MULHERES NEGRAS: SUA PARTICIPAÇÃO HISTÓRICA NA SOCIEDADE ESCRAVISTA

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Transcrição:

MULHERES NEGRAS: SUA PARTICIPAÇÃO HISTÓRICA NA SOCIEDADE ESCRAVISTA Maria da Penha Silva Abordar a história da população negra no Brasil, assim como as especificidades em relação a mulher negra escrava, é sem dúvida um exercício que vem sendo buscado cada vez mais pelos estudiosos na recente historiografia social da escravidão, e entre eles podemos destacar: Mattoso(1982), Silva Dias (1984), Giacomini(1988), Rocha (2001), Schwartz (2001), Gomes(2003),entre outros. Falar da mulher escrava num período de extrema opressão a população negra é penetrar no universo de quem viveu a experiência de ter tido sua identidade invisibilisada, ter sido submetida a violência, mas também destacam suas ações de resistência ao sistema. Porém, 1980 período que se inaugura uma nova fase sobre pesquisas acerca da escravidão, diversos temas vêm sendo abordados com relação as vivência de mulheres e homens negros e a fundamental relevância que teve o papel desempenhado pelas mulheres dentro desse contexto entre outras abordagens. Levando em consideração que a escravidão foi um fenômeno que muito repercutiu na construção identitária do Brasil, podemos ver Mattoso (1982), onde sua obra Ser Escravo no Brasil aborda aspectos da escravidão tais como estruturas e organizações do tráfico e como estas favoreciam ao mesmo, ao debruçar-se sobre as cartas de alforria a autora mostra que enquanto dispositivo legal possuía critérios para sua concessão, de forma que muitas vezes passavam-se anos para ser concretizada. Segundo a autora, as modalidades para obtenção da liberdade escondem as verdadeiras intenções dos senhores, que naquele contexto social convenciam-se de suas boas ações e em seus conceitos essa prática gerava equidades. Para Mattoso as alforrias eram práticas que suscitavam esperanças e ilusões nos homens e mulheres que palmilharam um caminho minado de armadilhas, o da liberdade. Silva Dias (1984) e Giacomini (1988) penetraram no universo das mulheres escravizadas na São Paulo do século XIX, onde a primeira apresenta uma especificidade: destaca de forma especial as mulheres brancas empobrecidas, onde a escrava torna-se trabalhadora importante para seu sustento trabalhando nas ruas como quitandeiras e outras atividades e assim garantindo a sobrevivência de ambas. A segunda tem como objetivo pensar a mulher escrava ressaltando seu papel social e sexual, perpassando pela relação proprietário/escrava e destacando sua condição de mãe e trabalhadora. Rocha (2001) aborda as questões relativas as mulheres escravizadas na Província da Paraíba, apresentando os aspectos referentes ao modo de vida dessas mulheres, suas atividades, estratégias de resistência ao sistema e suas redes de sociabilidades e solidariedades. Schwartz (2001) que em sua obra Escravos Roceiros e Rebeldes, traz uma visão ampla a respeito dessas produções, tanto antes de 1988 como após esse período, na qual afirma que: Tanto na busca da manumissão, na luta por algum grau de autonomia na produção, na criação de laços familiares, na escolha ou na aceitação de padrinhos, quanto na resistência á escravidão, a história dos escravos como agentes, e não como mera categoria de mão-de-obra ou objeto de repressão, é tema de grande parte da historiografia recente da escravidão brasileira. Gomes (2003), Utilizando anúncios de jornais como fontes de pesquisa, penetra nos universos sociais dos escravos fugidos no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, destacando as incidências de fugitivos africanos do sexo masculino, não 1

