se as conseqüências da constitucionalização do direito civil e dos princípios da função social, boa-fé e eqüidade contratual sobre a dicotomia direito público e privado. vii
ABSTRACT O autor deverá apresentar uma versão de seu resumo traduzida para uma língua estrangeira (inglês, espanhol, francês, alemão, italiano, etc). viii
INTRODUÇÃO O processo de reestruturação da teoria contratual e a constitucionalização do direito civil têm exigido dos profissionais do direito - ou daqueles que intentam embrenhar-se nas lides jurídicas - um sopesado aprimoramento de seus saberes, compatibilizando-os com a realidade atual. Sabe-se que as mudanças sociais, políticas e econômicas, decorrentes da revolução industrial, das grandes guerras mundiais e da queda da bolsa de valores de Nova Iorque (1929) atingiram todos os campos do saber humano, inclusive a ciência do direito. Ao Estado exigiu-se um papel mais intervencionista no domínio econômico e no implemento de políticas sociais e desenvolvimentistas, abandonando o liberalismo clássico. Desta forma, o Estado é chamado a atuar com mais ímpeto na regulação da sociedade (dirigismo estatal). Um dos reflexos mais evidentes dessas mudanças é a limitação imposta aos tradicionais princípios da autonomia da vontade, da liberdade contratual e da obrigatoriedade nas relações contratuais. Embora o Código Civil de 2002 não exonere os tradicionais princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade (pacta sunt servanda), que dão estabilidade e segurança aos contratos, exige a sua compatibilidade com os princípios da boa-fé objetiva e eqüidade, cumprindo, assim, a nova vocação constitucional de promover maior respeito à dignidade humana e à função social da propriedade. Na teoria clássica o contrato era expressão da vontade livre e soberana dos contratantes e fazia lei entre as partes, porquanto construído sobre os princípios da força obrigatória (pacta sunt servanda) e da autonomia da vontade. Suas cláusulas tinham força de preceitos legais imperativos para os contraentes, com raras exceções previstas em lei. Entretanto, a disparidade sócio-econômica das partes, apesar de consideradas iguais perante a lei, resultou, no dizer de Cláudia Lima Marques 1, na liberdade de uns e opressão de outros. O incremento na circulação de mercadorias, decorrente da revolução industrial, imprimiu uma dinâmica muito grande às relações comerciais, exigindo uma inovação no regime contratual vigente. Criaram-se, então, modelos padronizados de contratos - contratos massificados ou de adesão - cujos termos, pré-estabelecidos pelo fornecedor ou prestador de 1 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4 ed.são Paulo: RT, 2002
serviço, restringem a manifestação da vontade do contratante, que não o redigiu, à simples adesão, ou seja, à aceitação ou não do contrato. Visando conter os abusos e excessos que, não raras vezes, são constatados nas relações em que os contratantes encontram-se em situação de desequilíbrio ou desigualdade como as relações antes apresentadas, o Estado passou a interferir através de diversos diplomas legais que pouco a pouco introduzem mecanismos de contenção da plena autonomia volitiva e do pacta sunt servanda, figurando hipóteses, nas quais, em especial, a execução do contrato poderia sofrer modificações. 2 Inicialmente, essa interferência deu-se através de leis de ordem pública, restringindo o princípio da autonomia da vontade em benefício do interesse coletivo; posteriormente passou a intervir na economia do contrato instituindo a contenção dos seus efeitos, alterando-os ou mesmo liberando o contratante lesado, por tal arte que logre evitar que por via dele se consume atentado contra a justiça. 3 Assim, os interesses coletivos e a ordem pública, econômica e social ganham prevalência sobre o dogma da vontade e o individualismo, inclusive revigorando velhos princípios do direito contratual, como o princípio da boa-fé e a cláusula rebus sic stantibus, funcionando como fatores limitadores da autonomia privada individual, no interesse geral da coletividade. 