UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA LÍGIA SOUZA PETRINI



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Transcrição:

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA LÍGIA SOUZA PETRINI Da situação geográfica à situação jurídica Estudo de caso na quadra 46 da Comunidade de Paraisópolis / SP TRABALHO DE GRADUAÇÃO INDIVIDUAL SÃO PAULO 2013

LÍGIA SOUZA PETRINI Da situação geográfica à situação jurídica Estudo de caso na quadra 46 da Comunidade de Paraisópolis / SP TRABALHO DE GRADUAÇÃO INDIVIDUAL (TGI) APRESENTADO AO DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA SOB A ORIENTAÇÃODO PROFESSOR DOUTOR RICARDO MENDES ANTAS JR. SÃO PAULO 2013

DEDICATÓRIA Ao Núcleo de Direito à Cidade onde, como e quando o trabalho coletivo, a organização, a disciplina, o saberes popular e acadêmico entraram em sintonia na busca incansável por uma cidade mais justa e por uma sociedade em que a exploração do homem pelo homem não seja naturalizada.

AGRADECIMENTOS Iniciando meu 7º ano na Universidade, aos meus pais, Elisabete e Sérgio, por acreditarem que o ensino superior público, a Geografia e a Educação, para os menos favorecidos, é uma realidade que gera frutos, traz alegria e é capaz de mudar o mundo, aqui estou eu. Lucas, meu irmão, por ter me dado alegria, com piadas e diversão, sobre a minha demora na graduação, aqui o fruto dessa demora. Leila, companheira, camarada, lutadora, amiga, minha irmã. A você, o trabalho que tanto nos move por caminhos tortuosos, rumo a uma cidade justa, rumo à moradia digna, rumo à socialização dos bens. Essa é a materialização de que as mudanças estão apenas esperando nossa movimentação para acontecerem. Meus amigos, que em tantas noites de Diversão me fizeram desligar um pouco da ansiedade da graduação: Gilga Bruno, Tia Feia Danilo, Roska - Rodrigo, JV - João Vitor e todos da ETESP, minha alegria em compartilhar toda a juventude e passar para a vida profissional com vocês, nesses 10 anos de amizade, não tem palavras. À Prasseta. Aos camaradas, Saudações! Certamente a luta por outra sociedade não seria a mesma se não os tivesse encontrado. As reuniões, as eleições, as urnas, as assembleias, as plenárias não seriam as mesmas se não tivesse com vocês toda a vivência militante desses 7 anos. Lucas Rosa, Flávio Petracioli, Júlio Fonseca, Ana Marília, só a Geografia poderia nos proporcionar tanta clareza sobre as tarefas colocadas no dia a dia. Apoena Cosenza, Bruno M. Theodosio, Juliano - Xu, que a história, a economia e a biologia nunca sejam as mesmas. E a todos que com o passar dos anos aumentaram as fileiras do Movimento Estudantil consequente e pautado na realidade, em luta por outro projeto de Universidade, estarei sempre à disposição! Xu, obrigada em particular por aguentar minhas lágrimas, por ouvir minhas bobagens, por fazer loucuras comigo, pelo ombro amigo que estes 6 anos só me fizeram bem. A luta LGBT precisa de você e de mais gente como você! Flávia Ferrari, mãe, mulher, trabalhadora, minha comadre! Que a vida do Bernardo seja cheia de alegrias, que ele seja o motivo de felicidades. Obrigada pela oportunidade em participar da vida de uma criança! Aos amigos que nessa trajetória de academia e militância fizeram da graduação um momento único: Caetano Patta - Caê, Gabriel Lourenço - Gabs, Thales Marreti, Renan Pena, Luiz Barros, Janaína de Moraes, Bruno Dantas. Por último e com o fôlego de sempre, ao Núcleo e ao Departamento Jurídico XI de Agosto DJ, o advogado orientador sempre presente, Rodrigo Ribeiro de Sousa e ao Professor Doutor Celso Fernandes Campilongo. Esse trabalho não existiria sem vocês. Os militantes disciplinados, divertidos, comprometidos e amorosos que eu pude ter a oportunidade de conviver e acreditar que uma nova sociedade tem que existir e é possível. A luta por uma cidade para todos, a luta por moradia e