deixando de apresentar o índice de fugas entre as mulheres, que segundo ele não fugiam menos que os homens, apenas havia uma alta taxa de masculinidade e africanidade na população escrava no Rio de Janeiro nesse período. È importante observar, que os estudos sobre a escravidão vêm oferecendo espaço para grandes discussões sobre a mulher escrava, vem recuperando de forma gradativa a vida daquela que por muito tempo ficou na invisibilidade. Em especial, na Paraíba encontramos essas mulheres definindo seu espaço através de sua identidade, resistindo a escravização e consequentemente transformando-se em agentes construtoras de suas histórias, deixando suas marcas e legados para a sociedade em todos os segmentos, entre esses legados destaca-se a religião, espaço utilizado pelos escravos como refugio e encontros geradores de afinidades, lugar onde amor, respeito, solidariedade e obediência eram elementos indispensáveis á construção de laços afetivos, movimentos defensivos á dominação. Indubitavelmente, os negros estiveram presentes desde o inicio da formação social brasileira, é possível afirmar que suas culturas contribuíram para forjar as identidades formadas no Brasil. Os estudos sobre a escravidão têm certamente contribuído para devolver aos construtores do Brasil a sua dignidade, têm ajudado a contar a história de mulheres e homens negros. Partindo dessas análises precisamos entender que as experiências das mulheres negras escravizadas devem ser levadas em conta na hora de escrever a história da escravidão e do próprio país, pois o conhecimento de suas experiências, suas estratégias de sobrevivência e de mobilidade social, não apenas permite que a história das mulheres seja vislumbrada num aspecto mais amplo, como torna possível uma revisão crítica da escrita histórica. Por isso ao analisarmos alguns estudos sobre á escravidão, sobretudo aqueles que se referem ou estão indiretamente relacionados com manifestações de mulheres negras em relação ao sistema escravista, preferencialmente os que dizem respeito á resistência ou a maneira de conquistar a liberdade, pretende-se destacar a condição particular e específica dessas mulheres, buscando recuperar na interconexão entre escravismo e patriarcado, as estratégias de resistência e as maneiras como a mulher escravizada procurava a liberdade, ou a liberta procurava ascender socialmente. Além disso, é necessário fazer uma tentativa de se apreender, com o máximo rigor possível, as ambigüidades que atravessam a experiência das mulheres negras, escravas ou libertas, num quadro social que as oprimia, partindo da análise de que as mulheres negras participavam da sociedade escravista tanto na condição de escrava quanto de liberta e livre com demandas específicas e maneiras próprias, dada sua condição naquele quadro social. È necessário ainda analisar os escravizados partindo do pressuposto de que eles eram dotados de percepção, portanto, capazes de perceber a política que permeava seu espaço social, e nessa perspectiva lançar mão do que a nova historiografia da escravidão tem proporcionado no sentido de que esse olhar permitirá uma visão mais ampla acerca da organização da escravidão e de como ela funciona dentro do sistema social e cultural. Toda essa produção historiográfica referente a escravidão, nos permite novas visões sobre esses sujeitos históricos, permitindo-nos observá-los a partir de suas lógicas de resistência e nesse contexto estão as fugas, suicídios, assassinatos e sabotagens que eram uma maneira do escravizado se colocar de modo ativo em relação ao seu senhor. Ao resistir ao sistema mulheres e homens cativos, buscavam conquistar a liberdade, resistir era uma maneira de contestar uma ralação de poder dos escravistas, por isso agiam de acordo com suas lógicas, tornando todo tipo de resistência numa forma de produzir liberdade e em suas experiências, revelam-se suas particularidades, pois as 2

experiências vividas pelas mulheres escravizadas são as mais diversas possíveis e nesse aspecto a resistência possuía características bem particulares. Vale ressaltar que a sociedade escravista do século XIX foi palco de lutas, resistências e de interesses escusos. Lugar onde submissão e obediência camuflavam estratégias de resistências que garantiam a sobrevivência de mulheres e homens negros. A escrava foge dos princípios que norteiam as relações familiares da sociedade escravocrata, diferentemente das mulheres da classe dominante à sexualidade da escrava não se enquadra nos parâmetros ideológicos da família branca, não está voltada a procriação e nem a reprodução. São inúmeros os casos de negligência e de descaso dos senhores, no que se refere a questão e tratamento da reprodução das escravas visto que quando