José Batista de Sales UFMS/Três Lagoas TÍTULO: A personagem a procura de si e os níveis de narração em O CASAMENTO DE MINHA MÃE, de Alice Vieira Resumo: A comunicação explora os recursos narrativos, como a organização temporal (presente e passado) e foco narrativo como elementos estruturais da obra O casamento de minha mãe, de Alice Vieira (2005). E tem como objetivo demonstrar a complexidade da obra como instância do processo de construção de identidade da personagem e conseqüentes efeitos de sentido no processo de leitura, no universo da literatura infantil. Palavras-chaves: literatura infantil, família, literatura portuguesa, Alice Vieira. Alice Vieira, escritora portuguesa com reconhecimento internacional na literatura infanto-juvenil, ainda não foi plenamente reconhecida no Brasil. Sua obra constitui-se de vinte e duas narrativas, dezesseis volumes de histórias tradicionais portuguesas e seis publicações classificadas como outras obras, nas quais figuram composições sobre as praias de Portugal ou a respeito de espaços peculiares de Lisboa. Indicada duas vezes como representante portuguesa ao prêmio Hans Christian Handersen do IBBY e sete de suas publicações para jovens fazem parte das listas de obras literárias de qualidade internacional para crianças e jovens editadas pela International Youth Library de Munique. Uma das características de seu trabalho se dá pela constante preocupação com a construção da identidade, durante o crescimento psíquico ou emocional da criança. Nesta perspectiva, além da obra aqui abordada, merecem especial destaque as narrativas Lote 12, 2. frente (13. ed. 2002) e Flor de Mel (8. ed. 2004). N O casamento de minha mãe 1, Alice Vieira consegue representar o drama de uma criança de doze anos, por intermédio das alternâncias cronológicas realizadas pelo narrador e com a presença de um recurso não muito comum, em termos de literatura infantil, o narratário. A história está dividida em trinta e três capítulos, de três páginas e meia cada um, num total de cento e quarenta e três páginas. Nesta obra, a personagem Vera, menina de aproximadamente 12 anos, é o narrador de sua história como filha de uma modelo fotográfico que, ao se tornar mãe no início da carreira, deixou a criança com um I 1 VIEIRA, Alice. O casamento de minha mãe. Lisboa: Caminho, 2005.
casal de velhos; uma psicóloga, para quem Vera narra suas aventuras, ao ser encaminhada para tratamento e que funciona como o narratário. Entre os problemas que se abordam no estudo da literatura infantil encontra-se o de compreender a importância que a organização estrutural da obra exerce para se dimensionar o valor literário de determinada obra. Trata-se de refletir sobre a organização das categorias narrativas, como espaço, tempo, narrador, focalização etc. e seus efeitos para a compreensão integral do texto. Talvez um dos maiores reparos que se faz a muitas obras dirigidas ao público infanto-juvenil prende-se a certa inocência da intriga 2. Acusa-se freqüentemente boa parte desta produção literária de oferecer pouca problematização, de sempre manter uma estrutura cronológica linear e sempre um narrador muito simplista. Durante anos, os adolescentes brasileiros liam quase que unicamente a Coleção Vagalume. Mas, surpreendentemente, muitos desses leitores, ao chegarem ao ensino médio, revelaram-se incapazes de ler obras com um mínimo de complexidade estrutural, como, por exemplo, Iracema ou O Guarani. E, para alguns estudiosos, tal resultado se deve à invariável estrutura narrativa das obras desta coleção. Entretanto, a literatura infantil surgida nas últimas três décadas avançou enormemente no enriquecimento das instâncias estruturais da narrativa, contribuindo para o incremento da capacidade do jovem leitor no enfrentamento futuro de estruturas complexas, mais freqüentes nas obras literárias destinadas ao público adulto. Dentro desta nova configuração, as obras de Alice Vieira constituem um excelente exemplo de valor presente na literatura infantil. É, pois, a estrutura narrativa, como fator de excelência da obra de arte literária voltada pra criança que será objeto de reflexão neste texto a respeito d O casamento de minha mãe. A fim de tornar a narrativa mais próxima possível do que é considerado real, os escritores recorrem a inúmeros artifícios, como o de afirmar que o texto que está à frente do leitor trata-se de um manuscrito que recebera de forma misteriosa, ou de um amigo distante que o enviara, solicitando a publicação, dada a originalidade da história e, também, aquela famosa garrafa que viaja mares e mundos pra chegar à II 2 a intriga corresponde a um plano de organização macroestrutural do texto narrativo e caracteriza-se pela apresentação dos eventos segundo determinadas estratégias discursivas, já especificamente literárias. (...) Pode dizer-se que a intriga comporta motivos livres, que traduzem digressões subsidiárias relativamente à progressão ordenada da historia e derroga freqüentemente a ordem lógico-temporal, operando desvios intencionais que apelam para a cooperação interpretativa do leitor. (REIS e LOPES, 1987: p. 197-8). 2