condições de vida digna na cidade de São Paulo, a possibilidade de um novo modelo educacional, as discussões sobre as táticas e estratégias do movimento popular, da extensão universitária, da militância no movimento estudantil, o Direito, a Geografia, não são os mesmos com vocês! Gabi Machado, que a luta feminista não seja em vão, que o trabalho de formiguinha seja um passo para a conquista de nossos direitos. Ana Marília, que a clonagem esteja acessível em breve, para você realmente poder ser mais que uma nessa batalha diária. Stacy, (Ana) Navarrete, Rafael (Tatemoto)! Que esse mundão de dificuldades, injustiças e contratempos só sirva pra mostrar quanto trabalho temos pela frente, obrigada pelos desafios que vocês me colocaram e por me fazer ver que o Direito vai para além dos muros da Faculdade de Direito SanFran. Em especial, meu carinho, admiração e felicidade em poder encontrar o melhor companheiro, amigo e camarada, na Universidade: Zé, que este trabalho signifique tanto para mim quanto para você, o fruto de anos de discussões, brigas e alegrias que compartilhamos. Sou muito grata na concretização de uma verdadeira amizade, pela cumplicidade e pela militância que lhe é peculiar. Que esses anos de amizade se multipliquem, revivam a cada conversa, a cada momento. Obrigada pelos puxões de orelha, pelas palavras duras, pelas mensagens desafiadoras e pela vontade de sempre em me ver feliz. A você, a admiração por ser quem é. E por ser quem eu sou hoje. Aos moradores sempre carinhosos, alegres, preocupados conosco, com os nossos domingos e nossas famílias, Glorinha, Josi e Seu Francisco. Com certeza o saber de vocês vale muito mais que muitos livros; a vida de vocês, muito mais que uma simples história e nossos domingos muito mais que meras reuniões. Obrigada por seguirem confiando no Núcleo. À Pró Reitoria de Cultura e Extensão Universitária quando, enquanto Representante Discente e bolsista de extensão, militei pela necessidade na mudança de estrutura das políticas de cultura e extensão, no fomento às iniciativas extensionistas verdadeiramente ditas, populares, que a Universidade de São Paulo cumpra um dia seu papel, ser Universal. Obrigada por apoiar e financiar as atividades do Núcleo de Direito à Cidade, para além de ajudas financeiras, levamos a Faculdade de Direito, a Faculdade de Filosofia e a Geografia para o Brasil e América Latina afora. Ao professor sempre paciente Ricardo Mendes. É com grande alegria, que depois de dois anos, posso apresentar esse trabalho com a maturidade que lhe é necessária. Obrigada pela orientação.

Prepare o seu coração Pras coisas Que eu vou contar Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão Eu venho lá do sertão E posso não lhe agradar... Aprendi a dizer não Ver a morte sem chorar E a morte, o destino, tudo A morte e o destino, tudo Estava fora do lugar Eu vivo prá consertar... Na boiada já fui boi Mas um dia me montei Não por um motivo meu Ou de quem comigo houvesse Que qualquer querer tivesse Porém por necessidade Do dono de uma boiada Cujo vaqueiro morreu... Boiadeiro muito tempo Laço firme e braço forte Muito gado, muita gente Pela vida segurei Seguia como num sonho E boiadeiro era um rei... Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E nos sonhos Que fui sonhando As visões se clareando As visões se clareando Até que um dia acordei... Então não pude seguir Valente em lugar tenente E dono de gado e gente Porque gado a gente marca Tange, ferra, engorda e mata Mas com gente é diferente... Se você não concordar Não posso me desculpar Não canto prá enganar Vou pegar minha viola Vou deixar você de lado Vou cantar noutro lugar Na boiada já fui boi Boiadeiro já fui rei Não por mim nem por ninguém Que junto comigo houvesse Que quisesse ou que pudesse Por qualquer coisa de seu Por qualquer coisa de seu Querer ir mais longe Do que eu... Mas o mundo foi rodando Nas patas do meu cavalo E já que um dia montei Agora sou cavaleiro Laço firme e braço forte Num reino que não tem rei Geraldo Vandré, Disparada, 1966

Resumo O presente trabalho tem como finalidade estudar, através dos métodos geográficos de observação e conceitos para a análise da realidade como situação geográfica para o estudo de caso sobre a situação de moradia e a regularização da habitação de moradores da favela de Paraisópolis em São Paulo. Os instrumentos jurídicos utilizados para a perspectiva geográfica a fim de encontrar na sua convergência para explicações sobre a o espaço geográfico, são fundamentais para compreender como processos judiciais podem garantir o direito à moradia digna e o acesso à habitação para as camadas marginalizadas que ocupam as periferias das metrópoles. Aliando, portanto os métodos geográficos e a perspectiva da sociologia do direito, este trabalho apresenta-se como um esforço em ultrapassar as categorias geográficas e jurídicas, para estabelecer assim formas renovadas de interpretação da realidade. Palavras-chave: favela, Paraisópolis, situação geográfica, sociologia do direito, movimentos sociais, planejamento urbano. A reprodução total ou parcial desta monografia é autorizada desde que citada a fonte e 7 comunicada à autora.

