ONDE COLOCO MEU PICASSO? A LOCAÇÃO DAS OBRAS EM



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Transcrição:

ONDE COLOCO MEU PICASSO? A LOCAÇÃO DAS OBRAS EM CASA E O CONVÍVIO COM OS BIBELÔS Marize Malta * Ao se pensar no lugar próprio para uma obra de arte, pensa-se de imediato em museu, como se fossem, naturalmente, um feito para o outro, sobretudo quando a obra é pintura, a principal arte do museu. Paredes brancas ou de cores neutras; espaçamento considerável entre as obras, dispostas para privilegiar a fruição de uma pessoa considerada padrão e acompanhadas de etiquetas com informações que lhes dão identidade. Esses fatores tão comuns nos museus modernos estabeleceram modo ideias de olhar e auxiliaram a institucionalizar a autonomia da arte. 1 Ao tomarmos uma obra de Picasso, por exemplo, como a célebre Demoiselles d Avignon, logo nos vem à cabeça a imagem do quadro e sua relação com o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Hoje ninguém pensa na obra sem ligá-la ao MOMA, mas dificilmente se faz alguma correspondência à sua disposição na parede com a experiência de analisá-la. Somos seduzidos pela imagem de dentro da moldura e pelo * Arquiteta, mestre em História da Arte pela UFRJ, doutora em História Social pela UFF, professora adjunta na Escola de Belas Artes da UFRJ, atuando na graduação e na pós-graduação. Pesquisadora em arte, cultura visual e material referente ao século XIX e início do XX, com ênfase nas questões relacionadas a: intertextualidade; condição decorativa; colecionismo e ligação entre imagem, objeto e lugar. É líder do grupo de pesquisa Entresséculos: mudanças e continuidades nas artes no Brasil nos séculos XIX e XX.

poder simbólico do museu e desprezamos suas características e relações materiais. Pouco pensamos na pergunta feita pelo curador: Onde coloco o Picasso? Temos como pressuposto que a experiência com a obra de arte se transforma conforme o lugar e o modo em que está disposta 1 e conforme sua própria materialidade. A configuração espacial que a cerca incide na maneira como a percebemos, e, consequentemente, a compreendemos e atribuímos significados. Não é o caso de desmerecer a potencialidade da análise plástica e poética das obras de arte, mas o que se pretende nesse momento é refletir além dela e com ela, assumindo um maior grau de complexidade frente ao estudo das obras e da escrita de suas histórias. O que nos interessa como um recorte a essa problemática é chamar a atenção para os lugares dos quadros e de outros tipos de suporte artístico, e dos olhares sobre as obras que não considerem exclusivamente sua posição em museus, galerias comerciais, exposições públicas, locais normalmente tomados como próprios para trabalhos de arte. Falamos de outros locais em que obras de arte estiveram presentes, nos interiores residenciais, por exemplo, onde muitas telas foram destinadas e que pouco participam na composição da historiografia da arte. E se falamos em interiores domésticos, a preocupação decorativa entra no contexto e permite reposicionar a arte até como elemento decorativo. 2 Dificilmente encontramos na historiografia da arte análise sobre o aspecto decorativo da obra de arte no museu, de como o curador escolheu a cor de fundo, a altura do quadro ou do pedestal, como foi localizada no espaço interior da sala de exposição. Por outro lado, quando mencionamos a casa de um colecionador, a localização das obras pode ser considerada, com mais facilidade, como fruto de preocupações da ordem da decoração de interiores. Obra de arte, bibelôs e decoração convivem harmoniosamente, pois se trata de um lugar que parece ser condescendente com a natureza do decorativo 2, enquanto o museu não o seria. Por esse prisma, o decorativo seria próprio do cotidiano, da convivência diária banal, enquanto o artístico, apartado do dia a dia, destacaria a excepcionalidade e raridade da produção humana. 1 2 Cf. KLONK, 2009. Cf. MALTA, 2011.