4 Essa nova tendência do direito contratual, que se distancia cada vez mais do individualismo e cultua o respeito ao outro contratante, e mesmo, àquele que do contrato não participe 5, está positivada na Constituição federal e no Código Civil de 2002, através dos princípios da boa-fé objetiva, da probidade e da eqüidade, que ganham status ao lado dos tradicionais princípios da autonomia da vontade e da obrigatoriedade (pacta sunt servanda). Como bem expressa Renata Domingues Barbosa Balbino, a aprovação desse novo código conferiu à boa-fé a importância desejada, incorporando-a ao nosso ordenamento jurídico como princípio geral, cuja aplicação é irradiada a todo direito 6. Em suma, é a socialização do direito contratual que, embora continue com a função de promover a circulação de riquezas, agora o faz sob uma nova ótica: a do bem comum. O Direito passa a olhar não mais para o indivíduo proprietário, mas para o indivíduo membro de uma sociedade. E com o advento do Estado social instala-se a tendência de uma 2.PENTEADO JUNIOR, Cassio M. C.. O relativismo da autonomia da vontade e a intervenção estatal nos contratos. Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina /texto.asp?id=3805>. Acesso em: 24 set 2003 3 MOREIRA, Marcelo Silva. O papel do Estado-Juiz em face do princípio da autonomia da vontade nos contratos.in: Âmbito jurídico. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/aj/dcivil0040.htm. Acesso em 24-09/03 Pág. 2 4 CDC comentado pelos autores do anteprojeto Forense Universitária 4ª ed. P. 286 5 NALIN,Paulo. Do Contrato: conceito pós-moderno. pág. 80. 2
constitucionalização do Direito Civil, levando várias Constituições, inclusive a brasileira, a imiscuírem-se nos assuntos até então reservados aos Códigos Civis. É a constitucionalização do direito privado que, segundo Paulo Luiz Neto Lobo, constitui a etapa mais importante do processo de transformação, ou de mudanças de paradigmas, por que passou o direito civil, no trânsito do Estado liberal para o Estado social. 7 O que se pretende, por este trabalho, é uma familiarização com o processo de socialização da teoria contratual, a fim de se apreender a importância da função social do contrato nos dias de hoje. O Tema Renovação da Teoria Contratual: A função social do contrato foi escolhido para esta monografia justamente por estar o contrato inserido no cotidiano dos indivíduos de qualquer sociedade, entendendo-se que é de fundamental importância à compreensão do papel que os princípios sociais ocupam na formulação da nova teoria contratual vigente. Tem este trabalho como objetivo geral proceder à análise do contrato e sua função social, positivada pelo Código Civil de 2002. Mais especificamente, pretende-se chegar a uma visão panorâmica histórico-filosófica do contrato e analisar as mudanças ocorridas na relação contratual entre as partes com a nova teoria contratual. Para tanto, a partir do método indutivo, buscou-se identificar os elementos que historicamente contribuíram para a atual concepção de função social do contrato. Para atingir o fim colimado, utiliza-se de pesquisa qualitativa bibliográfica, consultando-se vários livros, monografias e artigos, além de páginas na Internet. O trabalho é descritivo e está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo far-se-á um breve histórico da teoria contratual, abordando-se origem e os fundamentos da liberdade contratual, sua evolução e a concepção clássica do contrato, discorrendo, depois, sobre os princípios gerais, com ênfase para a autonomia da vontade, obrigatoriedade ou vinculatividade do contrato e segurança jurídica. Na seqüência analisar-se-ão as condições de validade dos contratos e as possibilidades de desfazimento do negócio por intervenção judicial, para falar-se, então, sobre a proteção da autonomia da vontade e os vícios de consentimento, a suspensão contratual, a execução do contrato não cumprido e a cláusula rebus sic stantibus. No segundo capítulo será analisado o intervencionismo nas relações contratuais e as conseqüentes restrições ao princípio da autonomia da vontade, mencionando-se os contratos 6 Renata Domingues Barbosa Balbino. O princípio da boa-fé objetiva no novo código civil. Pág. 2 7. LOBO, Paulo Luiz Netto A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL disponível em : http://www.intelligentiajuridica.com.br/artigos/artigo2-oldout2001.html site Jus Navigandi) 3
de massa e de adesão. Finalmente, no terceiro capítulo serão analisadas as conseqüências da constitucionalização do direito civil e dos princípios da função social, boa-fé e equidade contratual sobre a dicotomia direito público e privado. 4