SUMÁRIO Introdução 9 Capítulo 1 A urbanização desigual da Vila Andrade: Paraisópolis e Morumbi 13 O Morumbi e as Cidades-Jardim 15 Paraisópolis 23 A consolidação das periferias e o atendimento às demandas populares 26 Capítulo 2 Situação geográfica: os elementos espaciais para a abordagem jurídica na quadra 46 29 Capítulo 3 As teorias do Direito e o respaldo acadêmico na atuação com os moradores 35 O Pluralismo Jurídico 35 A organização dos moradores na favela: mecanismos regulatórios 40 Capítulo 4 A Faculdade de Direito, a regularização fundiária e o Estatuto da Cidade 44 A extensão universitária e o papel da Universidade e dos estudantes na consolidação do direito à moradia 46 Transdiciplinaridade: para além das disciplinas na atuação e no estudo de caso 49 Capítulo 5 Políticas públicas, urbanização, regulação e normatização do território 54 Da situação geográfica à situação jurídica 60 Da situação jurídica à situação geográfica 61 Considerações Finais O Plano de Urbanização, a Regularização Fundiária e a especulação imobiliária na quadra 46 65 Bibliografia 70 8

Da situação geográfica à situação jurídica Estudo de caso na quadra 46 da Comunidade de Paraisópolis / SP Introdução O histórico de ocupação de terras sem fins sociais nos grandes centros urbanos provoca frequentemente, inúmeras questões sobre a maneira como ocorre o ordenamento urbano, o planejamento territorial e ainda, como se dão os programas e o acesso à moradia popular, digna e adequada. Paraisópolis não é uma exceção a este processo. Encravada entre dois dos bairros mais elitizados da cidade de São Paulo, se constituiu, desde sua ocupação nos anos 60, na maior favela de São Paulo, e em seguida aparece a favela de Heliópolis. O processo de ocupação de um terreno abandonado pelos seus proprietários na década de 60, e que deu origem à que chamamos hoje de Paraisópolis, é produto da ocupação do bairro do Morumbi, enquanto este também era promovido através de construtoras no surgimento de grandes casas e edifícios de alto padrão, e se tornava um dos bairros com alta concentração de serviços administrativos, de empresas e corporações brasileiras e estrangeiras, aliando o crescimento da indústria de construção civil e posteriormente, a prestação e serviços domésticos, de segurança e limpeza. Paraisópolis cresceu e cresce sob a ótica perversa da segregação espacial em uma das maiores metrópoles do mundo. A ocupação dos lotes do terreno onde hoje se localiza Paraisópolis se configurou conforme as necessidades da população que ali chegava. No início, casas de madeira, os famosos barracos, foram tomando o lugar de grandes loteamentos endividados onde se localizava a Fazenda Morumbi, loteada em seguida pela União Mútua Companhia Construtora e Crédito S.A. e abandonadas por famílias japonesas, caracterizadas como posseiras dessas terras, que por elas foram transformadas em chácaras. Mesmo sem infraestrutura elétrica, rede de esgoto, luz, serviço básicos como saúde, educação e transporte, as pessoas dali a pouco tempo consolidaram a Comunidade Paraisópolis no bairro Vila Andrade. Os barracos do início dos anos 60 deram lugar às casas de alvenaria já em meados dos anos 70, os serviços básicos chegaram à população na década de 80 e a necessidade de consolidar seu direito à moradia se tornou imperativa. 9

A administração da cidade de São Paulo, na figura das instituições de planejamento municipal, tentava ao mesmo tempo em que a ocupação se consolidava, concluir um planejamento e ordenamento territorial que regulasse o uso do solo em cada um dos seus bairros. A dificuldade em planejar e ordenar se tornava tão grande quanto à complexidade em lidar com as ocupações, tanto em terrenos públicos quanto privados, que aconteciam por todas as áreas periféricas na cidade. Os empecilhos eram de variadas ordens: a inexistência de um projeto abrangente de planejamento nas grandes capitais do país, que fosse capaz de referenciar o ordenamento territorial em uma cidade como São Paulo; a formulação sobre o tema nas grandes esferas de formação político-acadêmica ainda embrionários; e a dificuldade de transposição de modelos europeus de planejamento urbano para a realidade brasileira. Sobre este ponto, Santos (2003 [1979] p.187,188) explicita a importação de formas para a mudança de estruturas sociais em países em desenvolvimento que creditam a necessidade de técnicas advindas destes países para o planejamento das cidades. Sob a custa do insucesso do planejamento urbano nas cidades europeias, observados em meados do século XX, as técnicas por eles utilizadas não teriam no Brasil, ou na América Latina, os resultados procurados, ou seja, para o desenvolvimento da cidade nos países em desenvolvimento e em termos capitalistas, na década de 1950, era necessário rever as formas para que o urbano cumprisse a função que lhe era assim destinada: desenhar novas relações espaciais. O planejamento passa a ser um instrumento de modificação ou de inovação do espaço onde, por sua vez, se manifestam as transações do capital: A nova forma chega junto com um conteúdo importado. A incorporação de uma nova forma à formação socioeconômica significa a incorporação de seu conteúdo à mesma formação socioeconômica. (Santos, 2003 [1979] p. 201). A resposta para os problemas da ocupação e uso do solo na cidade de São Paulo e, particularmente, a regularização dos terrenos já ocupados pela população 10

