UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

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Transcrição:

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS O AUTO DA MORTE E DA VIDA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A FORMA DRAMÁTICA Maria José Acioly Paz de Moura João Pessoa, PB Maio, 2006

MARIA JOSÉ ACIOLY PAZ DE MOURA O AUTO DA MORTE E DA VIDA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A FORMA DRAMÁTICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Literatura e Cultura). Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel - Orientador João Pessoa, PB Maio, 2006

O AUTO DA MORTE E DA VIDA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A FORMA DRAMÁTICA Por MARIA JOSÉ ACIOLY PAZ DE MOURA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Literatura e Cultura), aprovada pela Banca Examinadora formada por: Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel/UFPB Orientador Profa. Dra. Valéria Andrade/UFPB Examinadora Profa. Dra. Márcia Tavares Silva/UFRN - Examinadora Profa. Dra. Ana Cristina Marinho Lúcio/UFPB - Suplente Profa. Dra. Íris Helena Guedes de Vasconcelos/UFCG - Suplente

Dedico este trabalho ao meu esposo, Francisco Alberto de Moura, in memoriam por tudo o que ele me proporcionou para que eu pudesse realizar este sonho. Impossibilitada, agora, de celebrar com ele esta realização pessoal e profissional, mas acreditando que, num outro plano, ele está feliz por mim.

AGRADECIMENTOS A dissertação, apesar de ser encarada por muitos como uma tarefa solitária, é o resultado de uma conjunção de forças e incentivos que não partem única e exclusivamente do autor, mas de um conjunto de pessoas que acreditaram e vibraram a cada passo e etapa vencida. É exatamente para estes indivíduos que nos apoiaram em cada uma das fases transpostas que dirigimos os nossos agradecimentos. Em primeiro lugar agradeço àquele que desde o inicio acreditou na potencialidade da minha pesquisa, ainda quando se tratava de um simples projeto, o meu orientador e professor Diógenes André Vieira Maciel, com quem aprendi muito, despertando em mim uma grande admiração pelo seu empenho, dedicação e profissionalismo na condução das atividades de orientação. Outra instância importante, para a realização do presente trabalho, foi o Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, aqui representado pela coordenadora Profa. Dra. Elisalva de Fátima Madruga Dantas e demais professores que desempenham um papel importante, contribuindo de forma efetiva para a produção e difusão do conhecimento científico. Ao CNPq, órgão de fomento, responsável pela concessão de uma bolsa de pesquisa para o desenvolvimento deste estudo. Outro órgão importante para o pleno desenvolvimento da minha pesquisa, foi a Autarquia Educacional de Afogados da Ingazeira, por ter concedido o afastamento de minhas atividades pedagógicas para que fosse possível a dedicação integral às atividades de reflexão e pesquisa indispensáveis para a produção de um trabalho científico. A Meus pais, meus irmãos e toda a minha família (tios, tias, primos, primas, sobrinhos e sobrinhas), pessoas importantes e que estiveram presentes nos momentos mais difíceis dessa caminhada. Em especial às minhas quatro filhas: Milena, Geovanna, Giselle, Marilia, e ao sobrinho Augusto César que estiveram ao meu lado nos momentos de tristeza e felicidade. Essa dissertação tem um pouco de cada um deles, pois confiaram e me incentivaram durante esta fase. Aos amigos e colegas de

6 trabalho, especialmente Maria de Fátima Oliveira, que comigo dividiram alegrias e sofrimentos. Ao Pe. Macílio, pela amizade e apoio dispensados durante esses dois anos de idas e vindas a João Pessoa. Enfim, agradeço a Deus, fonte inesgotável de fé, que me deu a força e a confiança necessária para vencer os desafios que surgiram na minha caminhada, especialmente, nesses dois anos de perdas e ganhos.

RESUMO Trata-se de uma análise-interpretação do texto dramático Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que considera tanto os aspectos externos (sociológicos) quantos os internos (estruturais), a partir de uma perspectiva dialética, que considera esta dinâmica como essencial à percepção da integridade da obra. Estuda-se o caráter híbrido da obra, tanto no que diz respeito aos aspectos formais, principalmente no que diz respeito à questão dos gêneros literários, como também no que concerne aos usos do popular e do erudito, a partir de uma perspectiva nacional-popular, visto apresentar um afinamento com as visões de mundo e de vida das classes subalternas, conforme propõe o filósofo italiano Antonio Gramsci. No transcorrer da análiseinterpretação, enfatiza-se a tessitura do auto, a partir da perspectiva histórica e daquela mais comumente destacada pela crítica de que há um auto dentro do Auto, constituído de elementos laicos e populares, somados a elementos de ordem litúrgica. Portanto, neste trabalho, propõe-se a leitura de dois autos dentro do Auto: um que trata das circunstâncias, personagens e espaços da retirada do Sertão para o Litoral, no qual a morte se apresenta em sua perspectiva trágica e simbólica (o auto da morte), e um outro circunscrito à esfera celebrativa dos autos natalinos tradicionais, em torno do nascimento de uma criança (o auto da vida). Palavras-chave: dramaturgia brasileira literatura brasileira auto Morte e vida severina João Cabral de Melo Neto nacional-popular

ABSTRACT The present research intends to carry out a survey of the analysis-interpretation of the text Morte e Vida Severina by João Cabral de Melo Neto. It considers the external aspects (sociological) as the interns (structural), from a dialectic perspective, that looks at this dynamic as essencial to the perception of the integrity of the works. This text studies the hybrid character of the works, either in that says respect to the formal aspects, mainly in that is says respect to the question of the literary genus, as also in reference to the use of the popular and erudite, from a National-popular perspective, which aim to present an harmony with the views of world and life of the subordinate classes, as considers the Italian philosopher Antonio Gramsci. Throughout of the analysis-interpretation, it is emphasized the building of the auto, from the historical perspective and from that one detached by the critics that there is an auto inside of the auto, made of lay and popular elements, added the elements of liturgical order. Therefore, in this work, the porpuse is the reading of two autos: one that deals with the circumstances, characters and space of the withdrawal from semi-desertic-region (sertão) to the coast, in with the death presents itself in a tragic and symbolic perspective (the auto of the dead) and another one circumscribed to the celebratory sphere of traditional Christmas auto, around the birth of a child (the auto of life). Key-words: dramaturgi-brazilian, brazilian-literature, auto, Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto, national-popular

SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 CAPÍTULO 1 Morte e Vida Severina: singular, plural 14 1.1. Fazer poético, gêneros e traços estilísticos 14 1.2. A (aparentemente) difícil definição de gênero em Morte e Vida Severina 19 1.3. Cultura popular: visões teóricas visões de mundo 24 1.4. João Cabral de Melo Neto: entre o popular e popularidade 32 CAPÍTULO 2 Morte e Vida Severina: um auto entre o popular e o nacionalpopular 38 2.1. Limites: teatro popular, teatro folclórico, teatro nacional-popular 38 2.2. Em torno do auto 41 2.3. Um auto: popular, nacional-popular 44 2.4. Pessoas e personagens do auto 54 CAPÍTULO 3 O auto da morte e o da vida 58 3.1. O externo e o interno: processo social e forma literária 58 3.2. Percursos da morte e da vida: (autos) 66 3.2.1. O auto da morte 67 3.2.2. O auto da vida 79 CONSIDERAÇÕES FINAIS 88 BIBLIOGRAFIA 90 ANEXO 95

INTRODUÇÃO A década de 1950 consolida a maturidade do teatro brasileiro, com a estréia de peças que trazem temas nacionais. Em 1955, estréia A Moratória, de Jorge Andrade; em 1956, no Recife, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna; em 1958, Eles não usam Black-Tie, de Gianfrancisco Guarnieri; em 1960, O pagador de promessas, de Dias Gomes, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal. Em média, tinha-se a revelação de um autor importante por ano, tendo eles em comum a militância e a posição que afirmava a necessidade de se nacionalizar o nosso teatro. A obra que será objeto do nosso estudo, a peça Morte e Vida Severina (um auto de natal pernambucano), de João Cabral de Melo Neto, 1 faz parte desse contexto. Escrita entre 1954-1955, a pedido de Maria Clara Machado para ser encenada no teatro Tablado, a montagem não acontecera naquele momento porque, segundo Maria Clara ela não era um autêntico Auto de Natal. A montagem de sucesso só veio em 1966, dez anos depois de sua publicação em livro. Esta obra acrescenta um elemento fundamental à linguagem poética de João Cabral de Melo Neto: a leitura da realidade social. E nesse sentido ela se identifica com o tipo de teatro em voga, na época. Segundo Décio de Almeida Prado, o nosso teatro precisou progredir muito, no sentido de quebra de convenções realistas, para que pudesse evidenciar a dramaticidade latente de um texto como Morte e Vida Severina, em que predomina o coletivo, sem enredo dramático claramente delineado e quase sem personagens individualizados. Foi o que conseguiu compreender e realizar a belíssima, a 1 Para este trabalho nos valeremos da seguinte edição: MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Em alguns momentos utilizaremos a sigla MVS, seguida da paginação.

11 forçosamente original não havia modelos encenação feita pela TUCA, sob a direção de Silvei Siqueira. 2 Considerando a importância da obra Morte e Vida Severina, tanto pelos aspectos estruturais e formais de composição, como pela abordagem da temática voltada para questões de ordem social, quais sejam: a seca, o latifúndio e a exclusão social em que vive grande parte da população nordestina, é que escolhemos o auto de natal pernambucano como objeto do nosso estudo. A temática da seca tem sido, historicamente, recorrente em nossa literatura. Na prosa regionalista de 1930, destacou-se em obras importantes que abordam este tema: A Bagaceira de José Américo de Almeida, publicado em 1928; O Quinze de Rachel de Queiroz, em 1930; Vidas Secas de Graciliano Ramos, em 1938. A produção literária que trata desta temática é bastante ampla, tendo sido trabalhada por romancistas, poetas e compositores da Canção Popular. Assim, é feita uma transposição da realidade para a ficção, numa perspectiva de denúncia social. Os romancistas e poetas, ao traduzirem os sentimentos, os sonhos e as frustrações das personagens, em suas obras, buscam aproximar-se dos dramas reais vividos pelos homens, confirmando a imbricação entre criação artística e realidade. Trabalhando esta temática, o auto cabralino dialoga, em termos formais, com os autos ibéricos, de tradição medieval e popular, além daqueles que se desenvolveram no Brasil, em termos de danças dramáticas, embora haja uma desconstrução destas formas tradicionais, no que se refere, por exemplo, às unidades de tempo/espaço: Severino, desenraizado, faz um longo percurso desde o sertão até o Recife; durante a viagem do retirante aparecem vários espaços, inclusive o rio Capibaribe que, como tantos rios periódicos do sertão, se corta, frustrando o personagem que seguia o seu curso. Outro aspecto divergente entre o auto de natal pernambucano e os autos tradicionais é que estes apresentam uma visão otimista enquanto aquele ressalta a negatividade, as coisas do não, os maus presságios de uma vida severina, embora no final haja a celebração da vida, mesmo que raquítica, franzina. 2 Cf. PRADO, Décio de Almeida. O teatro moderno brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 86.