As coleções privadas, desde seus primórdios, ajudam-nos a pensar sobre a relatividade dos lugares próprios para a arte e o modo de manter as obras reunidas para alcançar certos objetivos. Antes da eclosão das galerias públicas, abertas a um público amplo, de vários credos e crenças, pelo menos teoricamente, as obras de arte ficavam em casas e palácios, participando de uma ordem privada ou semiprivada que usava paredes para fins de proteção e deleite pessoal (ou para bem poucos). As obras moravam com pessoas e outros tipos de objetos não artísticos e, sem etiquetas ou posições hierárquicas, dificultavam a apreciação isolada, confundindo-se com os bibelôs. Pretendemos trazer à tona esse modo especial de expor obras em ambientes privados a exibição recolhida (aqui uma sugestão de nome), dos gabinetes de curiosidades da Renascença às casas burguesas do século XIX e primeiras décadas do século XX, procurando melhor entender a relação do lugar da obra com a maneira de vê-la e compreendê-la, de modo a indagar com melhor propriedade a relação obra, lugar, imagem e produção de sentidos. Muitas das coleções do passado permaneciam fechadas em locais especiais, os chamados gabinetes de curiosidades, com acesso restrito, cujos convidados eram selecionados a dedo, garantindo a ideia de raridade, tal qual uma relíquia. Encerradas em cômodos apartados do dia a dia administrativo dos palácios, acomodadas em vitrines, armários e prateleiras, as coleções repousavam a espera de serem desvendadas e apreciadas. Cada visitante podia gozar da forma mais privada de apreciação, mas nem tudo ali exposto poderia ser classificado como artístico. 3 As primeiras coleções reunidas em gabinetes começaram a criar uma ordem visual para a disposição das peças que se articulavam entre si e que buscavam um lugar relacionado ao projeto de um saber enciclopédico, lugar de preservação de todo o conhecimento, cujas disposições das coisas facilitavam comparações e análises conjuntas e permitiam grupamentos por semelhanças e, por consequência, classificações. Os catálogos de coleções com listagem das obras, relatos de visitas e gravuras dos interiores dos gabinetes nos sugerem um modo particular de articular as obras no espaço.

Objetos exóticos, raros, belos, estranhos e preciosos davam conta de resumir o mundo moderno materialmente e visualmente, uma espécie de enciclopédia tridimensional. As obras dos gabinetes dos séculos XVII ao século XVIII estavam para além do mundo da proximidade, rementendo a outras realidades: (...) o que importava era a maravilha de cada objeto, uma contestação material das supostas limitações do mundo conhecido 3. Organizados em prateleiras, nichos, gavetas e pedestais, os objetos se acumulavam ordenadamente e ensaiavam qual seu melhor lugar na classificação das coisas do mundo. Foi durante o século XVII que imagens de gabinetes de curiosidades se generalizaram como uma temática especial de pintura, principalmente na Antuérpia, prerrogativa atribuída a Brueghel, o Velho, e Frans Francken, o Jovem. Nessas imagens, ampliadas para pintores de outras regiões europeias no século XVIII, podemos observar a frequência com que a ideia de quantidade e diversidade se apresentava para a exibição das coleções. O uso de variadas formas e cores contrastantes, a densidade de ocupação dos objetos representados na tela, a facilidade com que as peças da coleção se ofereciam à observação, a destreza na sua representação capaz de fazer perceber a natureza e tipologia de cada objeto, configuraram formas de ver e compreender as obras: uma riqueza visual sedutora que estimulava a contemplação. 4 Outra forma de expor obras para além dos recônditos gabinetes de maravilha tomou lugar em espaços reservados para festas, bailes e cerimônias oficiais: as galerias, como a Galeria dos Espelhos, talvez a mais conhecida delas. Essas galerias se tornaram necessárias na medida em que os palácios adotaram a repartição do espaço em cômodos cada vez menores, como antecâmaras, câmaras e gabinetes, necessitando de áreas que acomodassem maior número de pessoas. De formato retangular e pé-direito alto, a galeria era o maior cômodo do edifício, cuja área central permanecia completamente livre, sem móveis, os quais ficavam assentes às paredes. Piso, parede e teto eram ricamente decorados. Lá, muitas pinturas e esculturas de grandes artistas se faziam presentes. Nesse caso, as obras, diferente de estarem sob certa ordem para fins de conhecimento, auxiliavam a criar uma atmosfera de luxo e deslumbre, dignificando seu proprietário e oferecendo um fundo decorativo para grandes recepções. Suas 3 BLOOM, 2003, p. 109-110.