carente, só vieram muito tempo depois que as ocupações aconteceram e que, por sua vez, estavam já consolidadas. Em 2002, com a aprovação do Plano Diretor Estratégico da cidade, que recorre ao Estatuto da Cidade (Lei 10257/2001) finalizada e votada em 2001, a gestão municipal é responsável por, entre outros assuntos, a regular e ordenar as moradias por instrumentos de participação coletiva, além de instrumentos jurídicos que avançam na perspectiva da conquista do título de propriedade nas áreas ocupadas por moradias precárias. O Estatuto da Cidade, por sua vez, propõe instrumentos urbanísticos que avançam na conquista do título de propriedade de casas em áreas particulares ocupadas, com destaque ao instrumento de Usucapião Coletivo, que prevê o título de posse para um conjunto de moradores, que comprovem sua moradia no mesmo local por pelo menos cinco anos e, ainda, que não possua nenhuma outra propriedade em seu nome em território nacional. Tal instrumento é usado para a regularização fundiária de uma quadra da Comunidade de Paraisópolis. Para a efetivação de tal processo, que vem acontecendo desde 2002, foi firmado um convênio com a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, na figura do Centro Acadêmico XI de Agosto e a gestão municipal da época, que além de dar apoio técnico, arcaria com os custos dos estudantes que se envolveriam no processo. O usucapião coletivo é um instrumento que efetiva o direito à moradia, dividindo igualmente a partir da chamada fração ideal o terreno entre todos os moradores que constituem o processo. Hoje, o processo envolve esferas que vão além do Direito. Baseado nas leituras de Paulo Freire (1967; 1970; 1971; 1996), o grupo se estrutura de maneira multidisciplinar e agrega outras áreas do conhecimento como arquitetura, turismo, ciências sociais, políticas públicas e geografia. Para que entendamos o processo para além de um número no fórum, também nos formamos com leituras de urbanistas, geógrafos e cientistas sociais. Isso porque a concepção de Direito ultrapassa o simples registro de uma propriedade, e revela inúmeras características dos moradores e da área em questão. O fato de existir um grupo universitário com um processo de usucapião coletivo nesta quadra em Paraisópolis provoca, entre os moradores envolvidos, as 11

mais diversas reações, levando em consideração as maneiras como o grupo se coloca junto a eles. Elementos como o aprendizado a partir de Paulo Freire em educação popular, a participação dos moradores nos processos decisórios e políticos da quadra onde moram e da comunidade como um todo, o domínio de elementos jurídicos importantes para a segurança no andamento do processo e ainda, a possibilidade de integração e interação dos moradores com o grupo e o processo de usucapião são as principais características do trabalho realizado na comunidade. O processo de usucapião coletivo é o ponto que chama atenção ao escrever este trabalho. Após 24 meses participando ativamente do grupo de extensão universitária que orienta o processo e atua na comunidade de Paraisópolis, podemos perceber como algumas características espaciais se aproximam e se sobrepõem com o processo em si, de maneira a modificar a configuração e a organização da área em questão somente com a presença de um processo jurídico. Um processo jurídico coletivo como este, esboça para a comunidade envolvida e para o poder público, uma espécie de segurança que é garantida pela existência de um mecanismo jurídico, normativo do Estado, que incorpora aos moradores o direito à moradia digna. O objetivo desta monografia é tratar de diversos aspectos socioespaciais que configuram uma dada situação geográfica (Silveira, 1999) frente ao mecanismo jurídico colocado em prática. Para tanto, é necessário destacar a maneira como situações, não como um conjunto de fatos ou fatos analisados isoladamente, mas enquanto um processo de análise da realidade, partindo de premissas do passado, sendo entendidos no presente, na configuração do espaço e sua construção, bem como na consolidação de uma perspectiva do Direito para além da mera funcionalidade ou somente enquanto uma técnica jurídica, a importância da interdisciplinaridade do grupo de extensão universitária envolvido, o comprometimento dos moradores da quadra nas ações pela consolidação de sua moradia e de seu direito à habitação, as mudanças ocorridas ao longo dos anos na configuração da quadra, destacando a segurança jurídica frente às características espaciais, e ainda, a valorização de suas moradias pela presença de um processo que se baseia em uma das leis mais progressistas em termos de ordenamento territorial no Brasil e a segurança perante o poder publico, de não efetivação de despejos sem o devido conhecimento do caso que se estabelece na quadra. 12

