A PROBLEMATIZAÇÃO COMO DESAFIO METODOLÓGICO NO ENSINO SUPERIOR GASPARIN, João Luíz* Universidade Estadual de Maringá RESUMO O projeto tem como finalidade investigar a teoria do conhecimento que se constitui a base da Teoria Histórico-Cultural, que fundamenta a Pedagogia Histórico- Crítica e o método dialético de construção do conhecimento. Partindo do pressuposto de que toda a ação docente tem implícita ou explicitamente uma teoria do conhecimento que lhe dá sustentação, nosso intento é analisar como se caracteriza o modelo históricocultural que aborda o psiquismo humano enquanto um fenômeno histórico-social, em oposição ao modelo que trata do mesmo psiquismo sob o prisma biológico.
Introdução O método dialético de construção do conhecimento, que se expressa, a nível escolar, na Pedagogia Histórico-Crítica, apresenta, dentro de seus diversos passos, um a Problematização - que, por sua natureza e função, se torna fundamental para o encaminhamento de todo o processo de trabalho docente-discente. Uma de nossas preocupações, como professor do ensino de terceiro grau, tem sido a de buscar formas viáveis de traduzir para a prática cotidiana escolar a Pedagogia Histórico-Crítica. Os cinco passos dessa pedagogia, propostos por Saviani (1991) - Prática Social, Problematização, Instrumentalização, Catarse, Prática Social - constituem um todo que possibilita realizar em sala de aula o processo dialético prática-teoria-prática, como forma de concretizar a apropriação do conhecimento pelo aluno. Ainda que cada uma dessas fases tenha sua importância própria, queremos destacar a Problematização por constituir-se um elemento-chave na transição entre a prática e a teoria, ou entre a cultura primeira e a cultura elaborada, na expressão de Snyders (1988). Tendo como pressuposto de que o ponto de partida do trabalho docentediscente é a prática social, isto é, a vivência do conteúdo pelo educando, tanto na dimensão próxima e cotidiana, quanto no aspecto estrutural da sociedade considerada no seu todo, a Problematização representa o momento do processo em que essa prática social é posta em questão, analisada, interrogada, tendo em vista o conteúdo a ser trabalhado. A prática social do educando é sempre uma totalidade, que representa sua visão de mundo, sua concepção da realidade, transformada, com freqüência, em senso comum. Essa fase no processo pedagógico se constitui na percepção sincrética, empírica, naturalizada da realidade. O primeiro momento do trabalho docente-discente - a prática social inicial - consiste em ver essa realidade, tomar consciência de como ela está posta no seu todo e em suas relações com o conteúdo que será desenvolvido no processo pedagógico. Mas como nem todos os dados da realidade poderão ser trabalhados, há que se
fazer uma seleção do que é fundamental.esse processo de escolha significa fazer cortes, desequilibrar, provocar curiosidade, desafios, interrogações no educando a fim de queo objeto de estudo, ou seja, a informação, se transforme em objeto de conhecimento para ele.( Vasconcellos, 1993: 42). Este é o caminho percorrido pela Problematização na transição entre a Prática Social e a Instrumentalização. A Problematização é o começo da análise propriamente dita. É o desmonte da totalidade, onde se vai mostrando ao aluno como ela se constitui de múltiplos aspectos interligados. Consiste em evidenciar as diversas faces sob as quais pode ser visto o conteúdo. Considerando que os problemas postos pela prática social nem sempre podem ser tratados na sua totalidade em cada área do conhecimento, entendemos que os principais problemas postos pela prática social" (Saviani, 1991:80), em nosso estudo, são os relacionados ao conteúdo estabelecido pelo currículo escolar. Assim, o objetivo desse trabalho consiste em explicitar como a Problematização, se constitui, dentro da Pedagogia Histórico-Crítica, a fase decisiva para encaminhar todo o trabalho docente-discente. Problematização: desafio para professores e alunos Para entender essa fase do processo pedagógico é preciso ter claro que o trabalho de professores e alunos se situa na perspectiva do materialismo histórico e na busca da transformação social. Neste sentido, a escola deve trabalhar as grandes questões sociais que nos desafiam. Por isso, Saviani afirma que a Problematização deve "detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em conseqüência, que conhecimento é necessário dominar" (idem: 80). Torna-se evidente, por essa afirmação, que as grandes questões sociais precedem a seleção dos conteúdos. Levando-se em conta, todavia, que as escolas trabalham com disciplinas definidas pelo currículo, e que o conteúdo de cada uma delas é sempre previamente estabelecido e aprovado pelo corpo docente e pelos órgãos competentes, antes do início das aulas, torna-se difícil, para não dizer impraticável, estabelecer primeiro quais questões sociais serão tratadas e, em função delas, quais os conteúdos mais significativos que serão tratados como resposta.
