Considerações sobre a teoria cartesiana do conhecimento (Epistemologia)

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Transcrição:

Considerações sobre a teoria cartesiana do conhecimento (Epistemologia) Aristóteles caiu e agora? A filosofia medieval, fundada na doutrina aristotélica, sucumbia às pressões do Renascimento e da modernidade. A revolução cosmológica - do mundo fechado ao universo aberto; no conceito de Natureza - de uma natureza mágica e animada para uma natureza mecânica; e epistemológica - do saber livresco à confiança na razão e ao estudo no livro da natureza, marcam de forma decisiva o pensamento de Descartes. Descartes é um homem da modernidade e essa marca é visível no seu racionalismo a crença na razão como garantia do conhecimento; no idealismo o primado da consciência, do sujeito sobre o objecto; e na conceção de natureza mecânica e extensa. No entanto, encontramos no seu pensamento convicções medievais, como a ideia de uma causalidade eficiente Deus como artífice do mundo; a gradação dos seres, com Deus como ser supremo, e a perfeição divina. O problema central da filosofia cartesiana é determinar o que é possível conhecer com certeza e se este saber tem alguma aplicação existencial prática. 1

1ª Lição 1. Será possível conhecer com certeza (fundar uma ciência universal)? Enquadramento de Descartes nas teorias gnosiológicas clássicas (Dogmatismo e Ceticismo). Descartes responde afirmativamente a este problema, embora com reservas, pois irá submeter o conhecimento tradicional e as faculdades de conhecimento (sentidos e razão) ao crivo da dúvida. Neste sentido, Descartes não é um verdadeiro dogmático - pois para estes a possibilidade do conhecimento não se coloca como problema: não é possível conhecer com certeza -, mas um cético metódico (o seu ceticismo sobre a possibilidade do conhecimento dura apenas até à descoberta da 1ª verdade) no entanto, como Kant refere, Descartes não põe em causa a falibilidade da razão, do método, e nesse sentido podemos considerá-lo um dogmático. O Método cartesiano e a sua necessidade Se é possível conhecer com certeza, por que razão não aceita Descartes o conhecimento disponível na sua época? Porque quer a filosofia e a ciência da sua época, quer o sistema aristotélico, que suporta a mundovisão medieval não oferecem garantias de verdade - a física aristotélica ruía às mãos de Galileu, Copérnico, etc.. Por outro lado, os ensinamentos contidos na Sagrada Escritura, na Bíblia, começavam a ser discutidos e relativizados. Descartes percebe que o saber do seu tempo é constituído por um vasto conjunto de teorias incertas e contraditórias entre si. Este estado de coisas deve-se, sobretudo, a alguns fatores tais como uma excessiva confiança na razão e nos sentidos. Ora, sentidos enganam-nos e são limitados: vejo o sol a gira em torno da terra, quando na verdade está imóvel e não conseguimos observar a estrutura atómica da matéria, por exemplo. Por outro lado, a forma como a razão humana conhece, isto é, discursivamente: partindo de um princípio indubitável - que não oferece dúvidas - atinge, por dedução, o conhecimento da verdade, e as proposições nas quais assenta, podem ser motivo de engano. A razão pode errar quando passa de uma proposição para outra, até à conclusão - como numa demonstração matemática -, ou quando assenta a sua demonstração em princípios duvidosos ou que exigem outros, numa regressão de justificações até ao infinito. Por outro lado, a razão silogística aristotélica e experimental usada por Galileu Copérnico, etc., também 2