Capítulo 1 A urbanização desigual da Vila Andrade: Paraisópolis e Morumbi O bairro do Morumbi é produto de um loteamento realizado nos anos 20, que deu origem a 2200 lotes, onde se localizava a antiga Fazenda Morumbi. Esta, por sua vez, tinha uma das maiores plantações de chá da Índia, a partir da chegada do inglês John Rudge em 1825, e era pioneira dessa cultura em São Paulo, lugar onde se encontram hoje as favelas que compõem o Complexo Paraisópolis, entre elas a favela de Paraisópolis, localizada no distrito de Vila Andrade, vizinha do Distrito Morumbi. O processo de loteamento não foi completamente regularizado, e tampouco foi finalizado, tornando o Morumbi uma região abandonada, alvo de ocupações informais ao longo das décadas que se seguiram. Dado o tamanho dos loteamentos e a distância considerável do centro da cidade, grandes personalidades passaram a ocupar alguns dos grandes terrenos, sendo a primeira casa construída após o loteamento de autoria da arquiteta Lina Bo Bardi, a Casa de Vidro (fig.1), na década de 1950. Cabe salientar que estes terrenos ocupados por personalidades e famílias tradicionais da elite paulistana, como Oscar Americano, Maria Mesquita da Motta e Silva, Ribeiro Macedo e Duarte, Chibata Miyakoshi, Oagy Kalile, José Gustavo Bush e Armando Trompowsky, as chamadas famílias quatrocentonas (levando este nome em 1954, em razão da comemoração de quatrocentos anos da cidade de São Paulo), estavam em posse da então construtora responsável, a União Mútua Companhia Construtora e Crédito Popular S.A. e seus proprietários estavam caracterizados enquanto compromissados 1. 1 De acordo com relatos da época, a concessão de uso dos lotes era feita em forma de compromissados. É provável que estes proprietários pagassem por pequenas parcelas à União Mútua Cia Construtora e Crédito Popular S.A. para fins de uso e construção nos lotes. 13

Casa de Vidro da Arquiteta Lina Bo Bardi nos mostra em segundo plano a área ainda não ocupada no bairro do Morumbi. Figura 1 (Fonte: http://arqdobrasil.blogspot.com.br/2010/09/lina-bo-bardi-masp.html em jan-2013) A Vila Andrade, localizada na Subprefeitura de Campo Limpo, é hoje um dos bairros que possui elevados IDH (0,853) 2 e concentração de renda na cidade de São Paulo, mesmo levando em consideração as favelas que compõem o Complexo de Paraisópolis, revelando disparidades econômicas latentes e espacialmente estruturadas. Os bairros nobres que circundam o Complexo estão entre os bairros da cidade que possuem domicílios com renda média mensal entre 10-20 salários mínimos, enquanto Paraisópolis aparece com renda média mensal per capita de R$558,28 3 em um universo de 20 mil domicílios 4. Por conta da quantidade de terrenos vazios e a transferência da sede do governo do Estado e da construção do estádio Cícero Pompeu de Toledo o Morumbi para a região, a ocupação de tais terrenos se deram de maneira desenfreada, dando origem a um conjunto de complexos de moradias precárias, que se tornaram hoje como conhecemos as favelas de Real Parque, Jardim Panorama, Jardim Colombo, Porto Seguro e Paraisópolis, fazendo limite com esta última. 2 Atlas do Trabalho de Desenvolvimento da Cidade de São Paulo, 2007. 3 HABISP, 2012. 4 CENSO, 2010. 14