grávidas não dispunham ou melhor, não lhes eram concedidas nenhuma condição por mínima que fosse para que houvesse um melhor desenvolvimento do feto. Na realidade o que interessava aos senhores era explorar a força produtiva de seus escravos, sem se importar se era homem ou mulher, o que importava era o produto do trabalho de ambos. Assim uma mulher negra grávida era mantida desenvolvendo trabalho compulsório e com respeito aos filhos, a esses nenhuma importância era dada já que aos olhos do senhor eram antieconômicos, e não são raros os relatos de abandono de crianças por representarem uma despesa a mais para os senhores e também motivo para que a mãe negra passasse a desempenhar com menor intensidade suas tarefas visto que teria de dedicar-se ao filho. A sociedade escravista era estruturada de forma bastante rígida e cada indivíduo ocupava um lugar para ele determinado, e vale lembrar que, o que permitia essa diferenciação social era a condição do indivíduo, mais é necessário também ressaltar que a cor da pele era um requisito muito importante para definição dessa hierarquia no século XIX. Hierarquia essa que colocava de um lado: os brancos, e do outro, os negros e indígenas considerados inferiores. Inseridos nesse contexto estão às mulheres negras escravas, que sem dúvida estavam colocadas em um nível social inferior, tanto por ser mulher, como por ser negra e, também escrava. Ser mulher, e ser escrava dentro de uma sociedade extremamente preconceituosa, opressora e sexista, é reunir todos os elementos favoráveis a exploração, tanto econômica quanto sexual, e também ser o alvo de humilhações da sociedade nos seus diferentes seguimentos. GIACOMINI (1988, p.26)...não seria, no entanto, descabido identificar na prática do aborto e do infanticídio uma forma de resistência da escrava seja ás péssimas condições oferecidas á procriação, seja ainda a inevitável condição escrava que legaria em herança aos filhos. Os infanticídios, vistos sob esse prisma, seriam, sobretudo, a única e trágica forma visualizada pela mãe escrava para livrar seus filhos da escravidão. É de muita importância observar que até mesmo numa atitude trágica reflete-se o desejo de liberdade onde pessoas mesmo desprestigiadas socialmente lutam com as armas que possuem pelo direito de melhorarem suas vidas, são atitudes tomadas em momento de desespero que nos leva a crer que resistir ao sistema dependia do momento e das circunstâncias em que os escravizados estavam inseridos e tais atitudes mostram a verdadeira face do sistema escravista. Na Paraíba oitocentista atitudes de violência dos senhores contra seus escravos são também evidentes, como evidencia-se a resistência dos grupos dominados. 3

Um exemplo ilustrativo e dramático da violência contra as cativas ocorreu em Souza município do sertão, em 1881, quando um senhor de escravos o Tenente Antonio José de Sá Barreto se esmerou em molestar as suas escravas e os filhos destas. A primeira a conhecer a atmosfera do inferno foi a escrava Josepha, mãe de três crianças (Vicente, Isabel e Maria), todas mortas em decorrência da truculência de tal senhor. (ROCHA 2001) Os atos de desumanidade do Tenente Antonio José de Sá Barreto, ia além do que se pode imaginar, seus métodos eram os piores possíveis, nem as crianças estavam imunes a suas barbáries. Suas atitudes cruéis eram chocantes, e vale ressaltar o caso de uma criança que morreu pouco tempo depois de nascer, era filha de uma escrava desse truculento senhor de nome Appolonia, que passado o período do resguardo foi vendida e consequentemente separada da filha que um mês depois da venda da mãe morreu. São relatos desse tipo que demonstram a realidade da escravidão, um sistema que dava plenos poderes aos senhores, os quais controlavam as vidas das escravas de forma cruel e desumana. Se tratando de mulheres negras, vamos encontrá-las submetidas as mais diversas situações e submetidas a atrocidades por parte dos senhores, lembrando que na Parahyba do Norte a mulher negra teve que lutar e enfrentar uma forte hierarquia com o firme propósito de definir seu espaço dentro da sociedade. Outros aspectos da violência vão acontecer entre escravas e outros membros da sociedade