são falíveis sobretudo, porque não utilizam o método adequado. Se os sentidos e a razão humana não são fiáveis, então todo o saber erigido sobre elas está condenado à dúvida. Descartes vai mais longe na sua dúvida, torna-a hiperbólica ao admitir a existência de um génio maligno capaz de o enganar quer nos simples raciocínios quer quanto à existência do mundo e do seu próprio corpo. Não é que Descartes defenda a existência de tal ser, mas não sendo contraditória a hipótese da sua existência, temos de considerar essa possibilidade e as suas consequências. Limitado pela dúvida sobre os saberes e as faculdades de conhecimento (sentidos e razão), Descartes necessita de encontrar uma forma fiável de conduzir o pensamento até à verdade indubitável. Daí a criação de um método de inspiração matemática, não a matemática vulgar, mas uma ciência da ordem e da medida, capaz de ser aplicada a qualquer objeto disciplinar e de preparar os humanos para o estudo das outras ciências: a Matemática Universal. Esta ciência da medida visava matematizar qualquer objeto de estudo e criar juízos sólidos e verdadeiros sobre tudo aquilo que a ele se apresente. (Descartes, Regras para a direção do espírito, I), pois assentava na crença de que a estrutura básica da Natureza pode de ser traduzida numa linguagem matemática. O método Cartesiano pretende substituir os métodos clássicos, nomeadamente, o medieval livresco e o silogismo aristotélico. Este último nem sempre parte de certeza absolutas - parte da fé, da revelação e da autoridade divina - e extrai conclusões já contidas nas premissas, nada de novo acrescenta ao já conhecido. Suportada pela Mathesis Universalis, Descartes sonha com a criação de uma filosofia que englobe todo o saber, uma árvore cujas raízes seriam a metafísica, o tronco a física e cada um dos seus ramos, a moral, a mecânica e a medicina. Esta filosofia universal deveria substituir a controversa filosofia antiga (grega) e a incerta ciência medieval. 3

Mas o que é um método? Diz-nos Descartes: O que entendo por método é um conjunto de regras seguras e fáceis, por cuja exata observância teremos a certeza de nunca tomarmos por falso o verdadeiro e, sem gastarmos inutilmente as forças do espírito, antes aumentando o nosso saber mediante um progresso contínuo de chegar ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que formos capazes. (Descartes, Regras para a direção do espírito, IV) Regras do método cartesiano: As regras do método cartesiano têm uma vertente crítica e uma de descoberta. Vertente crítica: 1ª Regra da evidência, clareza e distinção: Evidente é aquilo que se nos apresenta à mente sem dúvida de espécie alguma, uma intuição que nos dá uma certeza inabalável. Clareza é a qualidade do que não é obscuro, que se percebe nos seus detalhes. Distinção é o que surge não misturado, separado para mais fácil se compreender. Vertente da descoberta: 2ª Regra da análise: dividir os problemas em tantas partes quanto for possível até chegar ao objeto na sua simplicidade: à intuição (res cogitans). 3ª Regra da síntese: a partir da intuição conseguida na análise, progredir por dedução até aos conhecimentos mais complexos (a existência de Deus, por exemplo). 4ª Regra da revisão e enumeração pressupõe uma ordem correta no raciocínio que deve ser verificada. 4

2ª Lição A dúvida cartesiana Aplicado o método às fontes do saber, aos conhecimentos, aos costumes e até à existência do mundo (recorde o génio maligno), Descartes dá-se conta da falta de evidência destes objetos. Nenhum deles oferece a segurança para constituir a base de uma ciência universal. Nasce a dúvida. Dúvida que apesar de radical, não é total, deixa de fora o próprio método - ou a conceção de uma razão matemática - a moral provisória, porque um homem tem de agir, tem de viver; e as verdades reveladas, as verdades da fé (talvez por uma questão de precaução: a igreja católica persegue os infiéis e os hereges, ou apenas de fé). Características da dúvida cartesiana: Metódica: Nasce da primeira regra do método (evidência, clareza e distinção) e constitui-se como peça central do método cartesiano. Provisória: Dura apenas até ser encontrada uma evidência, uma verdade. Não é uma dúvida cética cuja duração seja permanente. Radical: Ataca os fundamentos do conhecimento: a razão e os sentidos. Por consequência, incidirá sobre os conhecimentos racionais e as disciplinas que lhes dão origem (Mat. Fil., etc.) e os conhecimentos experienciais (Ciências naturais). Visa, ainda, os Costumes e a parte da religião nascida dos costumes. Deixa de fora a moral provisória, as verdades de fé e o método. Hiperbólica: É levada ao extremo com a hipótese de um génio maligno que engana o sujeito sobre a existência do mundo e do corpo. 5