O Morumbi e as Cidades-Jardim O projeto de Cidade-Jardim foi concebido por Ebenezer Howard em seu livro publicado em 1898 e republicado em 1902 5, e tinha como objetivo estruturar uma relação socioespacial das cidades no Reino Unido que, na época, estavam crescendo em decorrência da industrialização que atingia toda Europa, e aumentando vertiginosamente sua população, principalmente de ex-camponeses, que passaram a ser empregados nas fábricas que incrementavam sua produção. Neste momento, devido ao aumento na produção industrial, as cidades começavam a crescer a partir dos seus centros urbanos, se organizando de maneira espontânea, as grandes cidades se transformaram em metrópoles em que as finalidades de seus espaços não eram definidos, fazendo com que o projeto de Howard encontrasse respaldo dentro da possibilidade do planejamento urbano. Percebendo que o crescimento populacional nas cidades trazia consigo uma série de problemas que comprometiam a qualidade de vida de seus moradores, Howard sugeriu em sua obra que o ordenamento territorial e espacial fosse feito de maneira a aglomerar todos os aspectos citadinos quanto campestres em um só ambiente, contribuindo para a manutenção da qualidade de vida de todos. Neste sentido, planejou então, a partir das especificidades do terreno, uma espécie de cidade que contivesse elementos do campo e da cidade, e que ainda, mantivesse cada ambiente, suas características fundamentais. Isso condizia com a fórmula que guiou seus desenhos: as cidades com muitas oportunidades de emprego e socialização careciam de espaços livres, devido o seu aumento populacional, já o campo, com sua farta produção de alimentos e ainda seu contato estreito com a natureza, carecia de oportunidades de emprego e infraestrutura. Assim, o que se convencionou em caracterizar como ímãs as duas áreas com as suas características, campo e cidade, seriam contrabalanceadas entre si e complementares. Dessa forma, Howard acreditava que os aspectos positivos das duas vivências estariam contemplados no projeto, o que ele chamou de Town- Country (Campo-Cidade). No Brasil, e particularmente na cidade de São Paulo, a Cia City, empresa que nasceu a partir de investidores brasileiros, ingleses e franceses em Londres, trouxe 5 HOWARD, E. Tomorrow: A peaceful path to real reform, 1898 / Garden cities of To-Morrow. Londres, Faber and Faber, 1946 [1902]. 15

da Europa o conhecido conceito de cidade-jardim. A Cia City comprou em São Paulo 15 milhões de metros quadrados, se estabeleceu na cidade em 1912, e com projetos baseados na concepção de Howard, respeitando os declives e as áreas verdes, dizendo também associar a falta de áreas verdes e o calor que era insuportável na cidade com projetos que consorciavam aspectos da cidade e do campo para uma melhor qualidade de vida. Os arredores de Paraisópolis, na Vila Andrade e o bairro do Morumbi são rodeados por bairros como Butantã, Caxingui e Jardim Guedala, moldados a partir da concepção da Cia City e a ideia de cidades-jardim. Segundo a própria Cia City, sua missão se define enquanto construtora de bairros com qualidade de vida que proporciona, dotados de segurança, respeitando a sociedade, os conceitos de cidadania, o meio ambiente e remunerando seus acionistas. 6 Não irei me concentrar aqui sobre a questão conceitual da arquitetura das cidades-jardim, porém, não é difícil de perceber, através de fotos aéreas, que os arruamentos no entorno da Favela de Paraisópolis não escapam aos conceitos promovidos pela Cia City na região e sua concepção de urbanização, salientando ainda, que a urbanização do bairro não fora feito pela Cia. Ao mesmo tempo em que a incorporadora reivindica os conceitos de Howard, termos como urbanização e a sua entrada no mercado das incorporadoras imobiliárias, demonstra que as ideias originais do urbanista-culturalista inglês, a partir do estudo da superpopulação da cidade e a vinda dessa população dos campos, na procura de equacionar sua ocupação a partir de novos desenhos para a configuração da produção e da vida nas cidades, foram modificadas a fim de criar ambientes e, acima de tudo, espaços de segregação social a partir da produção espacial direcionada a uma determinada, e diminuta, parcela da população. Haja visto o que Hall 7, na interpretação de Renato Saboya, diz sobre as ideias de Howard: Segundo ele, os autores costumam descrevê-la como um espaço urbano isolado em uma grande área rural. Hall argumenta que Howard propôs, ao contrário, que um sistema de cidades fosse construído dentro de distâncias não muito grandes. Assim, tão logo a população da primeira cidade-jardim atingisse seu máximo, outra cidade seria construída em local próximo, cuidando, entretanto para que uma área rural fosse mantida entre as duas. Estas seriam 6 http://www.ciacity.com.br/novo/index.php#/missao em 2013. 7 Sir Peter Geoffrey Hall, urbanista e geógrafo britânico (1932- ). 16