localizações eram fruto de projetos e encomendas, com espacialização precisa. Nas festas, as galerias se enchiam de gente, dificultando a contemplação isolada e a tônica do ver e ser visto, própria dos discursos sobre espaços museais 4, configurava-se bem antes da criação dos museus. No século XIX, com a emergência da arte doméstica, a valorização da decoração de interiores e a demanda por configurações visuais de personalidade, as coleções transbordaram da esfera confinada dos gabinetes e das galerias reais para a casa burguesa, disseminando-se por todos os lugares. Lembremos de John Ruskin, um dos importantes pensadores do século XIX, ao afirmar que a quantidade de prazer que pode derivar de qualquer grande obra depende diretamente da quantidade de atenção e energia intelectuais que se é capaz de voltar para elas 5. Qual seria o melhor lugar para isso senão a casa, lugar do ócio, da paz, da intimidade? A contemplação privada se renovava. Não à toa, simultaneamente, os museus se abriam ao público. A arte era disputada entre a esfera pública e a privada. Das negociações, não precisamos dizer qual a esfera passou a ser considerada o melhor lugar para a arte. Retomando os espaços domésticos oitocentistas, muitos guias de decoração traziam conselhos de como melhor acomodar as obras de arte em casa. Recomendavase que as boas peças de arte devessem ser procuradas no ambiente e nunca se imporem ao olhar 6. Elas não estariam em destaque, mas acomodadas de tal modo que parecessem naturais ao ambiente, parte indispensável da organicidade do cômodo. Mesmo assim, as obras eram para serem notadas e até admiradas: 5 Ornamentem as paredes e terão uma nobre officina ad home, logar de honra e trabalho, ensinando aos estranhos como as asperezas da vida são amenizadas pela intelligencia e pelo amor ao lar 7. Como mais um indício para interpretação do caráter de uma família, as pinturas deveriam ser corretamente escolhidas e sabiamente locadas. Era preciso saber o que se adequava, o que combinava, o que agradava. Uma das tantas publicações da época 4 5 6 7 Cf. FOUCAULT e BENNET. RUSKIN, 2004, p. 66. HAVARD, 1883, p.382. SYLVINIO JUNIOR, 1894, p. 47.

recomendava: Deve-se cuidar tambem de não sobrecarregar as paredes; uma sala não é um museu, o conjunto deve ser sobrio e sem uniformidade 8. Alertava-se para a peculiaridade da geografia doméstica. A casa não era museu. A sala e a parede de todo o dia não eram de museu. A pintura em casa demandava outra postura: fazia parte das coisas de casa, sendo item doméstico, coisa do lar, ao mesmo tempo que contribuía para ampliar a carga decorativa do ambiente e facilitar o reconhecimento do caráter familiar. A pintura fazia parte dos arranjos das paredes, funcionando também como complemento, companhia inseparável dos bibelôs, podendo a própria pintura vir a ser considerada um bibelô. As salas das casas apresentavam gravuras e pinturas a óleo, imagens antigas e da época, itens naturais e artificiais, levando a convivência de diversidade de processos técnicos, tamanhos, procedências, naturezas e tempos. A situação mostrava o quanto o olhar decorativo estava alicerçado na disposição que estabelecia uma disciplina compositiva para primeiro atrair o olhar e depois guiá-lo para cada elemento do conjunto. O tamanho do quadro demandava uma distância focal para melhor admirá-lo. Ajuntar quadros de tamanhos diferentes em uma mesma parede considerava variadas posições do observador no cômodo: ora mais distante, capaz de olhar com clareza as telas maiores, ora próximo e com a visão ajustada a perceber as pequenas composições pictóricas. Os quadros em casa pressupunham diversas posições espaciais de seus observadores, principalmente porque cadeiras caminhavam pela sala conforme os melhores arranjos para o momento e isso promovia novos pontos de vista para as paredes do cômodo. 6 Parte da produção artística estaria passível de ser domesticada. Ao adentrar pelos espaços interiores de convívio diário, os objetos de arte poderiam perder sua aura de objeto especial. Cada morador se transformava potencialmente em colecionador, em domador de coisas. Segundo Maurice Rheims, para o colecionador o objeto é uma espécie de cão dócil que recebe carícias e as devolve à sua maneira; ou melhor, as reflete como um espelho de tal modo construído que reflete imagens não do real, mas do desejável 9. 8 9 COMO DECORAR AS PAREDES, 1922. RHEIMS, 1959, p. 28