3ª Lição A res cogitans cartesiana Depois de aplicar o seu método às fontes do conhecimento, aos costumes e até à existência do mundo (ver dúvida cartesiana), Descartes descobre a res cogitans, iludem-me, logo existo (penso, logo existo). Este conhecimento, obtido a partir do método cartesiano, oferece uma tal evidência que pode ser tomado como 1ª verdade, como fundamento para a construção de conhecimento com certeza. A res cogitans será doravante, para Descartes, o modelo de verdade, pois é uma verdade de razão, anula os limites dos sentidos e rebate a a necessidade da regressão ao infinito das justificações. A natureza da res cogitans O que significa existir como pensamento? O sujeito cartesiano é uma substância pensante, uma entidade independente, imperfeita, à qual podem ser atribuídas qualidades. Esta entidade possui faculdades: entendimento, vontade, memória, imaginação e um conjunto de ideias inatas (independentes da experiência - ser infinito, perfeito: Deus, verdade, extensão, triângulo, etc.), adventícias e factícias (estas duas últimas dependem do corpo, pois são, em parte, obtidas através dos sentidos). O que significa pensar? Compreender (entendimento), querer (vontade), imaginar (imaginação) e sentir (sentimento). O solipsismo da res cogitans cartesiano Descartes encontra-se agora na posse de uma verdade inabalável que lhe pode servir de modelo para o conhecimento futuro. No entanto, a ideia de um génio maligno que o engana permanentemente impossibilita-o de sair da res cogitans. Não nos esqueçamos que Descartes deseja criar um saber universal: uma física, mecânica, moral, biologia, etc., e não pode fazê-lo enquanto estiver encerrado no seu pensamento. Apesar de ser uma verdade evidente, o res cogitans, por si só não lhe garante a existência de tudo o resto (porquê? Pense). Como fazer então para recuperar a física? Começando pelas raízes da árvore do saber: criando a metafísica, provando a existência de Deus. Se Deus existir, o génio maligno desaparece. Deus é sumamente bom, não engana a res 6

cogitans, por isso ele pode aceitar como real e conhecível com certeza o mundo. Mas como provar a existência de Deus? Bom, como dissemos anteriormente, a res cogitans possui em si a ideia inata de Deus. Esta é a chave para as provas da existência de Deus. O que é o homem? Uma combinação de alma e corpo, uma res cogitans ligada a uma res extensa. Não uma combinação inconsequente como a de um piloto ao seu navio (pois se o piloto estiver doente, o navio não o está necessariamente. Tal como, se o navio tiver um rombo, o piloto não o terá necessariamente), mas consequente: o sofrimento da alma tem consequências físicas e vice-versa. Se alguém estiver com uma forte dor intestinal, não consegue manter uma alma alegre. A conexão corpo/alma faz-se através da glândula pineal que existe no centro do cérebro epífise. Esta união é por cada um de nós apreendida de uma forma imediata. Segundo Descartes, nas Paixões da Alma, o corpo começa por receber uma impressão nos músculos que é conduzida pelo sangue ao cérebro. No cérebro, o sangue deixa a impressão na glândula pineal, que é convertida em imagens e volta aos músculos - pode, neste entretanto, receber imagens. (reflita sobre os problemas que esta relação entre o espiritual e o material coloca: como comunica uma alma inextensa e espiritual com um corpo material e extenso? Será esta justificação cartesiana aceitável?) Este dualismo permite a Descartes, por um lado, considerar o corpo como uma máquina e estudá-lo de um ponto de vista matemático, objetivo, sem se preocupar com a perspetiva religiosa. Por outro lado, com esta separação entre alma e corpo, Descartes salvaguarda o livre arbítrio e a consciência moral: nenhum destes aspetos está sujeito ao mecanicismo e ao determinismo imposto pelas leis da natureza. 7