12 A análise-interpretação que estamos propondo irá considerar essa relação com a tradição, a fim de entendermos como, na tessitura deste auto de natal pernambucano, há não só um auto dentro do Auto, como sempre é destacado pela crítica, mas dois: um circunscrito às circunstâncias, personagens e espaços da retirada do sertão para o litoral, no qual há uma encenação da morte em toda a sua dimensão simbólica e trágica, e um outro, inscrito numa atmosfera alegre e celebrativa do nascimento de uma criança na periferia de Recife, no qual destacaremos as relações com o Pastoril de origem popular, marcado por elementos étnicos e folclóricos próprios da realidade nordestina. Considerar-se-á, ainda, as características formais do texto, que o tornam atípico pela pluralidade de traços estilísticos nele existentes. Trata-se, portanto, de uma obra híbrida no que se refere aos gêneros e formas, mas que apresenta uma harmonia perfeita entre a forma, o conteúdo e a linguagem, que se tornam um todo indissociável. Nossa dissertação se estrutura em três capítulos. No primeiro, intitulado Morte e Vida Severina: singular, plural, discutimos o fazer poético, através de uma retrospectiva histórica da origem dos gêneros literários, considerando a pluralidade dos gêneros e traços estilísticos presentes na obra em análise, buscando definir a preponderância do gênero nesta obra. Ainda neste capítulo, apresentamos um estudo sobre o cruzamento das culturas erudita e popular, numa sociedade dialeticamente construída, marcada pelos influxos externos e internos. O segundo capítulo, intitulado Morte e Vida Severina: um auto entre o popular e o nacional-popular, apresenta-se os limites entre o teatro popular, o teatro folclórico e o teatro nacional-popular, buscando inserir o auto cabralino nessas modalidades de teatro. Faz-se, também, um estudo sobre a origem do auto tradicional e do auto popular, caracterizado pelos Pastoris e Lapinhas cultivados no Nordeste do Brasil e trazido para a obra de João Cabral. Outro aspecto analisado é o perfil dos personagens, marcadamente, populares. O terceiro e último capítulo, intitulado O auto da morte e da vida, faz uma análise da obra, considerando os elementos internos e externos do texto, numa perspectiva de análise global da obra, em que os aspectos sociológicos e externos

13 transformam-se em elementos estruturais e internos, tal como define Antonio Candido. Outro aspecto analisado neste capítulo é a forma dramática do auto, apresentada em dois movimentos: o auto da morte e o auto da vida.

14 CAPÍTULO 1 Morte e Vida Severina: singular, plural 1.1 Fazer poético, gêneros e traços estilísticos As primeiras considerações feitas na Grécia Antiga acerca do fazer poético são marcos das primeiras reflexões sobre a arte literária em termos de teoria e de crítica, de onde, normalmente, parte-se da obra de Homero, escrita há cerca de três mil anos. O fazer poético era descrito como encantador, instrutivo, produto natural que tem de ser apreendido como arte, a partir de uma escolha inteligente das palavras. No entanto, esta não era a visão de alguns filósofos moralistas, que o viam como algo suspeito, já que não expressava a verdade literal dos fatos, tendo de ser questionado. Outra maneira de depreciar a poesia partia da idéia de que o poeta era inspirado pelos deuses. Tal visão retirava do humano a sua capacidade de inspiração e a atribuía, exclusivamente, ao divino. Assim, o poeta seria um possesso, que não se utilizava das palavras como os seres comuns, mas em delírio, inspirado pelos deuses imortais. 3 Platão e Aristóteles foram os filósofos que mais contribuíram e deram consistência às primeiras reflexões em torno do fazer poético e, conseqüentemente, ao estudo e classificação das obras literárias em gêneros. 3 Cf. DAICHES. David. Posições da crítica em face da literatura. Trad. Thomaz Newlands Neto. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1967.

15 Platão advoga a necessidade de opor a razão às paixões. A sua objeção à poesia pode ser considerada, a priori, de natureza epistemológica, derivando-se de sua teoria do conhecimento: se a verdadeira realidade consiste nas idéias das coisas, das quais os objetos individuais são meros reflexos ou imitações, assim, quem imita um objeto estará copiando uma imitação, dessa forma, produzindo algo afastado da realidade. 4 A poesia, segundo ele, estaria distanciada da realidade pondo-se em terceiro grau. Este afastamento a torna inferior, porque o poeta não compreende o que descreve. É evidente desde logo que o poeta imitador não nasceu com inclinação para essa disposição de alma, nem a sua arte foi moldada para lhe agradar, se quiser ser apreciado pela multidão, mas sim com tendência para o caráter arrebatado e variado, devido, à facilidade que há em o imitar [...] E assim teremos desde já razão para não o recebermos numa cidade que vai ser bem governada, porque desperta aquela parte da alma e a sustenta, e, fortalecendo-a, enfraquece a razão, tal como acontece num Estado, quando alguém torna poderosos os malvados e lhes entrega a soberania, ao passo que destruiu os melhores. Da mesma maneira, afirmaremos que também o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora são grandes, ora são pequenas, que esta sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade. 5 4 No Íon, de Platão, se tenta atingir a poesia, utilizando-se do seu representante mais frágil, o rapsodo: [...] porque o poeta é uma coisa leve, alada e sagrada, e não é capaz de ser inspirado, antes de estar fora de si e não ser senhor de sua razão; antes de atingir este estado, encontra-se desprovido de qualquer poder e é incapaz de dar voz aos seus oráculos [Cf. WINSATT, JR. William; K. BROOS, Cleanth. Crítica literária: breve história. Pref. Eduardo Lourenço. Trad. Ivette Centeno e Armando de Morais. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian, 1971. p. 16] É, assim, possível depreendermos que, nos diálogos platônicos, há uma tendência à não exaltação da poesia, o que se intensifica no Livro II da República, no qual se julga a poesia de forma negativa e opta-se pela expulsão do poeta da polis, além de exercer uma censura, quando se classificam algumas narrativas como sendo perigosas e outras como impróprias. Vejamos: Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores de fábulas, para aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. De seguida, recomendaremos às mães que contem a seus filhos somente as que lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo. A maioria das que estão presentemente em voga deve ser rejeitada. [PLATÃO. A República. Livro II. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Editora Martim Claret, 2000. p. 66] 5 PLATÃO, op. cit., p. 304.