daquele período. Casos de brutalidades aparecem também nas páginas de jornais da época, como é o caso do Emancipador, que a 5 do mês de maio de 1883 apresenta a seguinte nota: Os jornais já estão cansados de annunciar que em vários logares os abolicionistas estão arrancando das famílias, escravinhas honestas, que prometem alforria quase de graça, e escolhem sempre as mais galantes e jeitosas para utilizarem-se de seu corpo, e depois de saciada a sua brutal sensualidade, as expõem as garras da prostituição sub condictione de repartirem o rendimento (Instituto Histórico e Geográfico Paraibano. Parahyba 05 de maio de 1883) É importante observar que o episódio notificado pelo jornal, apresenta uma contradição com relação aos ideais de liberdade apregoados pelos abolicionistas, pois aqueles que deveriam lutar pela eliminação da violência e arbitrariedades do regime escravista, eles próprios estavam caminhando na contra mão de seus discursos. As fugas também faziam parte dos protestos pela liberdade e era índice importante na resistência ao sistema. E ao que parece era uma forma desafiadora, a fuga representava um grande risco para quem se aventurava nela. E não foram poucas as mulheres e homens negros que apelaram para essa forma de liberdade onde muitos puderam contar com a solidariedade de algumas pessoas que lhes davam abrigo e que a partir de então passavam a também correr riscos por esconderem propriedades alheias. A fuga era uma forma de realizar o sonho de liberdade, era o desejo de livrar-se dos maus tratos do senhor e do trabalho compulsório. Apesar de toda dificuldade que envolvia a vida das escravas são muitos os episódios envolvendo a fuga de escravizadas que tentavam abandonar a triste rotina a qual envolvia não só trabalho, mas, também castigos, há casos também de escravizadas que fugiram acompanhadas de seus filhos. 4

Na noite do dia 10 do corrente desapareceu do engenho Jardim, d esta comarca de bananeiras, a escrava Dionísia, preta gorda; estatura regular, feições grosseiras, olhos apertados, matriculada neste município em 1872 com a idade de 25 annos; um filho da mesma escrava de nome Fernando, cabra escuro, cabellos carapinhos, nariz muito chato, gago, com uma cicatriz de queimadura que apanha do estomago ao meio das costellas. (Jornal da Parahyba, 23 de novembro de 1881). As fugas representavam o grau de complexidade que envolvia a ação, fugir e manter-se escondido eram situações bem complexas e que colocava no mesmo patamar as experiências tanto dos fugidos quanto as dos cativos. Segundo Gomes (2003): As fugas estavam inseridas na experiência cotidiana dos escravos e constituem um aspecto revelador dos mecanismos de resistência, destacando a constituição de comunidades, identidades e culturas. Porém, nem só de tiranias e submissão era composto o cotidiano das mulheres escravizadas, vamos encontrá-las também movimentando-se em seus espaços sociais, negociando, exigindo seus direitos e construindo suas redes de solidariedades, pois os contatos sociais e a circularidade de informações geralmente eram organizados em torno de seus pequenos negócios, os quais chamavam a atenção das posturas que voltavam-se contra os mesmos por suas características clandestinas (as vezes) e que segundo (SILVA DIAS, 1984, p. 114) Muitas dessas medidas repressivas focalizavam, em especial, os movimentos das mulheres escravas, em função do papel importante que desempenhavam na vida comunitária dos escravos. Os exemplos de mulheres forras que buscavam mobilidade social e o direito de continuar gozando de sua liberdade podem lembrar o caso da crioula Gertrudes, que após ser alforriada sob condição, viu seu projeto de liberdade ser ameaçado quando teve que recorrer a justiça para provar sua condição de liberta, travando um embate judicial contra os credores de seu ex-senhor que a exigiam como pagamento de uma dívida contraída pelo mesmo. O processo foi iniciado em 08 de julho de 1828, quando dois credores entraram com uma petição de embargo com vigor de penhora contra José Carlos da Costa, requerendo a comercialização da suposta escrava para se efetuar o pagamento das dívidas (ROCHA 2001, p.84) Nas ações de Gertrudes consolida-se o pensamento