4ª Lição Qual é a natureza de Deus? Deus é uma substância pensante, tal como o res cogitans, mas, ao contrário, infinitamente perfeita, livre, possuidor de um entendimento e vontade infinitos e congruentes: não há contradição entre o que deseja e o que pode conhecer. É uma causa incausada. Qual é o papel e a importância de Deus no sistema cartesiano? - Deus é criador e perpetuador do universo. Por outras palavras, não só cria o universo como zela por ele e dá-lhe um desígnio, um propósito. - Permite conhecimento absoluto ao garantir a existência do objeto - universo - e o bom funcionamento das faculdades de conhecimento - não existe génio maligno, e a razão pode conhecer sem errar, usando o método adequado. - Dá sentido ao universo e valores ao homem - responsável pela criação da consciência moral. As provas cartesianas da existência de Deus De acordo com Descartes podemos provar a existência de Deus através de um argumento ontológico (sobre a natureza, o ser, de Deus) e da noção de causalidade. (tente encontrar nos argumentos alguma inconsistência, invalidálos). Tendo em consideração o que afirmámos no início sobre o Descartes medieval, convém relembrar que este filósofo aceita a ideia da perfeição da divindade e da gradação dos seres: o infinito é mais perfeito do que o finito e este é mais perfeito do que os atributos que, por sua vez, são mais perfeitos do que as simples ideias no res cogitans. O ser infinito - Deus - está no topo da hierarquia dos seres, seguido pelos seres finitos e, depois, pelos atributos destes seres e, no final, pelas ideias: Deus, ser humano, ser humano alto, ideia de triângulo. Também a ideia de causalidade necessária e eficiente é fundamental para compreendermos os argumentos que se seguem (descubra porquê). 8

A. Prova de Deus pela sua natureza (argumento ontológico) Deus é um ser perfeito (porquê? Pense). Se a perfeição nada exclui (nem a existência - exclui apenas o que é negativo), e Deus é perfeito, então Deus existe. Dito de outra forma, se Deus é o ente cujo conceito tem de incluir todas as perfeições e se a existência é uma perfeição, então a existência não pode ser negada a Deus, sem que se caia em contradição. De acordo com Descartes, podemos conceber um ser mais perfeito. Este ser mais perfeito não o seria se existisse apenas no pensamento, pois um outro ser que existisse, simultaneamente, no pensamento e na realidade teria algo a mais do que o primeiro - a existência na realidade - e seria, por consequência mais perfeito. Portanto, Deus tem de existir na realidade. B. Provas pela noção de causalidade A noção de causalidade diz-nos que a uma causa determinada corresponde sempre o mesmo efeito. Daí que possamos conhecer os efeitos pelas suas causas e vice-versa. Por exemplo, conheço a relação de causa-efeito entre a água e a ação nela de uma temperatura de 100 graus: a água ferve. Daí que se observar a água a ferver (efeito), posso deduzir que a sua temperatura é de 100º (causa). Vice-versa, se tiver uma temperatura de 100º, sei que aplicada à água a fará ferver. 1. Causalidade da ideia de Deus no res cogitans A substância pensante (a res cogitans) tem em si a ideia de um ser perfeito. Qualquer ideia tem uma causa, não podendo ser causa de si própria. Sendo o res cogitans imperfeito, não lhe seria possível conceber a ideia de um ser perfeito. Assim, tem de existir um ser perfeito (causa) capaz de ter colocado no res cogitans a ideia de perfeição (efeito). Deus é esse ser perfeito. Deus existe. Esta ideia não é adventícia, pois Deus não é objeto de conhecimento sensorial, nem é factícia, pois a imperfeição humana impossibilita o homem de imaginar um ser perfeito. 9