1 LIBERDADE CONTRATUAL E O DOGMA DA AUTONOMIA DA VONTADE NA TEORIA CONTRATUAL CLÁSSICA. Instrumento jurídico fortemente vinculado à economia, o contrato tem como fundamento ético à vontade humana. Sua finalidade: criar direitos e obrigações entre as partes, cujas vontades sejam coincidentes, gerando um negócio jurídico, desde que esteja em conformidade com a lei. Claudia Lima Marques diz que, numa concepção tradicional, contrato é a uniã o de mais de um indivíduo para uma declaração de vontades em consenso, através da qual se define a relação jurídica entre estes. 8 Analisando a história observa-se que, como produto da sociedade, a teoria contratual tem sua concepção modificada em virtude do comportamento econômico e social. No dizer de San Tiago Dantas o grande progresso econômico do mundo ocidental, ocorrido no século XIX, se assentou sobre as bases do Direito Contratual [...] e se é certo que deixou de proteger os socialmente fracos, criou oportunidades amplas para os socialmente fortes, que emergiram de todas as camadas sociais, aceitando riscos e fundando novas riquezas. 9 São duas as concepções da teoria contratual: a clássica ou liberal e a moderna ou social. Segundo o Professor Fernando Noronha, o princípio da autonomia da vontade é o caracterizador da teoria contratual clássica, enquanto a massificação contratual caracteriza a teoria social. 10 1.1 ORIGENS E FUNDAMENTOS DA LIBERDADE CONTRATUAL A concepção clássica de contrato nasce com o liberalismo econômico em resposta às limitações oriundas do direito canônico 11 e do corporativismo 12. 8 MARQUES, op. cit., pág. 41. 9 DANTAS, San Tiago Apud GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro, Forense, 1999, pág. 21. 10 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994. p. 41 11 O direito canônico preconizava vontade como a fonte da obrigação, dando origem aos princípios da autonomia da vontade e do consensualismo. A palavra dada, sob o dever cristão da veracidade, era suficiente para exigir o cumprimento das obrigações pactuadas, mesmo aquelas decorrentes de simples consentimento, independente de sua forma. Ao contrato foi atribuída força obrigatória, assegurada por regras jurídicas. (Cf. GOMES, op. cit. Pág. 5; NALIN, op. cit. pág. 105) 12 O formalismo jurídico substituiu o princípio da fé jurada, favorecendo a prática de abusos aos menos favorecidos, principalmente ao trabalhador, tratado em patamar de igualdade com o empregador.em decorrência, os trabalhadores uniram-se em corporações, cobrando direitos, o que gerou conflito de interesses, exigindo o intervencionismo Estatal. (LISBOA, op. cit. pág. 96) 5
Claudia Lima Marques explica que a vontade era o elemento principal e único capaz de possuir a legitimidade para o nascimento de direitos e obrigações, oriundas da legislação jurídica contratual. Sendo assim, a lei destinava-se, apenas, a proteger essa vontade criadora e assegurar a realização dos efeitos que as partes contraentes estipulavam 13. A tutela jurídica limitava-se a possibilitar a estruturação pelas partes, dessas relações jurídicas próprias, assegurando uma abstrata autonomia, igualdade e liberdade, no momento em que se iria contratar. Tais relações jurídicas, porém, desconsideravam totalmente a situação econômica e social das partes contraentes. 14 É o que esclarece Cláudia Lima Marques ao afirmar que na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está diretamente ligada à doutrina da autonomia da vontade e ao seu reflexo mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual. 15 Conforme visto, a vontade é elemento fundamental do contrato, que nela se origina e nela se legitima, gerando poder vinculante e força obrigatória. Assim, a doutrina da autonomia da vontade é o que se poderia chamar de pedra basilar da teoria contratual, segundo sua concepção tradicional. Sua fonte é a vontade das partes. Seu fundamento, segundo doutrinadores franceses, na lição de Cláudia Lima Marques, está: 16 a) no direito canônico, para o qual a promessa, por si mesma, tem validade e força obrigatória; 17 a) no direito natural, que considera a liberdade de contratar como liberdade natural do homem, restringível apenas pela sua própria vontade. Segundo Kant, a pessoa tornou-se uma fonte fundamental do direito, pois é através de seu agir, de sua vontade, que a expressão jurídica se realiza ; 18 b) na ordem política e revolução francesa que, através do Código Civil Francês de 1804, inspirado na teoria do Contrato Social, de Rousseau, influenciou fortemente os ordenamentos jurídicos do mundo e pelo qual as convenções, le galmente formadas, têm lugar das leis para aqueles que as fizeram ; 19 13 As normas de ordem pública que devem ter observância obrigatória em matéria contratual serão analisadas no item 3.2. 14 Cf. MARQUES, op. cit pág.. 47 15 Cf. MARQUES, op. cit, pág.42 16 Cf. MARQUES, op. cit, pág.44-47 17 Cf. MARQUES, op. cit pág. 44 18 MARQUES, op. Cit. Pág. 44 19 MARQUES, op. Cit pág. 45 6