a respeito do quanto ela se percebia no meio social em que vivia e como era importante a construção das relações nesses espaços, tanto para escravas conquistarem a sua liberdade, como para as forras manterem-se livres e ascenderem socialmente, nessa perspectiva construir uma rede de solidariedades era imprescindível. Um outro caso que chama a atenção no tocante as mulheres negras, é que independente da condição jurídica das mesmas, vamos encontrá-las movendo ações judiciais contra seus donos ou ex-donos, e até mesmo contra tutores, foi o que fez Cândida africana livre que desembarcou em Pernambuco em 1831 quando a embarcação que a conduzia foi apreendida. Segundo a lei vigente Cândida por ter sido traficada de forma ilegal, deveria ser emancipada de imediato, mas, segundo a mesma lei deveria passar por um processo de aprendizado e adaptação para depois ser inserida no grupo das pessoas livres. Cândida foi considerada liberta em outubro daquele ano (1831) e no ano seguinte arrematada por um particular de nome Marcolino José Ferreira, que segundo os 5

termos de arrematação, ficaria incumbido de ensinar a Cândida algum tipo de ofício, alimentá-la e doutriná-la na fé cristã. Em contrapartida Cândida deveria trazer $480 réis diariamente para o seu contratante. Até ai tudo parecia estar certo e em 1842, falecido Marcolino, Cândida principia mover uma ação de justificação, pois pretendia comprovar que era capaz de viver sobre si, portanto, não necessitava de tutor. Nesse momento inicia-se uma queda de braço entre ela e a viúva do Marcolino, trava-se então um embate entre as duas, disputa que acaba favorecendo a viúva muito embora todos que testemunharam a favor da africana a tenham classificado como uma pessoa de bons costumes boa vendeira e sabedora da Doutrina Cristã. Foi um embate desigual, pois entre uma viúva honrada, portanto, prestigiada socialmente e uma africana livre; pessoa desprestigiada não apenas pela cor, mais também pela profissão, visto que para exercê-la Cândida precisava adentrar o mundo da rua, lugar das mulheres não descentes. Assim como Gertrudes pretendia continuar gozando sua liberdade de forra, Cândida também trava uma luta árdua para conseguir sua autonomia, precisava acabar com a liberdade fictícia e para isso usou de persistência e perseverança no intuito de alcançar seus objetivos. Afrontamentos e desafios entre escravos e seus senhores não eram raros, embora muitas vezes travassem-se embates silenciosos e disfarçados entre ambas as partes. Mas, havia também aqueles que declaravam-se contra o sistema e demonstravam essa contrariedade de diversas formas. Foi o caso dos escravos do Engenho Santana no sul da Bahia em fins do século XVIII. Estes contrários ao regime assassinaram o supervisor fugindo e escondendo-se na floresta durante um longo período. Não suportaram a pressão resolvendo negociar com o dono do engenho onde tentaram firmar o que chamaram Tratado de paz fazendo imposições que caso fossem atendidas voltariam a escravidão. É um documento que não traz á tona apenas mais uma revolta de escravos. Para (Schwartz 2001, p.108): Em destaque entre as condições do tratado estavam às relativas á natureza do trabalho, das quotas exigidas no sistema de tarefas e do acesso dos escravos a lotes de terras para cultivo independente O autor não menciona a participação das mulheres nessa revolta de Santana, mais deixa explícita a peculiaridade desses escravos, como se percebiam e compreendiam a política que permeava seus espaços, eles não tiveram êxito, mais suas atitudes foram importantes no sentido de que puderam falar diretamente sobre o funcionamento do sistema escravista. Levando em consideração que a escravidão, enquanto relação social de produção determinava claramente o lugar dos elementos que compunham a sociedade daquele período, torna-se necessário ressaltar que,a referência básica que o sistema dava aos africanos para sua socialização possuía uma dupla condição: a condição de escravo e o fato de ter ascendência africana. Elementos com espaços expressamente determinados precisavam mesmo ser dotados de percepção, e não tinha como não ser, em virtude da enorme disparidade entre eles e os demais elementos da sociedade. Um sistema que tinha o objetivo de oprimir o povo negro, não consegue enxergar na população escrava indícios de inteligência, julgando suas atitudes como reações momentâneas e não próprias de quem as articula antes de executá-las, mas, os negros provam o contrário e sempre atentos, esperam o momento oportuno para entrarem em ação. 6