Colocam-se, portanto, nesse momento diversas questões cruciais para o professor em seu cotidiano. Assim, na ordem prática da escola, o que vem primeiro, o conteúdo ou as grandes questões sociais? Quais são as grandes questões que se colocam no âmbito da prática social? Quem as define? Elas são as mesmas para todas as áreas de conhecimento e níveis de ensino? Por outro lado, tem o professor, ou o corpo docente, autonomia para definir quais são os conhecimentos mais significativos e que servirão para o entendimento das questões levantadas? Segundo wachowicz (1989: 100), "a seleção de conteúdos a ser feita nessa etapa não se coloca de forma rígida e previamente preparada, mas a decisão é da alçada do professor diante do grupo de alunos pelo qual se responsabiliza". A Problematização, portanto, "não pode ser apenas uma estratégia pela qual um conjunto de conteúdos pré-elaborados, dado ao professor, passaria por um processo de seleção em função das questões relevantes para a prática social. Haveria então um enlaçamento artificial entre os conteúdos necessários em uma determinada cultura e aqueles pontos que a prática social de um determinado grupo considera relevantes". Mesmo que muitos professores definam os conteúdos, no ensino superior, a partir dos principais problemas postos pela prática social, essa não é a regera comum. Os docentes estão limitados oficialmente pelas ementas das disciplinas, pelos programas delas derivados, tudo aprovado pelos órgãos competentes. No ensino fundamental e médio, a situação se agrava ainda mais pois o conteúdo é predeterminado, ainda que de maneira ampla, pelas Secretarias de Estado da Educação e pelas Secretarias Municipais de Educação, seguindo diretrizes do Conselho Federal de Educação, ou dos Conselhos Estaduais de educação. Teoricamente afirma-se que o professor seleciona os conteúdos, todavia, na ordem prática, eles já vem definidos. Em relação a essas questões devemos manter um equilíbrio, pois mesmo que desejemos efetuar uma revolução através da educação, isso dificilmente ocorrerá. Temos que partir das condições que nos são dadas para a seleção dos conteúdos com que trabalharemos na escola. Entendemos que o ideal seria que os conteúdos fossem definidos não pelo
professor, segundo seus critérios enquanto indivíduo, mas pelo corpo de professores de uma escola, ou de cada uma das áreas de conhecimento, tendo como fundamento a prática social, ou mais especificamente as necessidades sociais do momento histórico atual. Essas necessidades não seriam as dos alunos como indivíduos em si, mas dos educandos enquanto indivíduos sociais, situados em um determinado tempo e lugar, dentro de uma determinada estrutura social, de um modo específico de produção, com relações sociais próprias. Quem propõe os conteúdos, portanto, é a própria sociedade. Aos professores cabe, nesse caso, ler as necessidades sociais e, em função delas, selecionar os conhecimentos historicamente produzidos que mais adequadamente satisfarão as exigências do grupo. Os conteúdos escolhidos, em conseqüência, não partem das necessidades imediatas e locais de cada aluno, ou de cada grupo de alunos. As necessidades do aluno, enquanto indivíduo, ou de um grupo de estudantes, ou mesmo de uma escola toda não são critérios definidores do que deva ser ensinado nessa escola para esses educandos. Os conhecimentos a serem trabalhados não possuem características locais ou regionais. Eles são um produto universal que assume contornos e especificidades particulares conforme as regiões ou necessidades locais. Esses produtos da humanidade são comuns, uma vez que comum é a prática social, comuns são as necessidades sociais, as grandes questões que são enfrentadas coletivamente. Como há, pois, grandes questões sociais que nos desafiam, a elas devem corresponder conteúdos que dêem conta dessas necessidades. Não procede, portanto, a questão de quem vem primeiro, se o conteúdo escolar ou as questões de ordem social que exigem um determinado tipo de conhecimento elaborado. As duas dimensões são as faces intercambiáveis da mesma realidade. Na ordem prática escolar, porém, de maneira geral, o conteúdo a ser trabalhado precede às questões sociais. Em outras palavras, freqüentemente, é definido apesar delas. As Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, ou no professor, ou o grupo