conectadas por estradas de ferro, que se encarregariam de possibilitar o intercâmbio de mercadorias. (Saboya, R. Ebenezer Howard e a Cidade-Jardim). 8 Dessa maneira, o bairro Morumbi concentra uma classe alta paulistana, com projetos de arborização baseadas no estilo cidade-jardim, não conforme a proposta original de Ebenezer Howard e sim enquanto a proposta de valorização das terras, partilhadas em loteamentos vendidos e financiados particularmente pelos futuros proprietários em nome da Cia City, se transformando no que conhecemos hoje como cidade verde (Bovo, 2011) 9 e que nessa apropriação, as áreas verdes fazem parte do cotidiano dos moradores, não os afastando da dinâmica de uma cidade em plena atividade econômica crescente como São Paulo, e também agregando elementos da vida campestre como a tranquilidade transmitida por aspectos como a natureza. Podemos notar a diferença a partir da análise que Saboya faz sobre a obra de Howard: Howard concebeu um mecanismo engenhoso para viabilizar a criação e a manutenção de uma Cidade-Jardim. Inicialmente, um terreno localizado em área rural deveria ser comprado por um grupo de pessoas, para abrigar a futura cidade. Esse terreno seria comprado por um preço baixo, compatível com o preço de terras rurais, a partir de um financiamento. O aumento do número de habitantes nessas terras seria capaz de diluir os juros do financiamento e de constituir um fundo para ir quitando aos poucos o principal. Assim, a partir de pagamentos relativamente pequenos, os habitantes da Cidade-Jardim poderiam quitar a dívida assumida e ainda obter recursos para as ações coletivas necessárias (construção de edificações públicas, manutenção dos espaços abertos, etc.). Na área rural, a competição natural entre os produtores, as culturas e os modos de produção deveriam indicar quais produtos seriam cultivados. Aqueles que conseguissem gerar mais renda se estabeleceriam nos arredores da Cidade-Jardim. A renda, entretanto, não seria apropriada por um único indivíduo, já que a terra teria sido adquirida coletivamente. Os benefícios obtidos em termos financeiros pelo aumento do valor da terra e, como consequência, pelo incremento da renda fundiária, seriam convertidos em menores impostos e mais investimentos coletivos (Saboya, R.; Ebenezer Howard e a Cidade-Jardim). 10 A ideia inicial de Howard portanto, não se objetivava estabelecer um padrão de planejamento de bairros de alto padrão, mas sim em resolver problemas novos que 8 http://urbanidades.arq.br/2008/10/ebenezer-howard-e-a-cidade-jardim/ em 2012. 9 Maringá: uma (re) leitura da imagem da cidade verde. Bovo, M. C.; Amorim, M. C. C. T., 2011. 10 http://urbanidades.arq.br/2008/10/ebenezer-howard-e-a-cidade-jardim/ acesso em 2012. 17

começavam a aparecer em cidades que estavam crescendo, como a insalubridade, pobreza e poluição, aliando elementos da vida urbana que estava se iniciando, e rural, experiência esta que é chamada por ele de ecologia humana. Ao fazer seus desenhos urbanísticos que tiveram a primeira experiência concreta no Reino Unido, a Cidade Jardim Letchworth em Hertfordshire (fig. 2), em 1903, Howard inovou a percepção de cidade, respeitando sua topografia e criando ambientes com características da cidade e do campo em um só lugar. Figura 2 (Tratamento da foto: Petrini, L. S.) O polígono nos mostra uma imagem de 2009 a partir do Google Earth. Esta área é onde se localiza a cidade jardim em Hertfordshire, no Reino Unido Seus projetos tiveram eco em alguns países como Estados Unidos, França e Brasil, sendo aqui capitaneado pelas empresas de construção de casas de alto padrão e na implementação de um planejamento territorial da cidade, mostrando a possibilidade de ordenamento da cidade baseado em conceitos verdes e não mais, como na sua proposta inicial, de conciliar aspectos da vida rural e urbana em uma determinada região da cidade. Em seu livro Morte e vida nas grandes cidades 11 (p. 449-468), Jane Jacobs critica o planejamento da cidade enquanto mecanismos funcionais para cada área de ocupação. Sob o argumento que as cidades tem uma vida própria e suas áreas se configuram de maneira autônoma para o desenvolvimento dela mesma, vai de encontro aos ideais de urbanistas como Howard, que estabelecem para cada área 11 Muerte y vida de las grandes ciudades, Barcelona, 1973 [1967], Edicions 62 s a. 18