2. Causalidade pela criação da res cogitans. Se a res cogitans fosse causa de si própria e do universo, ter-se-ia criado perfeito e controlaria o universo, como seu criador. No entanto, nem esta substância pensante é perfeita, nem o universo está sob o seu domínio (efeito). Logo, a res cogitans não se criou a si própria nem ao universo. Assim sendo, ambos devem ter sido criados por um ser perfeito (causa). Deus existe como ser criador perfeito. 3. Causalidade pela manutenção das res cogitans e res extensa. Este argumento segue a linha de raciocínio do 2º. Por ser imperfeito, a res cogitans não tem capacidade para se conservar a si e ao universo. É necessário supor a existência de um ser superior, perfeito, infinito, capaz de criação contínua, de projetar a res cogitans e a res extensa (universo) para o futuro e de dar sentido ao universo. Deus existe. Chegados a este ponto, temos Deus, alma e mundo. Ao afastar, pela sua própria natureza - a bondade - o génio maligno, Deus garante a existência do mundo, do corpo, dos valores morais e do bom funcionamento da razão humana, isto é, da verdade absoluta do conhecimento humano. 10

5ª Lição Objeções às provas sobre a existência de Deus A. Argumento ontológico: - A existência não é um atributo de um ser, como a beleza ou a obesidade. Uma pessoa pode ser gorda sem ser bonita, ou vice-versa, mas não pode ser gorda, ou bonita, sem existir. A existência real não é um atributo, entre outros, que integre a perfeição. Podemos afirmar que Deus é omnipotente, omnipresente e omnisciente, enfim, perfeito, mas a afirmação «Deus é...» nada acrescenta aos atributos mencionados. Se a existência real de Deus acrescentasse algo à ideia, então a ideia que tenho de Deus não corresponderia ao objeto existente, seria inexata. Logo, não poderia conhecer Deus com certeza. Para conceber a perfeição de um ser não necessito de supor a sua existência real. - Da ideia de existência de um ser perfeito não se segue que esse ser tenha de existir na realidade. Podemos ter uma ideia de unicórnio perfeito, sem que esse ser exista. O campo substancial do unicórnio não é idêntico ao de Deus. Por isso esta objeção é fraca. Pela sua natureza, um unicórnio perfeito poderá existir na mente, mas nunca na realidade. - O argumento aparenta ser circular, pois a definição de Deus como ser perfeito contém implicitamente o pressuposto de que ele existe necessariamente: existe porque é perfeito e é perfeito porque existe. Mas será circular? Vejamos: Deus existe porque é perfeito. E como explicamos a perfeição? Se respondermos que é perfeito porque a ideia contrária é contraditória Deus como ser imperfeito -, não temos circularidade: provamos A (existência) com B (perfeição) e B com C (não pode ser imperfeito). Mas, pelo contrário, se afirmarmos que é Deus é perfeito porque contém em si todas as qualidades do seu campo substancial no máximo, então temos de considerar que a existência faz parte deste campo substancial (qualidades admissíveis na natureza de um ser) e incorremos na circularidade: A existe por B e B justifica-se com A. 11