16 Aristóteles, porém, na Poética, 6 se contrapõe a essa postura, ao examinar a natureza e os atributos da literatura, visando provar que é verdadeira, séria e útil, ao contrário de Platão que havia mostrado que era falsa, trivial e nociva. 7 Para constatar essa posição, ele faz uma análise minuciosa das várias espécies de poesia, a fim de estabelecer o que possuem em comum e quais os pontos em que divergem umas das outras. Todas as espécies de poesia a épica, a trágica, a cômica e a ditirâmbica, conforme afirma Aristóteles, envolvem mimese, ou seja, envolvem uma imitação/representação da natureza. A partir dessa constatação, ele caracteriza a poesia, quanto à natureza, quanto à estrutura da obra e quanto à sua função. A natureza da poesia define o conceito fundamental: a literatura é imitação. Esta imitação se dá através de meios diversos (a linguagem, a harmonia e o ritmo), de objetos diversos (seres superiores na tragédia e seres inferiores na comédia) e modos diversos (a narrativa e a representação de uma ação a primeira através de um discurso; a segunda, através de atores). A estrutura da obra literária diz respeito à sua organização, que se dá através da unidade e da tensão, constituindo um todo. Quanto à função da literatura, Aristóteles utiliza-se de um termo já usado pela medicina, para dizer sobre a função da arte: a catarse. Essa sua posição, novamente, se contrapõe à noção platônica de que a arte corrompe, nutrindo as paixões: Longe de nutrir as paixões, oferece-lhes a arte inócua ou até mesmo útil purgação. Excitando dentro de nós a piedade e o temor, a tragédia nos permite sair do teatro calmos de espírito, consumidas todas as paixões. 8 Tais concepções fundam o estudo das obras literárias em gêneros, questão que continua suscitando, nos estudiosos, o empenho para a definição de uma categorização adequada. Entre divergências e oscilações, o assunto atravessa a história da literatura e da crítica literária. Platão, no Livro III, da República, nos deixou a primeira referência sobre os gêneros literários: 6 ARISTÓTELES. A Poética. Trad. e notas de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1981. p. 26 7 Cf. DAICHES, op. cit., p. 31. 8 Cf. DAICHES, op. cit.

17 [...] em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta é nos ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopéia e de muitos outros gêneros. 9 Dessa forma depreendemos que, segundo Platão, a comédia e a tragédia se constituem inteiramente por imitação, o que seria o gênero dramático; os ditirambos pela exposição pelo próprio poeta, o que seria um germe do gênero lírico; e a epopéia pela combinação dos dois processos, o que seria o gênero épico. Platão foi o primeiro a buscar uma sistematização dos gêneros literários, mas coube a Aristóteles o lançamento de suas bases fundamentais na Poética, que continua sendo o texto básico para o enfoque dos gêneros. No capítulo I da Poética, Aristóteles apresenta três diferenças da obra literária quanto à representação da realidade, a fim de identificar as diferentes modalidades ou gêneros da poesia: A epopéia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e do citaredo, todas vêm a ser de modo geral, imitações. Diferem entre si em três pontos: imitam ou por meios diferentes ou objetos diferentes ou de maneira diferente e não a mesma. 10 A imitação, segundo os meios, distingue a poesia ditirâmbica da tragédia e da comédia, pois utilizam o ritmo, a melodia e o verso de formas diferentes. Enquanto a poesia ditrâmbica utiliza esses meios de forma simultânea, a tragédia e a comédia empregam-nos separadamente. A imitação, segundo o objeto da representação distingue a tragédia da comédia. A primeira se assemelha à epopéia apresentando homens melhores do que nós, enquanto que a segunda, apresenta homens piores do que nós. Quanto à imitação, segundo o modo, distingue-se a narrativa épica, da tragédia e da comédia. No primeiro caso, o poeta narra em seu nome ou assumindo diferentes personalidades; no segundo caso, os atores agem. 9 PLATÃO, op. cit., p. 85. 10 ARISTÓTELES, op. cit., p.19.

18 Os críticos renascentistas, retomando o postulado dos antigos, iniciaram a divisão da produção literária, em três gêneros: Lírico, Épico, Dramático. No entanto, esta divisão não dá conta da multiplicidade da criação literária, na medida em que se torna impossível encaixar, nesses três compartimentos, uma obra que apresenta características estilísticas híbridas, como certos contos que adotam o procedimento de puro diálogo, próprio do drama; ou certas composições dramáticas nas quais apenas comparece uma personagem em extenso monólogo, recurso próprio da poesia lírica; e as obras líricas de cunho narrativo ou em diálogo. Os escritores modernos tendem cada vez mais a libertar-se desses limites estritos, em nome de uma originalidade que derruba a ordem preestabelecida, e instauram novas modalidades, cada vez mais difíceis de serem classificadas nas fronteiras dos gêneros. Nesta perspectiva, o ensaio A teoria dos gêneros, de Anatol Rosenfeld, 11 é bastante elucidativo e esclarecedor ao tratar dos gêneros e de seus traços estilísticos. O gênero, segundo Anatol Rosenfeld, tem valor substantivo, ou seja, primário; enquanto o traço estilístico tem valor adjetivo, secundário. Daí conclui-se não haver gênero puro, o que há é a preponderância de determinados traços estilísticos e de certos aspectos formais que nos ajudam a definir se a obra é Lírica, Épica ou Dramática. Para entendermos melhor os significados substantivo e adjetivo dos gêneros, vejamos o que diz Anatol Rosenfeld: A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de os termos lírico épico e dramático serem empregados em duas acepções diversas. A primeira acepção mais de perto associada à estrutura dos gêneros poderia ser chamada substantiva. Para distinguir essa acepção da outra, é útil forçar um pouco a língua e estabelecer que o gênero lírico coincide com o substantivo A Lírica, o épico com o substantivo A Épica e o dramático com o substantivo A Dramática. [...] A segunda acepção dos termos lírico, épico, dramático de cunho adjetivo, refere-se aos traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero ( no sentido substantivo). 12 11 ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In:. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva. 2002. p.15-26. 12 Ibidem, p. 17.