Nesse aspecto, pode-se ver que homens e mulheres escravizados não estavam alheios aos acontecimentos que os cercava em nenhum aspecto. Uma observação a ser feita é a respeito das táticas usadas pelos senhores de misturar escravos de diferentes etnias, mais que acabou resultando numa troca de culturas, assim o que era uma forma de impedir possíveis rebeliões, torna-se numa troca de experiências visto que as fugas e outras formas de resistências vão continuar acontecendo, então o projeto que culminaria numa desarticulação das estratégias dos escravizados torna-se numa construção de redes de solidariedades. A preservação cultural da população negra pode ser considerada uma das mais importantes formas de resistência, pois levadas em consideração todas as agressões sofridas por eles, não se pode esquecer que tais violências vão dos castigos físicos ao psicológico. Salientando-se que vindo para o território brasileiro o escravo carrega consigo práticas e hábitos, os quais por imposição precisam ser deixados de lado, pelo menos é assim que desejam os senhores. Mas, homens e mulheres escravizados, carregaram consigo uma cultura própria, as quais procuraram preservar, pois nem os chicotes, ferro no pescoço, estupros e outras formas de violência foi suficiente para que a resistência ao regime fosse minada. Na província paraibana, uma área onde concentrou-se um pequeno número de escravos, a crueldade sobressaiu-se de forma intensa, e o vigor da violência levou muitas escravas ao suicídio, outras tornaram-se transgressoras, por não respeitarem os códigos de conduta. Um dado interessante, é que, apesar de toda vigilância, especialmente nas áreas urbanas, nem mesmo as formas adotadas para disciplinar as escravas, eram suficientes para coibir seus atos, principalmente quando as escravas desempenhavam atividades que lhes davam mais oportunidade de mobilização, nesses movimentos elas conseguiam construir suas amizades e a partir de então, pensar numa maneira de posteriormente conseguir ajuda e colocarem em funcionamento seus planos de fuga ou concessão de alforrias. Visto que para movimentar-se, o escravo precisava obedecer a uma delimitação de espaço, com tempo delimitado e modo definido, cabia a ele ficar sob as ordens do seu dono e sob a força do chicote, mais é valoroso salientar que para fugir e resistir eles não pediam permissão. Para uma sociedade que considerava os escravos coisa, desprovidos de racionalidade, parece-nos desnecessário tal receio. A verdade é que senhores de escravos jamais admitiriam que viviam receosos com relação a possíveis investidas dos escravos contra eles, tanto é que, impunham sua autoridade pela força dos chicotes, faziam valer seus direitos de proprietários pela brutal violência do corpo e das mentes de mulheres e homens escravizados. Enfim, numa perspectiva de resgate, precisamos marcar presença na construção de uma nova sociedade utilizando-nos dos instrumentos possíveis á desconstrução de idéias e atitudes que venham negar direitos e gerar falta de humanidade entre sujeitos inseridos em diferentes segmentos sociais de forma que tais indivíduos sejam emancipados realmente. REFERÊNCIAS DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. GIACOMINI, Sonia Maria. Mulher e escrava: Uma Introdução ao Estudo da Mulher Negra no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes. 1988. GOMES, Flávio dos Santos. Experiências atlânticas: ensaios e pesquisas sobre a escravidão e pós-emancipação no Brasil. Passo Fundo: UPF, 2003. 7

MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasilense. 1982 ROCHA, Solange Pereira. Na Trilha do Feminino: condições de vida das mulheres escravizadas na província da Paraíba, 1828_1888. Dissertação de mestrado em Historia, Universidade Federal de Pernambuco. 2001) SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001. 8