praia, onde residia o possível editor daquele manuscrito. Tal recurso, quase um clichê, pode ser visto em obras como O nome da rosa, de Umberto Eco, e Cazuza, de Viriato Correa. Neste livro, Alicie Vieira recorreu a um artifício menos freqüente na literatura para adulto e quase inexistente na literatura para adolescentes, que é a figura do narratário 3, instância narrativa que permite uma espécie de diálogo, mas não aparece propriamente ao leitor. Nesta obra, a função de narratário vai ser ocupada pela psicóloga a quem Vera é encaminhada por Dona Elisa, dados os seus supostos problemas emocionais. A psicóloga solicita a Vera que escreva o que lhe vier à memória (acontecimentos presentes e passados, emoções, pensamentos, desejos etc.) e tudo o que lhe der vontade de escrever ou contar pra ela, psicóloga. E, assim, a presença deste elemento estrutural torna-se perfeitamente verossímil e não um elemento estranho ou espécie de solução ex maquina, com a função de solucionar magicamente um problema ou outro. No plano interno, portanto, a narrativa caótica de Vera justifica-se por se tratar, ao fim e ao cabo, de um relato elaborado por uma paciente em tratamento psicológico. Aparentemente, é durante a cerimônia do casamento que Vera vai desenrolando o fio de sua história pessoal, para atender à orientação da psicóloga. São pessoas, personagens criadas por Vera, alguns objetos e, principalmente, sua mãe, que lhe propiciam todo o desenrolar de suas lembranças. De tal forma que os capítulos, muito bem delimitados, começam geralmente com uma observação sobre o presente para em seguida trazer à tona, por meio de flash-backs, lembranças de acontecimentos e de personagens que povoam sua memória. E muitas vezes a narradora confessa não compreender quase nada daquilo que ocorre a sua volta. O que chama a atenção, desde o início, é a tensão entre o tempo presente e o tempo passado. A narração inicia-se em ultima res, ou seja, Vera, a personagem-narrador que conta a própria história, principia a narração quando já está na cerimônia de casamento de sua mãe, nas últimas cenas da narrativa. Neste momento, o tempo verbal é o presente para expressar fatos recentes. A narração não se inicia com nenhuma informação introdutória ou de apresentação, mas como se pegasse uma história em desenvolvimento, uma conversa que já tivesse sido iniciada: E pronto. Chegou finalmente o Grande Dia. 3 o narratário é uma entidade fictícia, um ser de papel com existência puramente textual, dependendo directamente de outro ser de papel (cf. Barthes, 1966: 19-29), o narrador que se lhe dirige de forma expressa ou tácita. (REIS e LOPES, 1987: p.259). III 3
Pelo menos é assim que Dona Elisa diz: O Grande Dia. Dona Elisa quando fala, usa muitas maiúsculas. Seja, então. O Grande Dia. (p. 7) Este modo abrupto de iniciar a narrativa pode causar um certo estranhamento, reforçado pela menção direta a fatos e personagens ainda desconhecidos do leitor, mas se torna plausível quando se pensa que há um narratário ouvindo ou lendo a história de Vera. Neste primeiro capítulo, há também a referência a fatos e personagens que somente com o desenvolvimento da narração o leitor passa a entender sua importância para o conjunto da narrativa e para a compreensão dos problemas vivenciados pela personagem. A narrativa configura-se com um quadro muito bem delimitado. A linguagem é simples, facilitando a recepção e compreensão da história. A narradora, personagem central que conta sua própria história, não segue a ordem cronológica linear dos acontecimentos. É de acordo com suas emoções que apresenta os fatos. É com o trabalho de ligar um fato a outro que o leitor percebe as relações. Dos capítulos primeiro ao quarto, a personagem-narrador está na cerimônia de casamento, recorda-se do dia anterior, quando recebeu a notícia do casamento da mãe e ainda menciona rapidamente alguns fatos passados. Dos capítulos quinto ao décimo quinto, faz um longo flashback para contar a sua história. No capítulo décimo sexto, volta ao tempo presente para, em seguida retomar a sua história, num outro flash back, dos capítulos décimo sétimo a vigésimo sexto. Nos capítulos 27 e 28, a narradora retoma as cenas presentes, mas há um corte, representado pelo capítulo 29, outro flash. O trigésimo capítulo narra o tempo presente, seguido pelos capítulos 31 e 32, o último flash-back e o clímax da narrativa, seguido do retorno ao presente, no capítulo final, 33. De tal forma que o vaivém da narradora, ao recordar toda a sua vida, nem sempre dentro da ordem cronológica linear, causa no leitor razoável curto-circuito. Inicialmente, não se conhece a causa de muitos fatos recordados e a origem de várias personagens que surgem na narrativa. Assim, é possível falar em dois níveis de narração e dois níveis de focalização 4, proporcionados por esta tensão entre os tempos verbais presente e passado. Temos, num primeiro nível, a narração de fatos, de 4 (...) a focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história, quer o do narrador heterodiegético; conseqüentemente, a focalização, para além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação. (REIS e LOPES, 1987: p.159). 4