de professores definem o que deve ser ensinado em cada série ou grau de ensino tendo como critério principal, e às vezes único, o conteúdo acumulado historicamente e já consagrado em programas anteriores, ou em livros didático que são adotados. Busca-se distribuir esses conhecimentos por séries e graus de ensino de tal forma que ao longo dos anos escolares possam ser comunicados de maneira lógica, gradual, seqüencial aos alunos, e estes os assimilem porque é uma exigência escolar. De maneira geral, e de modo específico no ensino superior, os conteúdos são comunicados aos educandos sob uma única dimensão, a científica. Aliás, o professor sempre enfatiza que o conteúdo é científico e se esforça para que seja aprendido como tal. Esquece-se, porém, que a ciência também é um produto social, nascida de necessidades históricas, econômicas, políticas, ideológicas, filosóficas, religiosas etc. Todo conteúdo, portanto, se reveste dessas dimensões. A maior dificuldade para os docentes não se encontra no aspecto científico do conteúdo, que de certa forma dominam, mas situa-se nas outras dimensões, que, provavelmente não foram trabalhadas em seus cursos de formação. Em nosso entender, essas diversas dimensões em que pode ser trabalhado o conteúdo respondem, de certa maneira, àquilo que Saviani diz ser necessário dominar para resolver as questões da prática social. Ora, se toda realidade social envolve sempre uma gama de perspectivas, um conjunto de aspectos interdependentes, é lógico que a abstração, a análise dessa realidade deva ser considerada sob múltiplas faces. Por isso, o conteúdo escolar será sempre um instrumento de compreensão da realidade em que aluno e professor estão inseridos. O conhecimento passa a ser entendido, então, como uma forma teórica de necessidades sociais práticas dos grupos humanos. Neste sentido, cada conteúdo terá dimensões sociais, científicas, ideológicas, históricas, políticas, culturais... uma vez que nasceu de uma realidade que contém todos esses elementos, e agora a ela retorna, de forma mais clara, sistematizada, iluminando a compreensão e a ação social-escolar do educando. Parece-nos, por conseqüência, que não há contradição, se na ordem prática
escolar, a problematização se inicia pelo marco teórico e não pelas grandes questões sociais que detectamos. E mesmo que haja contradição, o certo é que na realidade escolar, sendo os conteúdos sempre previamente definidos, nem sempre o são em função de questões relevantes da prática social. Encaminhamentos práticos Em nossa experiência docente, tanto no magistério superior, quanto nos cursos que ministramos para professores do ensino fundamental e médio, temos sempre partido da realidade que encontramos nas escolas, ou seja, os programas já prontos e em execução nas diversas disciplinas e séries. Entendemos que o ponto inicial do trabalho consiste em não descartar o programas e os manuais didáticos que os professores utilizam. A partir desses instrumentos é que procedemos ao levantamento das grandes questões sociais. Buscamos, então, verificar que implicações esse conteúdo possui para a prática social. A Problematização, em verdade, busca selecionar e discutir questões que tem sua origem na prática social, descrita no primeiro passo do método proposto por Saviani, mas que se ligam e procedem ao mesmo tempo do conteúdo a ser trabalhado. Serão, portanto, grandes questões sociais, mas inseridas e especificadas no conteúdo da unidade que está sendo desenvolvida pelo professor. Nesta fase podem seroperacionalizadas as seguintes tarefas principais: 1 Explicitação dos conteúdos que serão trabalhados, partindo do programa elaborado pelo órgão competente, departamento, ou grupo de professores. Na prática essa explicitação se realiza informando aos alunos quais os tópicos e subtópicos que serão abordados nas próximas aulas. É a listagem dos temas que serão tratados. Esse procedimento auxilia aos educandos a assumir o encaminhamento do processo pedagógico. 2 - Elaboração de uma série de perguntas que se originam da prática social e do conteúdo proposto pelo currículo. Na fase da prática social inicial é feito um levantamento da realidade que circunstancia o conteúdo. Surgem daí muitas questões que serão retomadas na Problematização. Mas, como normalmente os alunos não têm o hábito de trabalhar com esse método, a prática social inicial poderá