19 Assim, depreendemos que há uma aproximação entre a idéia classificatória de estrutura dos gêneros e seus traços estilísticos; de outro lado, em meio à idéia de um gênero dominante há, também, traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros. Esta proposta de visão da teoria dos gêneros, apresentada por Rosenfeld, permite o entendimento das relações entre a divisão das obras em gêneros e seus traços estilísticos fundamentais, o que, claramente, contribui para uma melhor compreensão das obras literárias, dando-nos a possibilidade de enxergar a multiplicidade de traços estilísticos, em sentido substantivo e adjetivo. É assim que estudaremos Morte e Vida Severina: um auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto. Neste sentido, a obra que será objeto de nosso estudo traz, em si, uma série de elementos, na medida em que compreendemos que se trata de um texto com estrutura dramática, no entanto, guardando traços estilísticos próprios da Lírica e da Épica, seja no que diz respeito ao meio verbal - a utilização dos diálogos e dos monólogos - seja no que diz respeito à forma em versos e à utilização da instância narrativa presente em muitos momentos. 1.2 A (aparentemente) difícil definição de gênero em Morte e Vida Severina Com base na discussão acima, é possível afirmar que Morte e Vida Severina apresenta múltiplos traços estilísticos que a tornam híbrida, não permitindo um estudo voltado para um gênero literário puro e absoluto. Por isso a análise que iremos propor nos capítulos seguintes, fará um mapeamento das características dos três gêneros literários presentes, nesta obra, em sentido adjetivo, buscando destacar os caracteres de um gênero preponderante, em sentido substantivo. Se podemos encontrar traços estilísticos próprios do gênero épico, também poderemos encontrar aspectos líricos, que se apresentam tanto no conteúdo, quanto na forma. De outro lado, esse texto apresenta uma interligação profunda entre o enredo, os personagens, o tempo e o ambiente. Tais elementos se apresentam de tal maneira indissociáveis, que ao analisarmos um, naturalmente, faremos referência aos demais, pois quando tratamos do

20 enredo, tratamos, simultaneamente, das personagens, da vida que vivem, traçada dentro de uma duração temporal e num determinado ambiente. Todos esses elementos são próprios dos gêneros dramático e épico. Há, portanto, um núcleo comum entre o romance e a peça de teatro. Ambos narram fatos possíveis de acontecer em algum espaço e num determinado tempo. Porém o que, definitivamente, os distingue é a personagem. No romance, a personagem é um elemento entre vários outros, sendo normalmente apresentada ao leitor através de um narrador que aparece enquanto mediador. No teatro, o mundo aparece emancipado e a personagem constitui quase que a totalidade da obra. É o que ocorre em Morte e Vida Severina, visto que Severino é aquele através do qual o leitor/espectador toma conhecimento dos fatos, mesmo quando ele se afasta da ação e passa a ser espectador, como ocorre em diversas passagens de sua trajetória. É a partir dessa presença de Severino que destacamos a preponderância da Dramática no auto cabralino. Décio de Almeida Prado ao tratar da personagem do teatro, ressalta esta distinção entre o romance e o teatro. A personagem do teatro, portanto, para dirigir-se ao público, dispensa a mediação do narrador. A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de fato a própria realidade. Essa é de resto, a vantagem específica do teatro, tornando-o particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação: frente ao palco, elas são por assim dizer obrigadas a acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos. 13 Assim, podemos verificar que em Morte e Vida Severina há preponderância do gênero dramático, visto que temos tanto no personagem central como nos demais, todas as características de personagem do teatro, que dispensa a mediação do narrador e ele mesmo se apresenta ao leitor/espectador, definindo mais claramente a diferença entre o texto narrativo e a peça de teatro. Outro aspecto importante, no texto, é que os 13 PRADO, Décio de Almeida. A personagem do teatro. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 85.

21 quadros ou cenas que entremeiam os monólogos de Severino também apresentam características predominantemente dramáticas. Dessa maneira, mesmo que tenhamos a presença de traços estilísticos próprios da Épica e da Lírica, o subtítulo auto de natal pernambucano aparece-nos como um dos índices de características próprias do gênero dramático, que, claramente, se destaca como preponderante em sentido substantivo. Ou seja, estaremos, quase sempre, lançando mão de discussões que nos auxiliem a classificar este texto enquanto uma obra do gênero dramático. Basta considerarmos a maneira como o próprio autor enxergava esta sua obra: O auto de natal Morte e Vida Severina possui estrutura dramática: é uma peça de teatro. Por isso fico um pouco aborrecido quando ouço ou leio adaptação do poema de João Cabral. Isso é bobagem, pois Morte e Vida Severina já é uma peça: não precisa de adaptação. 14 Assim, a nossa proposta de análise-interpretação dessa obra de João Cabral de Melo Neto se dará a partir do entendimento do diálogo com a tradição dos autos medievais ibéricos e dos pastoris nordestinos, nos quais o autor encontra as suas fontes e as suas referências formais, como já bem aponta a sua fortuna crítica. A posição em torno desse diálogo, pela crítica, é consensual: os autores apontam que há na constituição desta obra uma articulação dialética entre forma e tema, que tem antecedentes no auto popular, a partir da soma de elementos de ordem litúrgica (principalmente, no que se refere às partes anunciação, loas, a adoração dos reis e pastores) e de elementos laicos (os tipos populares, a representação da cultura e do nível prosódico dos personagens, que não são apenas episódios decorativos ). 15 Luís da Costa Lima, em texto publicado em 1968, no livro Lira e antilira, enfatiza a importância da obra, mesmo reconhecendo que não se trata de uma produção 14 Cf. NADAI, José Fulaneti de (org.). João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Abril Educação, 1982. p. 45. (Coleção Literatura Comentada.) 15 Sobre isso ver NUNES, Benedito. Morte e vida Severina (1954-1955). In:. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 82-89, que é um dos primeiros textos a tratar dessa analogia entre a tradição peninsular e a tradição nordestina, além de mostrar como João Cabral desenvolve isso em seu trabalho. Veja-se, também, o texto de SECCHIN, Antonio Carlos. Do concreto ao concreto (Morte e vida severina). In:. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. p. 107-117, no qual cotejando o texto de Benedito Nunes aponta para a interessante chave de análise do auto dentro do Auto, a qual retornaremos posteriormente.