sensações e de emoções ocorridas no tempo presente com a focalização dos fatos (no tempo presente), por uma menina de doze anos, com a experiência existencial acumulada justamente pelo que vivenciou no passado (humor cáustico, crítica ao comportamento dos adultos). Num segundo nível, quanto à intriga, por meio de flash-backs, a personagem volta ao passado, revisita sua história pessoal e procura compreender as reações dos adultos que contribuíram para a sua formação, especialmente a sua mãe. Quanto à focalização, a oposição se forma a partir dos pontos de vista dos adultos, colocados numa instância do real que não lhes permitem compreender o universo infantil. O quadros abaixo tentam representar este ir e vir da narração desenvolvida pela personagem. NÍVEIS DE NARRAÇÃO E DE FOCALIZAÇÃO Níveis de narração Presente Passado Focalização crítica Focalização existencial Crianças Adultos DISTRIBUIÇÃO DOS CAPÍTULOS NARRADOS NO PRESENTE E EM FLASH-BACK PRESENTE 01 02 03 04 PASSADO 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 PRESENTE 16 PASSADO 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 PRESENTE 27 28 PASSADO 29 PRESENTE 30 PASSADO 31 32 PRESENTE 33 5
Há, portanto, uma tensão que se dá pelo cruzamento de tempo, por meio do flash-back, cujo efeito pode ser abordado segundo duas perspectivas. A primeira, seria a de compreender que tal jogo opositivo (tempo presente versus tempo passado) serve como forma de representação do drama existencial da personagem, a pressão de seus conflitos interiores diante de pessoas que lhe oprimem, quer por não entenderem esses questionamentos, quer por nem notarem o que poderia estar ocorrendo no íntimo da personagem. A segunda, como preparação do leitor mirim para a leitura futura de textos mais elaborados, complexos e de forma integral, à medida que há margens para entender as motivações para a organização caótica da narrativa. A respeito de organização caótica, destaca-se o fato de haver apresentação de personagens ou de referências a acontecimentos cruciais para a personagem. Esta ausência torna-se, portanto, auto explicativa à medida que o leitor consegue reorganizar cronologicamente a narração e identificar ou localizar a origem de cada personagem. Forçar o leitor a este exercício cognitivo é um fator extremamente importante para o processo de formação do próprio leitor. É desta forma que, segundo me parece, O casamento de minha mãe realiza-se como obra de importância significativa para o reconhecimento da literatura voltada para os mais jovens. Ao proporcionar para este leitor a oportunidade de entrar em contato com objeto estético literário que problematiza fórmulas já gastas e ao mesmo tempo oferece novas alternativas de fruição do prazer estético, sem dúvida alguma, contribui significativamente para o aprimoramento cognitivo e para a formação do gosto do jovem em formação. Além disso, a obra aqui analisada possui grande qualidade estética ao configurar-se como texto literário com organização estrutural capaz de amalgamar os elementos temáticos (solidão, carência afetiva, auto-estima) com categorias narrativas, cujo efeito é o de se apresentar como obra genuína da representação de problemas profundamente humanos e específicos do ser humano em formação. Ou seja, a mencionada tensão entre os tempos verbais presente e passado, a alternância entre o recurso do flash-back e narração no momento do acontecimento dos fatos são pertinentes à representação dos conflitos vividos pela personagem que narra seus problemas existenciais. É assim que o exercício do leitor ao organizar cronologicamente a história para poder entendê-la transforma-se no exercício de entendimento do texto, da personagem e, catarticamente, de si próprio. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 6
VIEIRA, Alice. O casamento de minha mãe. Lisboa: Caminho, 2005. REIS, Carlos e LOPES, Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 1987. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e Cultura, v. 24, n.9, p.803-809, set.1972. ZILBERMAN, Regina, CADEMARTORI, Lígia. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987. 7