permanecer em um nível bastante superficial. Daí a necessidade de o professor suscitar nos educandos questões que lhes despertem o interesse, que os mobilizem. Por outra parte, como se trata de um processo pedagógico diretivo, deve o professor já ter previamente preparado uma série de questões relacionadas ao conteúdo curricular. 3 - As questões às quais estamos nos referindo devem necessariamente expressar as diversas dimensões que, segundo a natureza do conteúdo curricular, mais especificamente a ele se referem. Assim, o professor, a partir dos tópicos e subtópicos da unidade de conteúdo, elaborará questões que envolvam aspectos sociais, econômicos, políticos, científicos, culturais, históricos, filosóficos, religiosos, morais, éticos, estéticos, literários etc. 4 - Este processo de explorar as diversas faces do conteúdo é uma maneira prática de transformá-lo em questões problematizadoras, desafiadoras, que orientarão as fases posteriores do método. 5 - Para selecionar as questões fundamentais proceda-se da seguinte forma: para cada item do conteúdo elabore-se uma ou duas perguntas envolvendo as dimensões mais pertinentes. Se as perguntas puderem ser formuladas junto aos alunos tanto melhor. Como, porém,na prática esse procedimento poderá cair no espontaneísmo é recomendável que o professor as prepare antecipadamente, e na aula as apresente aos educandos, discutindo-as com eles e reformulando-as se necessário. 6 - As questões apresentadas deverão ser anotadas e mantidas sempre presentes pelos alunos, pois elas se tornarão a diretriz do processo pedagógico. 7 - Nesta fase há que se mostrar como o conteúdo programático se conecta com a prática social na busca de compreensão e encaminhamentos das questões sociais a serem resolvidas. 8 - A preocupação maior no processo de construção do conhecimento não será mais estudar apenas para reproduzir algo, mas sim, no sentido de encaminhar soluções, ainda que teóricas para os desafios que nos são colocados pela realidade. 9 - Há necessidade de informar aos educandos que o conteúdo será estudado numa determinada linha política, através do processo teórico-metodológico que tem
como suporte o materialismo histórico, buscando a transformação social. 10 - É fundamental evidenciar como as diversas dimensões através das quais o conteúdo será tratado nada mais são do que a expressão, ou a explicitação da totalidade constitutiva da realidade de um determinado momento histórico. Consequentemente, para apreender com maior precisão a realidade de hoje, através dos conteúdos escolares, se faz necessário dominá-los e atualizá-los em todas as dimensões que respondem aos desafios de nosso tempo. Conclusão A Problematização, como uma das fases do processo teório-metodológico que tem seus fundamentos na Pedagogia Histórico-Crítica, representa um desafio para professores e alunos do ensino superiorpois trata-se de uma nova forma de considerar o conhecimento, tanto em suas finalidades sociais quanto na forma de comunicá-lo e reconstruí-lo. Implica uma nova maneira de estudar, de preparar o que será trabalhado com os alunos, uma vez que as dimensões, os questionamentos a que se submete o conteúdo exigirão do professor uma reestruturação do conhecimento que já dominava. O conteúdo será entendido como uma construção histórica, não natural, portanto; uma construção social historicizada para responder a necessidades humanas. Por outra parte, todo o processo de ensino-aprendizagem alterar-se-á. Não haverá mais apenas a exposição como forma didática predominante de comunicar o conhecimento, mas sim o diálogo, a partir de questões sociais levantadas, selecionadas; ou a partir do conteúdo curricular visto sob as diversas dimensões que o ligam à realidade, dando sentido ao aprender. Entendemos, desta forma, que a Problematização se torna o fio condutor de todo o processo de ensino-aprendizagem.
Bibliografia AFONSO, Cleiza Quadros. Fica sem resposta o que os livros dizem - A mediação na perspectiva da pedagogia histórico-crítica.. Campinas, Papirus, 1996. BORAN, Jorge. O senso crítico e o método ver julgar agir. São Paulo, Loyola, 1977. SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. São Paulo, Cortez-Autores associados,1991. SNYDERS,Georges. A alegria na escola. São Paulo, Manole, 1988. VASCONCELLOS, Celso dos S. Construção do conhecimento em sala de aula. São Paulo, Cadernos Pedagógicos do Libertad, 1993. WACHOWICZ, Lílian Anna. O método dialético na didática. Campinas, Papirus, 1989.