c) no liberalismo econômico que, a partir do século XVIII, dá ao contrato uma dupla função: a de permitir a livre circulação de riquezas na sociedade e a de indicar o valor de mercado, segundo sua nova utilidade. Defendia-se a liberdade contratual, crendo que o contrato seria justo e eqüitativo, por sua própria natureza. 20 Conforme Claudia Marques: O liberalismo econômico, a idéia de que todos são iguais perante a lei e sendo assim devem ser igualmente tratados e a concepção de que o mercado de capitais e o mercado de trabalho devem funcionar livremente, permitiram fazer do contrato o instrumento jurídico por excelência da vida econômica. Assim, o contrato se consolida como uma categoria que serve a todos os tipos de relações entre sujeitos de direito e também a qualquer pessoa, independentemente de sua condição social e econômica. 21 Pode-se, portanto, afirmar que a idéia de liberdade contratual é um dos corolários básicos da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade). Desejando as partes unir-se por vínculo contratual, tudo o que acordassem seria tido como lei entre elas (pacta sunt servanda), não podendo, sequer o Poder Judiciário interferir em seu conteúdo (intangibilidade). 22 Portanto, o resultado fundamental da teoria contratual clássica era o absoluto respeito pela liberdade e pela igualdade formal. A autonomia da vontade (limitada, na teoria contratual clássica, por muito poucas normas cogentes) e o princípio da obrigatoriedade (também raramente limitado pela cláusula rebus sic stantibus ou teoria da imprevisão), deram ao contrato uma estabilidade e uma segurança jurídica de tal ordem que, refém de uma ideologia liberal e individualista, o direito passou a tutelar, compulsoriamente, injustiças cometidas contra os economicamente mais fracos. Todavia, com o tempo o Estado passou a interferir na sociedade e no domínio privado, com o intuito de obstar tais injustiças, limitando a abrangência da autonomia da vontade e da obrigatoriedade a níveis que assegurem a justiça contratual. 23 20 MARQUES, op. Cit pág.. 47 21 MARQUES, op. Cit, pág. 23 22 POP, Carlyle.A nova visão contratual. O código de Defesa do consumidor e a lei do inquilinato. In Direito do Consumidor. Jurisprudência Brasileira Civil e comércio. 181 Revista Trimestral Informatizada. Juruá. Pág. 24 23 cf. SANTOS, op. cit. pág. 35-37 7
1.2 PRINCÍPIOS GERAIS 1.2.1 Autonomia da vontade Considerando que no Direito Contratual o princípio da autonomia da vontade está intimamente relacionado à liberdade de contratar, os indivíduos têm o poder de criar direitos e obrigações entre si e podem regular seus interesses de forma diversa e até oposta à lei, dentro de certos limites legais imperativos. Em matéria contratual, as disposições legais têm, de regra, caráter supletivo ou subsidiário, somente se aplicando em caso de silêncio ou carência das vontades particulares. 24 O sistema jurídico era estruturado a partir da idéia de igualdade de tratamento entre os indivíduos, razão pela qual a consagração de uma liberdade contratual, abstratamente considerada (pressuposta) exigia que fosse ignorada a situação financeira e social dos contratantes. Cláudia Lima Marques explica esse primeiro princípio dizendo que a idéia da autonomia da vontade está estreitamente ligada à idéia de uma vontade livre, dirigida pelo próprio indivíduo sem influências externas imperativas 25. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, liberdade de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, liberdade de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando, sempre, com a proteção do direito. 