As imagens de interiores domésticos qualificavam a experiência de olhar a partir do lugar de dentro: olhar para dentro de si, olhar de dentro para fora, olhar as coisas de dentro, que podemos identificar como uma das facetas do olhar decorativo. Contrariamente, o olhar de fora levava a outras perspectivas. Assumir um lugar público para localizar o ponto de vista do observador significava sair da situação de proteção e intimidade, permitindo descortinar novos sentidos. Ver a partir do viés institucional era uma das formas de assumir um olhar do lado de fora da intimidade um olhar artístico: A concepção idealista da arte, o sistema de catalogação imposto a ela e a construção de uma história cultural que a contivesse todos esses aspectos foram assegurados pelo museu enquanto se desenvolvia durante o século XIX 10. Ao mesmo tempo, com a abertura crescente de museus públicos, apontava-se para uma ampliação de possíveis lugares para a arte em casa ou no museu, até que, o projeto social de compartilhamento público da arte sobrepujou a ideia negativa de um conjunto de obras restritas, enclausuradas entre quatro paredes da casa de uma única pessoa. Não se pode desprezar o fato de que grande parte dos primeiros museus públicos foram frutos de doações ou usurpações de coleções particulares. 7 Construções de grande porte, com linguagens imponentes, ambientes amplos, com pés-direitos altos, auxiliavam a conferir nobreza, dignidade e respeito pelo que abrigavam, inventando um mundo especial, lugar possível para destacar a aura do objeto artístico, para designar a obra de arte como algo separado, à parte 11 do mundo vivido no dia a dia. Todavia, a maneira de exibir as obras seguiu inicialmente esquemas de exposição da arte em lugares privados, sem falar nas coleções particulares que, alocadas conforme desígnio do proprietário, transformaram-se em museu. Mesmo diante da ascensão dos museus como locais privilegiados para obras de arte, quadros, esculturas e fotografias continuaram a ter lugar cativo em casas, nas casas dos colecionadores. Gertrude Stein e seus irmãos, por exemplo, quando moraram no sobrado da rue de Fleurus, em Paris, conviviam com mais de 200 quadros de artistas modernos, entre eles, Cèzanne, Gauguin, Toulouse-Lautrec, Matisse e Picasso. 10 11 CRIMP, 2006, p.188. CRIMP, 2006, 216-217.