22 representativa do estilo desenvolvido, posteriormente, por Cabral em sua poesia. Menos complexa, mais comunicativa, próxima da oralidade, compartilha com O Rio e O cão sem plumas uma temática regional. Segundo o crítico: A intenção oral da peça se mostra ora pelo prosaísmo voluntário da linguagem, pela seqüência quase uniforme dos versos de redondilha, comuns no romanceiro popular do Nordeste, ora pela maneira como o personagem se interroga e responde os espectadores. 16 Alguns anos depois, em 1974, Benedito Nunes retoma o texto de Costa Lima e avança na análise de Morte e Vida Severina, elaborando a compreensão de que há um auto dentro do auto, compreendendo dois movimentos: o da morte, pesado e sombrio representado pela viagem de Severino até o Recife; e o da vida, leve e alegre, representado pelo nascimento da criança. O crítico faz uma analogia entre os tradicionais quadros e personagens do pastoril e o auto cabralino: Podemos, até mesmo, estabelecer, quase que de cena a cena, os traços analógicos desse parentesco formal, que as mudanças de figuras e situações apenas conseguem disfarçar: uma mulher do povo substitui o anjo da Anunciação; os vizinhos com os seus elogios, tomam o lugar dos anjos que guardam e adoram o menino, e, com os seus presentes, o dos reis magos; o mocambo é o presépio do Menino Deus, e seu José, São José. 17 Outros aspectos abordados pelo crítico são: a ambivalência de estrutura, a ironia, a comunicabilidade e a temática regional. Nesse sentido, o crítico reitera o que já fora apresentado por Costa Lima. Essa chave de análise, sempre considerada pela crítica posterior, acaba destacando os últimos episódios da ação como a parte mais importante do poema dramático-narrativo. Nancy Maria Mendes, 18 por sua vez, pondera essa afirmação destacando que o Auto, sempre encontrado pela crítica, formado pelos elementos de ordem litúrgica, que já destacamos, divide espaço com o desenvolvimento da ação que enfatiza o modo de vida e os problemas de Severino, o 16 LIMA, Luis Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2. ed. revista. Rio de Janeiro: Topbooks,1995. p. 267. 17 NUNES, op. cit., p. 86. 18 MENDES, Nancy Maria. Um texto parodístico: Morte e vida severina. In:. Ironia, sátira, paródia e humor na poesia de João Cabral de Melo Neto. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1980. p. 15-29.

23 protagonista-retirante, procedimento este também recorrente aos autos de tradição ibérica, como os de Gil Vicente, notadamente, o Auto de Mofina Mendes, no qual há grande ênfase na vida da pastora, entremeada pela expressão litúrgica do nascimento do Menino Jesus. Outro texto que se deve considerar é o de Antônio Carlos Secchin, 19 em João Cabral: a poesia do menos, de 1985. Reiterando os estudos de Costa Lima e de Benedito Nunes, Secchin fala da importância da transparência do discurso e das raízes populares. Reafirma, ainda, a forma teatral do auto dentro do auto, defendida por Benedito Nunes. Por último, veja-se o ensaio de Manuel G. Simões, 20 que se inicia tratando de uma conferência pronunciada por João Cabral em 1952, na Biblioteca de São Paulo, na qual ele falava sobre o seu conceito de poesia de circunstância. O crítico retoma esse conceito para classificar a peça Morte e Vida Severina como sendo uma obra de encomenda 21 e que estava plenamente inserida no conceito defendido por Cabral, em 1952. Outro aspecto destacado no texto é o diálogo existente entre as obras: O cão sem plumas (1950), O rio (1952) e Morte e Vida Severina (1955). Nessas três obras se dá a introdução de um elemento novo no fazer poético do autor: a fusão do sujeito com o objeto, no caso o rio Capibaribe. Há, portanto, segundo o crítico, uma relação profunda entre estas obras, sendo o rio e a morte os elementos que se cruzam, ora de forma explícita, ora metaforicamente, em que o caminhante é representado pelo rio. Como os demais críticos analisados, Simões faz referência à estrutura do auto popular de origem litúrgica que assume a forma de manifestação laica. Como Benedito Nunes, ele faz uma analogia entre o auto cabralino e o auto tradicional de origem ibérica, comparando os personagens e apontando para algumas transgressões do 19 SECCHIN, op. cit. 20 SIMÕES, Manuel G. Morte e vida severina : da tradição popular à invenção poética. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 157/158, p. 99-103, jul.-dez. 2000. [Paisagem tipográfica. Homenagem a João Cabral de Melo Neto (1920-1995) 21 Esta obra foi escrita a pedido de Maria Clara Machado, para ser encenada no Teatro Tablado. O texto, porém, não foi montado porque Maria Clara machado não o considerava um autêntico Auto de Natal e, ainda, porque o Tablado não tinha os recursos técnicos necessários para a encenação.