26 No entanto, é oportuno observar que a liberdade de contratar, embora seja dita ampla e irrestrita, sempre sofreu duas limitações de caráter geral: a ordem pública e os bons costumes 27. Tais limitações, constantes nos Códigos como exceções ao princípio da autonomia da vontade, nunca tiveram definição precisa, o que as tornam perfeitamente ajustáveis às idéias morais, políticas, filosóficas e religiosas de cada tempo e lugar. São leis de ordem pública as referentes à organização familiar (casamento, filiação, alimentos), à herança e sucessão testamentária, à organização política e administrativa do Estado, além das que dizem respeito à organização econômica e ao Direito do Trabalho; enfim, as leis que regem a organização social, política e econômica da nação. 28 24 DE PAGE, Henri, apud GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro, Forense, 1999, 18ª ed.,pág 23 25 MARQUES, op. cit. Pág. 48 26 MARQUES, op. Cit 23. 27 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.pág. 11 28 GOMES, op. Cit. pág. 24. 8
É possível compreender que, sendo cogentes, as leis de ordem pública não podem ser derrogadas pela vontade particular e, por conseguinte, os contratos que as afrontam são nulos, o que caracteriza a limitação de ordem geral à liberdade de contratar. Quanto aos bons costumes, segundo Orlando Gomes, são aqueles que se cultivam como condição de moralidade social, matéria sujeita a variações de época, de país a país, e até dentro de um mesmo país e mesma época. Atentam contra bonos mores aqueles atos que ofendem a opinião corrente do que se refere à moral sexual, ao respeito à pessoa humana, à liberdade de culto, à liberdade de contrair matrimônio. 29 Malgrado essa limitação imposta à autonomia privada, o poder da vontade tem sido responsável por uma grande incidência de abusos, o que levou o pensamento jurídico a entender que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei q ue liberta. 30 1.2.2 Princípio da obrigatoriedade ou vinculatividade 31 do contrato Para o Código Civil Francês, fonte inspiradora dos Códigos Civis modernos, o contrato é lei entre as partes. Em outras palavras, a vontade dos contratantes expressamente manifestada torna-se indiscutível, e legítimos passam a ser os direitos e obrigações contraídos em contrato, tendo as leis a função de proteger e garantir a execução dos mesmos. 32 Esse segundo princípio vincula as partes ao estipulado no contrato. Cada indivíduo é livre para manifestar sua vontade e aceitar somente as obrigações que sua vontade cria. O Contrato, como estipula o art. 1.134 do Código Civil francês, será a lei entre as partes, invocando a velha máxima do pacta sunt servanda, ou seja, os pactos hão de ser cumpridos. 33 Carlos Alberto Bittar, nessa mesma linha, esclarece que o princípio da obrigatoriedade contratual tem sua origem no mesmo brocardo latino, cuja idéia ética de honra à palavra dada leva ao dever de estrito cumprimento das obrigações assumidas pelas partes, segundo as imposições contratuais. 34 Conforme esse princípio, o contrato é um instrumento intangível, devendo ser fielmente cumprido sob pena de execução patrimonial do inadimplente. Suas cláusulas não 29 GOMES, op. cit. pág. 24 30 LACORDAIRE, apud Gomes, op cit pág. 26. 31 Cf. NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). p. 44. 32 Cf. NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). p. 44 33 NORONHA, op. cit. Pág. 44 34 BITTAR, Carlos Alberto. Direito dos contratos e dos atos unilaterais. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 37. 9
poderão ser alteradas judicialmente, salvo se a intervenção judicial destinar-se à nulidade ou à resolução da convenção. 35 Sendo o contrato instrumento de manifestação da vontade - força fundamental que vincula os indivíduos, - os contratantes passam a ter direitos e obrigações entre si, das quais só poderão se desobrigar através de um outro acordo de vontades ou pela ocorrência de fatos supervenientes que admitam a desoneração legítima das partes (força maior ou caso fortuito). As cláusulas contratuais, por mais desvantajosas, presumem-se terem sido estipuladas e aceitas livremente por cada uma das partes, razão pela qual elas devem submeter-se aos prejuízos decorrentes de sua execução. Ao Direito é indiferente a situação a que fique reduzida a parte para cumprir a palavra dada (pacta sunt servanda). 