- Se Deus pudesse ser provado com um argumento a priori (analítico), a negação dessa prova conduziria a uma contradição. A negação da proposição a priori: Todos os não casados são solteiros, isto é, Todos os não casados não são solteiros, é uma contradição lógica. Tal como a negação da proposição Todos os triângulos têm três ângulos, ou seja, Nenhum triângulo tem três ângulos, conduz a uma contradição entre termos. Ora, a proposição Deus existe não é analítica, pois da contrária Deus não existe não resulta numa contradição lógica. Tal como podemos conceber a existência de Deus, podemos, sem contradição, conceber a sua não existência. Ora, este tipo de consideração só é possível nos argumentos de facto. B. Argumento da causalidade. 1. - A res cogitans não necessita de Deus para justificar a ideia de perfeição em si; basta pegar num ser imperfeito e elevá-lo à sua máxima possibilidade. 2. - Podemos supor que a origem da res cogitans esteja, por exemplo, no movimento contínuo da res extensa. - O universo pode existir desde sempre; ser a exceção à ideia de que tudo tem uma causa como Deus seria uma causa incausada se fosse o criador do universo. - Podemos imaginar, sem contradição, uma cadeia infinita de causas que não precisam de uma causa primeira para subsistir. Falácia da composição: da premissa de que alguns seres e acontecimentos do universo têm uma causa não se segue que o universo tenha uma causa. -Podemos imaginar 3. - Não é contraditório imaginar um universo ordenado e dirigido sem a presença de um ser perfeito. 12

6ª Lição Quais são os objetos que podemos conhecer? Para Descartes os seres que podemos conhecer dividem-se em dois géneros: todos aqueles que possuem existência independente do ser humano e as verdades que estão no pensamento humano. Daqueles que possuem independência do pensamento podemos dividi-los em materiais, como o mundo, a extensão, e espirituais, como Deus e a alma humana (ou as suas propriedades). As ideias conhecíveis são as inatas, adventícias e factícias, sendo as primeiras as únicas que podemos conceber como certezas. Qual é a natureza do universo (res extensa)? O universo cartesiano é uma máquina em movimento, um conjunto de engrenagens moventes, cuja propriedade fundamental é a extensão (ocupa espaço: tem comprimento, largura e profundidade), não o peso, a cor, o cheiro, etc. Não existe vazio na natureza - não há um atomismo -, tudo é uno e pleno e movimenta-se como um anel: um corpo empurra o outro e assim sucessivamente. A distinção entre os corpos faz-se pela figura, dimensão, ligação e tipo de movimento. A Natureza é um corpo objetivável e compreensível pelo entendimento e não um ser mágico - rejeição do animismo. Esta máquina funciona de acordo com as leis naturais por Deus estabelecidas, é determinado. O corpo humano é, igualmente, considerado uma máquina. Quais são as fontes privilegiadas por Descartes na obtenção do conhecimento indubitável? Qual é a origem do conhecimento? Todo o conhecimento certo provém exclusivamente da razão (aquele que não provém exclusivamente da razão, como a opinião, é incerto), pois apenas esta pode garantir a sua universalidade. Por isto podemos incluir Descartes na linha dos racionalistas (compare com o empirismo). E provém da razão por intuição e dedução. A mente começa por obter por intuição uma verdade evidente, como o res cogitans, e deduz a partir dela outras verdades, como a existência de Deus e do mundo. O verdadeiro conhecimento nunca procede da experiência (ideias adventícias), pois esta apenas nos dá conhecimentos incertos e 13

particulares (os sentidos enganam e cada homem tem do mundo a sua experiência, pela sua variabilidade e das suas culturas). 7ª Lição Como entender a relação de conhecimento entre a res cogitans e a res extensa? Qual dos dois determina o conhecimento? O res cogitans constitui-se como sujeito e o mundo (res extensa) como objeto. O conhecimento que a substância pensante obtém do mundo não deriva da experiência dos sentidos, mas do entendimento. O sujeito forma no entendimento uma representação do objeto. Deste modo, é o sujeito que determina o objeto (não o objeto exterior, mas a representação dele na mente do sujeito), e não o objeto que altera o sujeito. Porquê esta necessidade de dar ao entendimento todo o protagonismo? (pense) Porque só ele permite a universalização dos conhecimentos, pela determinação da característica que nunca muda nos objetos conhecidos. Os sentidos dão-nos apenas características particulares e mutáveis. Ora o conhecimento certo tem de ser fundado no imutável para garantir a sua universalidade. Se não vejamos, ao observarmos uma vela de cera intacta e, depois, derretida, percebemos que é a mesma vela apesar de ter sofrido uma transformação: mudou de forma, textura e até de odor. Perante esta mudança, será o entendimento (razão) ou os sentidos a garantirem-nos a identidade da vela? O entendimento. Os sentidos dão-nos apenas uma visão, odor e tato diferentes da vela em cada uma das situações. Também não é a imaginação que nos dá o conhecimento universal, pois ela não consegue imaginar todas as modificações possíveis da vela. O entendimento percebe o que se mantém inalterável na vela que se modificou. O que é, então, a vela? O que vemos, cheiramos, sentimos? Nenhuma destas propriedades, que resultam dos sentidos humanos em contacto com o objeto. A vela é apenas extensão (comprimento, largura e profundidade). É a extensão que permanece na mudança e a propriedade conhecível pela razão, todas as demais características dependem dos sentidos do sujeito. 14