24 modelo canônico presente nas figuras de Seu José mestre carpina, que naturalmente estaria representando São José, como também da mulher que anuncia o nascimento da criança em substituição ao anjo que anuncia o nascimento de Cristo, as cenas dos presentes que lembram a visita dos Reis Magos e as loas que são cantadas para louvar o recém-nascido. Segundo o crítico, esses elementos mostram claramente a colagem do auto cabralino ao modelo litúrgico. Mediante o cotejo desses vários textos verificamos que, na verdade, não há oposição entre as análises críticas. O que se registra são avanços resultantes das diversas leituras. Algumas dessas posições serão retomadas nos capítulos de análiseinterpretação. Passemos, agora, a um entendimento mais amplo das relações de Morte e Vida Severina com a cultura popular, já tantas vezes referida. Nesta obra, a cultura popular se apresenta em suas diversas manifestações: seja através das referências diretas aos cânticos populares e a aspectos da religiosidade popular, como também pela re-elaboração de costumes e práticas, notadamente, o pastoril ou a lapinha, além de um irmanamento com as experiências de mundo e de vida das classes subalternas, trazidas à tona pelos personagens e pelos espaços representados no texto. 1.3 Cultura popular: visões teóricas, visões de mundo Para entendermos as representações da cultura popular em Morte e Vida Severina, faz-se necessário um entendimento mais amplo sobre a cultura, especialmente no Brasil, como resultado do processo de colonização e de transplantação de outras culturas para este espaço. A cultura popular é marcada por processos de mistura (ou hibridização), nos limites entre popular e erudito. Sobre isto, Maria Ignez Novais Ayala, em seu artigo Riqueza de pobre, afirma: A literatura popular, como as outras práticas culturais, se nutre da mistura. Seu fazer precisa da mescla, e esse processo de hibridização talvez seja um dos seus comportamentos mais duradouros e mais característicos. O sério se mesclando com o

25 cômico; o sagrado com o profano; o oral com o escrito; elementos de uma manifestação cultural, transpostos para outra... A literatura popular não conhece delimitações e é isso que torna difícil seu estudo. Impossível compartimentá-la em gêneros, espécies, tipos rígidos; tampouco é possível definir quando e onde se encontra a literatura popular. 22 Este posicionamento sobre a mistura mostra a importância do processo de hibridização de culturas, na medida em que permite uma (re)composição e impulsiona os artistas a construírem, no seu tempo, linguagens artísticas resultantes de fragmentos de algo anterior com marcas de contemporaneidade. Este fazer novo, do artista individual, está respaldado na base coletiva que dá sustentação à cultura popular. Assim procede João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina, na medida em que faz uma mescla de diferentes práticas culturais e re-elabora uma forma dramática, marcadamente medieval, como a do auto, contudo compreendendo a atualização dessa forma no auto popular, neste caso específico, a lapinha. 23 Alfredo Bosi 24 estabelece uma relação entre os termos colo-cultus-cultura, expressando as marcas existentes em termos lingüísticos ao longo do tempo. Na língua romana, colo significou eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo o campo. A explicação da origem etimológica dessas palavras elucida a compreensão do processo de colonização e de transplantação da cultura de um povo para outro: este processo não se dá apenas através da reiteração dos esquemas originais, mas há sempre uma mistura de valores culturais pré-existentes, no espaço que está sendo ocupado. É importante ressaltar que há uma predominância da cultura daqueles que detêm o poder, no caso, os colonizadores, mas há, também, uma resistência dos colonizados em preservar a sua cultura. Isso fica evidente na forma como Bosi apresenta o processo de colonização, vejamos: 22 AYALA, Maria Ignez Novais. Riqueza de pobre. Literatura e sociedade, Revista de teoria literária e literatura comparada, Universidade de São Paulo, n.2, p.160-9, 1997. 23 Voltaremos a esta discussão no segundo capítulo. 24 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 11.

26 A colonização é um projeto totalizante cujas forças matrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse processo não são apenas suportes físicos de operações econômicas; são também crentes que trouxeram nas marcas da memória e da linguagem aqueles mortos que não devem morrer. 25 Nesta perspectiva, Aderaldo Castello 26 dialoga com Alfredo Bosi, quando estabelece a periodização da literatura brasileira como resultado da dinâmica entre os influxos externos, tudo o que resulta da ação adventícia, e os influxos internos, tudo o que resulta da reação autóctone, brasileira e mestiça. Como Bosi, Castello apresenta a preponderância do colonizador no Período Colonial, mas, com o passar do tempo, impõe-se a interação, o que acaba resultando no sincretismo que hoje se faz presente na religião, nas danças, na alimentação, enfim na cultura popular do Brasil. Desse conflito de forças surge o sincretismo, que permite uma convivência de culturas diferentes, com marcas que as caracterizam como sendo erudita ou popular, numa sociedade de classes. Esse embate de forças resulta no que Alfredo Bosi define como uma dialética do culto e da cultura na condição colonial. Nesta perspectiva, este autor apresenta uma distinção entre os termos condição e sistema para marcar, claramente, a diferença que existe entre um e outro. O sistema estaria ligado a certas estruturas da economia, enquanto o termo condição se refere ao modo de viver e de sobreviver dos indivíduos. Por isso, fala-se em condição humana e não em sistema humano. Ao estabelecermos um paralelo entre o que Alfredo Bosi define como condição humana, e o entendimento que temos de cultura, percebemos a aproximação existente entre ambas. 25 Ibidem, p.15. Condição traz em si as múltiplas formas concretas de existência interpessoal e subjetiva, a memória e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar, de cantar, de morrer e ser sepultado. 27 26 Cf. CASTELLO, Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. 27 BOSI, op. cit., p. 27.