da cidade uma função, tirando a sua mobilidade e consequentemente a sua vida. A relação das atividades desenvolvidas pelos habitantes da cidade com a sua construção possui sua importância à medida que esta contempla a forma de vida de seus moradores e expressa no espaço suas atividades. O planejamento das cidades não pode, dessa forma, sob seu ponto de vista, estar atrelada à variáveis como moradias e empregos, pois assim, a cidade perderia seu dinamismo. Com essa perspectiva é que os distritos de Vila Andrade e Morumbi são caracterizados como bairros de alto padrão e como um conceito de bairro verde, e não de convivência próxima, com estilo cooperativo, proposto por Howard. Segundo ele, a ideia com os projetos cidade-jardim era de resolver problemas provenientes da urbanização e das cidades que estavam crescendo e se consolidando, unindo as oportunidades e beleza destas cidades com os prazeres do campo. Por outras características como estruturação espacial das zonas funcionais em residencial, comercial, industrial, médico-hospitalar e administrativa, previamente estabelecidas entre si, os distritos de Vila Andrade e Morumbi, o primeiro onde está localizada Paraisópolis e o segundo enquanto vizinho próximo, não podemos dizer que ambos são expressões do conceito cidade jardim de Howard, e sim de um projeto capitaneado no plano das ideias e da técnica pelas construtoras e empreiteiras, se tornando então uma ideia de cidade verde. Tal mudança de concepção na consolidação do que podemos chamar de bairros nobres, pode ser enfatizada pela presença da Cia City em São Paulo, que idealizou os bairros onde hoje se concentra a classe alta paulistana, como Alto de Pinheiros, Alto da Lapa, Butantã, Caxingui e Jardim Guedala, além dos projetos de paisagismo como o Anhangabaú. As terras onde se localiza hoje a Vila Andrade eram de propriedade da Fazenda do Morumbi nos anos 20. Com o passar dos anos, a família Pignatari se tornou proprietária de uma chácara, loteamento da própria Fazenda. Indiferente das famílias que compraram terras da antiga Fazenda Morumbi, os Pignatari tinham um alto poder aquisito. O proprietário da chácara, o banqueiro Agostinho Martins de Andrade, da Casa Bancária Andrade e Filhos, que deu origem ao nome do bairro, tinha naquele espaço um local de veraneio para sua família, como uma área de lazer, entre os anos 30 e 40, sua família, residia no bairro Paraíso, próximo à atual Avenida Paulista. Falecido em 1945, seus filhos venderam a chácara, com mais de 19

600mil pés de eucalipto e cujo jardim se tornou o que conhecemos hoje como o Parque Burle Marx, nos anos 50. Essa terra foi comprada por uma empreendedora, sócia da empresa que conhecemos hoje como Camargo Correa, na figura Sebastião Camargo, então dono da construtora. A aceleração no crescimento do bairro se deu a partir dos anos 70, a partir de um tímido loteamento da área nos anos 60. 12,13. Dessa maneira, a Vila Andrade, que se localiza na Zona Sul da cidade, é muitas vezes e comumente chamada de Novo Morumbi, explicitando interesses do mercado imobiliário em fazer referência ao bairro nobre que se localiza na Zona Oeste da cidade, o Morumbi. Paraisópolis é caracterizado como um bairro distinto da Vila Andrade ou mesmo do Morumbi, por conta de seus moradores de baixa renda e pouca instrução formal, e se insere numa lógica de planejamento urbano da cidade que não contemplou elementos originais de projetos oriundos da concepção de Howard, mas incorporou em alguns espaços, concepções europeias de paisagismo e da arquitetura moderna, como dito anteriormente, na presença do Parque Burle Marx e nas construções de Niemeyer dentro do Parque. O planejamento da cidade ainda carecia de um modelo que contemplasse suas particularidades, e neste momento, se explicitava os primeiros desenhos e influências político-espaciais que teriam relevância neste projeto. Nos anos 50 o Morumbi e região já eram alvo de loteamentos comerciais. O projeto de retificação do Rio Pinheiros avançava na popularização da outra margem do Rio, e a família Matarazzo, entre outras, vendia seus terrenos para imobiliárias, entre outras justificativas, para a quitação de dívidas e de impostos com o Estado. No momento das vendas, a Imobiliária Aricanduva se torna proprietária de uma vasta área no Morumbi, e logo começa o seu loteamento. O São Paulo Futebol Clube (SPFC), à mesma época, fez duas solicitações sem sucesso, para a construção do seu estádio na cidade, a primeira seria na área pantanosa, vizinha do Parque Ibirapuera, projeto vetado pela Prefeitura, a segunda, seria nas áreas da Light, fruto da retificação do Rio Pinheiros, sem sucesso também, devido o interesse da Light em dar ao local um caráter empresarial. Com a venda de lotes pela Aricanduva, o SPFC viu a grande oportunidade em instalar o estádio. A partir de empréstimos com a Caixa Econômica Estadual, após os empréstimos também cedidos a clubes como o Corinthians e o Palmeiras para o mesmo fim, o Clube inicia 12 Bairros Paulistanos de A a Z, Levino Ponciano, SENAC, 2001. 13 http://www.policeneto.com.br/bairro-vivo/distritos/vila-andrade/distrito/ em 2013. 20