36. Não são válidos, para sua revogação, argumentos como o de que não o teriam estabelecido se houvessem previsto alterações das circunstâncias ou de que sua execução levará a parte queixosa à ruína. Segundo Cláudia Lima, Esta força obrigatória vai ser reconhecida pelo direito e vai se impor ante a tutela jurisdicional. Ao juiz não cabe modificar e adequar à eqüidade da vontade das partes, manifestada no contrato, ao contrário, na visão tradicional, cabe-lhe respeitá-la e assegurar que as partes atinjam os efeitos queridos pelo seu ato. 37 A suposição de que a igualdade formal dos indivíduos asseguraria o equilíbrio entre os contratantes, fosse qual fosse a sua condição social, foi desacreditada na vida real. O desequilíbrio entre as partes tornou-se patente [...], levando o Estado a buscar meios legais de tutelar a parte mais fraca, e à criação de novas técnicas de contratação, entre as quais, a do tratamento desigual. 38 Tanto o princípio da autonomia da vontade (liberdade contratual) como o princípio da obrigatoriedade não podem mais ser considerados absolutos, em decorrência das consideráveis transformações ocorridas durante o século XX, as quais serão abordadas seqüencialmente. Observar-se-á, ainda, que tais transformações possibilitarão a intervenção do Estado judicialmente visando à modificação do contexto do contrato para permitir a sua execução. 1.2.3 Princípio da segurança jurídica Na lição do professor Gustavo Tepedino, 35 BITTAR, op. cit. pág. 37 36 GOMES, op. Cit, pág. 36 37 MARQUES, op. Cit. Pág. 50 38 GOMES, op. cit. Pág. 7. 10
A codificação, como todos sabem, destinava-se a proteger uma certa ordem social, erguida sob a égide do individualismo e tendo como pilares, nas relações privadas, a autonomia da vontade e a propriedade privada. O legislador não deveria interferir nos objetivos a serem alcançados pelo indivíduo, cingindo-se a garantir a estabilidade das regras do jogo, de tal maneira que a liberdade individual, expressão da inteligência de cada um dos contratantes, pudesse se desenvolver francamente, apropriando-se dos bens jurídicos, os quais, uma vez adquiridos, não deveriam sofrer restrições ou limitações exógenas. 39 O sentido de segurança surgiu, segundo Irti 40, das estruturas profundas da sociedade. A exigência de estabilidade, ou de previsibilidade, quanto aos comportamentos individuais passou a ser o pressuposto intrínseco das relações jurídicas na medida em que a burguesia francesa, vitoriosa da Grande Revolução, se tornou à nova classe dirigente, portadora da tábua de valores na qual toda a sociedade foi chamada a reconhecer-se. O mundo da segurança é, portanto, o mundo dos códigos, que consubstanciam, em ordenada seqüência de artigos, os valores do liberalismo do século XIX. 41 Assim, pode-se deduzir que a codificação esteja diretamente ligada à segurança jurídica, de tal forma que, segundo Paulo Nalin, o sistema codificado tem erguido, historicamente, a bandeira de uma pretensa segurança jurídica, Baseada na possibilidade de antever, com base nos ditames da lei do código, o direito do sujeito que nele se assegura; a segurança de com base na lei material, buscar uma única resposta processual para uma única relação em conflito, repetindo-se o procedimento em constantes juízos de verdade jurisdicional, já que a solução verdadeira era decorrência da obtenção de uma resposta lógica ou matemática previsível, que pudesse ser repetida; segurança, ainda, pelo controle que se poderia estabelecer a partir da decisão sempre fundamentada do julgador no próprio texto codificado, dele afastados quaisquer valores metajurídicos. 42 Porém, diz ainda Nalin, o formalismo e o positivismo não deram conta de explicar alguns fenômenos perceptíveis do texto legal estabilizado, os quais, de algum modo, apontavam para a crise do sentido moderno da segurança jurídica. 43 Com o pretexto de garantir a segurança jurídica, a autonomia da vontade foi guindada à condição de dogma (verdade abstrata), consolidando situações de grande injustiça, que acabam por desestabilizar o próprio sistema. 1.3 CONDIÇÕES DE VALIDADE DO CONTRATO Desde a concepção clássica do contrato, a autonomia da vontade tem sido a base de toda relação contratual sendo o principal elemento capaz de legitimar direitos e obrigações 39 TEPEDINO (2004), op. cit., pág.3. 40 IRTI, N. apud MORAES, Maria Celina Bodin.Constituição e Direito Civil: Tendências. RT Setembro de 2000 89º ANO. Pág. 48 41 MORAIS, op. cit., pág. 48 42 NALIN, op. Cit. Pág. 211-212 43 NALIN, op. Cit. pág. 212 11