O que é a verdade? Qual é o critério de verdade? A res cogitans possui ideias inatas (independentes da experiência), como Deus, alma, mundo, verdade, etc. Ideias adventícias que provêm dos sentidos como as cores, os odores, etc., e ideias factícias que têm a sua origem na imaginação, como sejam os seres mitológicos. É a partir das ideias inatas que o conhecimento é determinado. A verdade do conhecimento (o conhecimento verdadeiro) não nos é dada pela adequação entre a representação (imagem) do objeto que entra pelos sentidos e o objeto que existe na realidade (como no realismo - ver realismo) mas no confronto do conhecimento com o pensamento que o produz, tendo por modelo, critério, a 1ª verdade obtida por intuição: a res cogitans (idealismo ver). Por outras palavras, o conhecimento começa na intuição e procede por dedução. Será verdadeiro se cumprir os critérios do método cartesiano (evidência, clareza, distinção): a existência de Deus é um conhecimento verdadeiro porque foi deduzida de uma intuição evidente através do cumprimento de regras lógicas. Se não há contradição, então o conhecimento é verdadeiro. Descartes nem se dá ao trabalho de confirmar os conhecimentos obtidos por dedução na experiência, pois se foram bem deduzidos, então a experiência confirmá-lo-á. No entanto, Descartes parece duvidar de que seja possível deduzir todo o conhecimento do mundo físico a partir das leis naturais. Como se o futuro nos pudesse trazer alterações significativas neste domínio. Se assim é, o conhecimento da física é provisório e hipotético. A origem do erro humano. A tentativa cartesiana de justificar a origem do erro humano, no que diz respeito ao conhecimento, pode residir na necessidade de afastar Deus dessa origem e justificar o livre-arbítrio humano. Por outras palavras, não é a Deus que devemos imputar o erro humano, mas à existência do livre-arbítrio e à distinção entre o entendimento e a vontade humanos. Quando o ser humano formula um juízo sobre um objeto intervêm duas faculdades: o entendimento e a razão. O entendimento apreende e a vontade dá o seu consentimento. Se não formularmos um juízo (atribuirmos um predicado a um sujeito: «O gato é malhado») sobre o que apreendemos, não erramos. Se formularmos um juízo sobre o que apreendemos de forma evidente, clara e distinta, isto é, respeitando os limites do entendimento, 15

também não nos enganaremos. Erramos quando formulamos juízos sobre apreensões que não se apresentam de forma evidente, clara e distinta. Porque formulamos juízos sobre objetos com estas características? Se usássemos apenas o entendimento, não julgaríamos estes objetos, pois sendo o entendimento limitado, jamais formularia juízos sobre objetos não evidentes. Porém, por vezes a vontade humana, por ser ilimitada, pode dar consentimento para a formulação de juízos sobre apreensões não evidentes e é nesta caso que o humano erra: quando pela ilimitação da vontade, o ser humano ajuíza sobre conhecimentos que não são evidentes, claros e distintos. 16