27 O processo de aculturação e de resistência da cultura decorre da condição em que se vive. A cultura erudita, historicamente construída, vai ocupando o seu espaço e absorvendo os valores da cultura popular, da mesma forma que esta, vai se mesclando com marcas da cultura erudita. Por isso, diante do cruzamento de culturas, torna-se difícil distinguir o que é erudito e o que é popular nas formas simbólicas de fronteira, visto que ambas se fundem em obras de arte, onde o tosco e o sofisticado guardam a mesma face. Aparentemente, a cultura erudita se impõe, mas, diante das formas de cultura autóctone ou mestiça, ela busca uma ressignificação. Como exemplo, podemos citar Anchieta, o nosso primeiro aculturador, quando compõe em latim clássico o seu poema à Virgem Maria, enquanto aprende tupi e faz cantar e rezar em nossa língua, os anjos e santos do catolicismo medieval nos autos que encena com os curumins. 28 Assim, a cultura híbrida vai ocupando o seu espaço, tornando-se cada vez mais viva, dinâmica e universal. Nesse caldeirão, falar de cultura negra, ou de cultura branca, ou mesmo de cultura indígena, torna-se difícil, pois, na verdade o que existe é uma mistura das diversas culturas. Na verdade, o colonizador nunca perdoou a co-presença de dominantes e de dominados. A sua intolerância diante da convivência com o diferente e, sobretudo, a sobrevivência da cultura dos dominados reforça a luta e os conflitos vividos no processo de colonização. Historicamente, a cultura popular nem sempre serviu de foco para os estudiosos e intelectuais, o que se constata, desde os mais remotos registros, é que a prioridade dos estudiosos não era investigar os costumes e usos das classes subalternas como algo importante, mas buscavam, sobretudo, reprimir, apontando erros e superstições, exercendo sobre elas uma censura em nome da moralidade. No entanto, é importante ressaltar que os folcloristas foram os primeiros estudiosos que tiveram os olhos voltados para a cultura popular. 29 28 Ibidem, p.31. 29 Cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1985.

28 O folclore como forma de conhecimento científico surge no século XIX, a partir da filosofia positivista de Augusto Comte e do evolucionismo inglês de Darwin e Herbert Spencer; e, também, de uma necessidade histórica da burguesia: determinar o conhecimento peculiar do povo através dos elementos materiais e não-materiais que constituíam a sua cultura. A partir desta visão burguesa sobre a cultura do povo, muitos foram os estudos realizados sobre o folclore e a cultura popular, no entanto, ainda hoje, persistem algumas divergências entre os estudiosos e a compreensão por parte do povo, do que seja folclore e cultura popular, sem o rótulo de uma cultura inferior. No Brasil, com o advento do Romantismo, além da filosofia positivista, os estudos sobre o folclore ganharam impulso, já que uma das características do Romantismo era a busca da identidade cultural através da memória coletiva. Renato Ortiz reconhece, embora com algumas restrições, a importância do trabalho dos folcloristas sobre cultura popular e assim se posiciona: Qualquer estudioso que tenha lido os livros dos folcloristas, partilha desta insatisfação que se esconde por trás da disparidade dos dados sobre as manifestações populares, que dizem pouco sobre a realidade das classes populares e, muito sobre a ideologia daqueles que a coletaram. No entanto, é inevitável nos voltarmos para os folcloristas, pois foram eles os primeiros a se ocuparem de forma sistemática do estudo da cultura popular. 30 Evidencia-se, dessa forma que, apesar dos obstáculos, são os folcloristas os responsáveis pela primeira sistematização dos estudos da cultura popular, ainda que impregnados do olhar e da ideologia deste tipo de intelectual e, portanto, da classe dominante. Constata-se, ainda, que há uma delimitação das fronteiras entre as demais ciências sociais e o folclore, já que este não alcançou o estatuto de disciplina científica, tal como pretenderam alguns de seus estudiosos e defensores. No século XX, a palavra folclore se desdobrou; remetendo, por um lado, a um conceito muito vago, ao qual vários etnólogos negam qualquer valor científico e, por outro lado, às diversas práticas de recuperação dos regionalismos e de animação turística até significados de conotação pejorativa. Esta postura tem marcas de uma visão capitalista e burguesa que, de forma 30 Ibidem, p.1.

29 estereotipada, coloca a cultura popular como sendo inferior à cultura das elites, que é tida como superior. Essa dicotomia existente entre cultura de elite e cultura das classes populares se radicaliza no século XIX, na medida em que o folclore se propõe a estudar os modos de ser, de pensar e de agir peculiares ao povo, entendendo o conhecimento empírico, como técnicas de trabalhar a roça ou manipular metais, de transporte ou de esculpir objetos, etc.; e de natureza não-material como as lendas, as superstições, as danças, as adivinhas, os provérbios, etc. Luis da Câmara Cascudo define, através de um verbete, do seu Dicionário do folclore brasileiro, o que é folclore: É a cultura do popular, tornada normativa pela tradição. Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação emocional, além do ângulo do funcionamento racional. A mentalidade móvel e plástica torna tradicional os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato coletivo, como a imóvel enseada dá a ilusão de permanência estática, embora renovada na dinâmica das águas vivas. 31 Câmara Cascudo estabelece uma visão que define folclore como cultura do popular (grifos nossos), usando a metáfora da enseada que dá a impressão de estagnação e de imobilidade, mas é renovada na dinâmica das águas vivas. Desta forma, podemos entender a visão que se tem do folclore nesta perspectiva de cristalização, de antiquário que procura preservar as mesmas marcas e características do passado, não admitindo mudanças. A cultura popular caracteriza-se pela movência, pela representação da vivência, do cotidiano e da interação, neste sentido corresponde às águas vivas da enseada, já destacadas por Câmara Cascudo. Nessas definições, quase sempre, repousam aspectos da luta de classes, tendo em vista que o termo cultura significa o patrimônio cultural das classes mais elevadas; seria, necessariamente, uma cultura transmitida por meios escritos, compreendendo todos os conhecimentos científicos, as artes em geral e a religião oficial. O folclore se 31 CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. ed. 11. São Paulo: Global, 2002. p. 240.