Obervando fotografias da década de 1930, com Gertrude e, sua parceira, Alice Toklas flagradas na sua intimidade (aquela que veio a público, certamente), podemos vislumbrar o convívio de tantos quadros de artistas de vanguarda com poltronas, vasos de flores, castiçais, bibelôs... Nas fotos, as obras servem de fundo e entorno de sua pessoa. As obras localizadas na casa de um particular lembram certas questões pouco simpáticas ao estatuto da autonomia da arte. Estar em casa significa residir na propriedade de alguém, cujo dono tem prerrogativas exclusivas sobre sua posse. Pode fazer delas o que quiser. Para ter esse poder, o dono da obra precisou ganhá-la ou comprá-la, o que atiça sua condição de mercadoria. Ao adquirir a peça, o proprietário também negocia o poder de colocá-la onde quiser. E, agora, ele tem condições de fazer a pergunta: onde coloco meu Picasso? No quarto ou na sala? Na parede entre as janelas ou acima do sofá? Você imaginaria um Picasso pendurado na paredinha de exaustão de uma lareira? Lá está ele, um pequeno desenho, ladeado por duas peanhas, sobre a mesa da lareira da sala de Gertrude Stein. E com o passar dos anos, os quadros mudam de lugar, dada a natureza mutante da decoração, adaptando-se a outras arrumações e frente às obras que chegam e recondicionam as anteriores. O retrato de Gertrude, feito por Picasso, andou por várias paredes e cômodos da casa, adotando formas diferentes de observá-lo. 8 A institucionalização da arte dificultou a compreensão de sua porção privada, da experiência da obra em íntima convivência. Em virtude dos discursos sobre os benefícios do compartilhamento coletivo das obras de arte, possuí-las em casa se transformou em ato egoísta, quase um imperdoável delito social. A atitude individualista também seria criticada pelo tipo de relacionamento mantido com a obra íntimo demais, no sentido até tátil, e, nessa liberdade simbolicamente licenciosa, dificultar sua percepção por suposta exclusividade visual. Além disso, a obra em casa, na medida em que compartilha com os outros itens da coleção e da decoração, impediria a apreensão de uma natureza autônoma da arte. O colecionador, como lembra Benjamin, luta contra a dispersão, (...) reúne as coisas que são afins; consegue, deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no

tempo 12. Ele não quer separar as obras nem se ver separado delas. Frente a isso, Picasso pode estar em casa do lado de muitos bibelôs, fechado entre quatro paredes, de posse de algum egoísta, mesmo que a história da arte não tenha desejado contar essa sua faceta. Mas, cá para nós, quem resistiria à tentação de tê-las ao seu inteiro dispor, de desfrutá-las a qualquer hora do dia, de combiná-las com a poltrona preferida e harmonizá-las com as cores das paredes, de acariciá-las e usá-las, como objetos de estimação? Afinal, quem não gostaria de ter um Picasso para chamar de seu? Quem não gostaria de fazer a si mesmo a pergunta: onde coloco o meu Picasso? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Passagens. São Paulo/Belo Horizonte: Imprensa Oficial/Editora UFMG, 2009. BENNET, Tony. The exhibitionary complex. In: SCHWARTZ, Vanessa R.; PRZYBLYSKI, Jeannene M. (orgs.). The nineteenth-century visual culture reader. London: Routledge, 2004, p.117-130. 9 BLOM, Philip. Ter e manter. Uma história íntima de colecionadores e coleções. Rio de Janeiro: Record, 2003. BORZELLO, Frances. At home: the domestic interior in art. London: Thames and Hudson, 2006. COMO DECORAR AS PAREDES. Revista da Semana, Rio de Janeiro, ano XXIII, n. 35, [sem numeração de página], 26 ago. 1922. CORN, Wanda M; LATIMER, Tirza True. Seeing Gertrude Stein: five stories. Berkeley: University of California Press, 2011. CRIMP, Douglas. Sobre a ruína dos museus. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.. Des espaces autres. In: Dits et écrits, v. 4. Paris: Gallimard, 1994, p. 752 a 762.. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 12 BENJAMIN, 2009, p.245.

HAVARD, Henry. L art dans la maison: grammaire de l ameublement. 4 ed. Paris: Librairie Illustrée, 1883. KLONK, Charlotte. Spaces of experience; art gallery from 1800 to 2000. New Haven/London: Yale University Press, 2009. MALTA, Marize. O olhar decorativo: ambientes domésticos em fins do século XIX no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011. RENIÉ, Pierre-Lin. Une image sur un mur; images et décoration intérieure au XIXe siècle. Bourdeaux: Musée Goupil, 2005. RHEIMS, Maurice. La vie étrange des objects : histoire de la curiosité. Paris: Plon, 1959. RUSKIN, John. A acumulação e a distribuição da arte. In:. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.65-112. A manufatura moderna e o design. In:. A economia política da arte. Rio de Janeiro: Record, 2004, p.155-186. SYLVINIO JUNIOR. A dona de casa. Rio de Janeiro: Domingos Magalhães, 1894. SIQUEIRA, Vera Beatriz. Álbum de família: coleções e museus e arte. In: CAMPOS, Marcelo et al. História da arte: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. 10