1 CONSULTA A Assessoria da Liderança do Partido dos Trabalhadores no Senado Federal honra-nos com a formulação de consulta sobre a constitucionalidade do projeto de iniciativa popular (PLC Nº 36/2004), que tramita em regime de urgência no Senado Federal, dispondo sobre a criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social SNHIS e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social FNHIS e seu Conselho Gestor, demarcando a estrutura de uma política nacional de habitação para a população de baixa renda. A questão colocada é a de eventual vício de iniciativa legislativa em virtude do disposto no artigo 61, 1º, II, e da Constituição da República de 1988, que dispõe ser de iniciativa privativa do Presidente da República leis que versem sobre a criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública. PARECER A iniciativa popular é prevista no artigo 14, III da Constituição de 1988 como uma das formas de exercício da soberania popular, que é um dos fundamentos da República, consoante o parágrafo único do artigo 1º da Constituição. O artigo 61 do texto constitucional expressa que a iniciativa legislativa também compete aos cidadãos, nos casos e formas previstos pela Constituição. A única regulação da iniciativa popular existente na Constituição de 1988 está presente no artigo 61, 2º, que prescreve que os projetos de iniciativa popular devem ser susbscritos por mais de 1% do eleitorado nacional, distribuído em pelo menos cinco Estados, com não menos de três décimos por cento de eleitores de cada um deles. A Constituição não cria nenhuma outra restrição à iniciativa legislativa popular. Se a Constituição não restringe, não cabe aos órgãos constituídos
2 restringir 1. A Constituição não pode ser interpretada e aplicada de forma assistemática, ou na imagem tornada célebre pelo Ministro Eros Roberto Grau, não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços 2. Os defensores da limitação dos projetos de iniciativa popular por eventual vício de iniciativa estão interpretando o texto constitucional parcialmente, não como uma unidade. Estão utilizando o disposto no artigo 61, 1º da Constituição, uma limitação circunstancial, como veremos, como obstáculo absoluto à soberania popular. A previsão da competência privativa do Presidente da República no artigo 61, 1º, conforme já tivemos oportunidade de demonstrar em curto ensaio, é decorrência do fortalecimento do Poder Executivo nos Estados contemporâneos 3, visto como o Poder do Estado mais capacitado a atuar decisivamente na elaboração e concretização das políticas públicas. Ou seja, trata-se de um dos instrumentos de atuação do Poder Executivo no contexto da sua relação com os demais Poderes constituídos. A iniciativa legislativa privativa do Presidente da República é uma limitação prevista neste contexto de equilíbrio e harmonia entre os Poderes. A iniciativa popular não é limitada pelo poder de iniciativa do Executivo. Não se trata de usurpação de funções ou de competências entre Poderes constituídos. O povo não é um Poder do Estado, controlado e limitado pelos demais Poderes. O povo não é um elemento ou órgão do Estado, como definia a Teoria Geral do Estado do século XIX 4. O povo é o soberano no Estado 1 Neste sentido, a própria Lei Almino Affonso, Lei nº 9.709, 18 de novembro de 1998, prescreve, em seu artigo 13, 2º, que o projeto de lei de iniciativa popular não poderá ser rejeitado por vício de forma. 2 Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 8ª ed, São Paulo, Malheiros, 2003, p. 145. 3 Vide Gilberto BERCOVICI, Breves Considerações sobre o Poder de Iniciativa Legislativa do Executivo, Revista da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza, vol. 12, Fortaleza, 2004, pp. 43-45. 4 Vide Georg JELLINEK, Allgemeine Staatslehre, reimpr. da 3ª ed, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1960, pp. 406-427. Para uma crítica desta visão, vide Egidio TOSATO,
3 Democrático. A questão da iniciativa popular, portanto, diz respeito à questão sobre quem é o soberano no Estado Democrático de Direito, da relação entre poder constituinte e poderes constituídos. A limitação da iniciativa legislativa popular nada mais é, como afirmou Maria Victoria de Mesquita Benevides, de uma tentativa de bloqueio da participação popular pelos poderes constituídos 5. Os defensores da limitação dos projetos de iniciativa popular estão, na realidade, confundindo a posição institucional do Poder Legislativo e da Presidência da República no regime constitucional. Falta, pelo visto, relembrar a velha e célebre distinção criada por Sieyès, ainda em 1789, entre pouvoir constituant e pouvoirs constitués 6. Sua argumentação confunde a posição constitucional dos Poderes do Estado. De poderes constituídos, que efetivamente são, portanto, submetidos aos limites da Constituição e da lei, passariam a verdadeiros soberanos, sem nenhuma espécie de controle. Afinal, o soberano é absoluto, o que significa incontrolável, não necessariamente totalitário ou autoritário 7. A questão da soberania é essencial, pois permite reflexões conjuntas sobre o direito e a política 8. A soberania, qualidade essencial do Estado 9, é também aqui entendida como um sinônimo de poder do Estado (puissance de l'etat, Sovranità del Popolo e Sovranità dello Stato, Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico 1957 nº 1, Milano, Giuffrè, janeiro/março de 1957, pp. 8-37. 5 Maria Victoria de Mesquita BENEVIDES, A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular, São Paulo, Ática, 1991, pp. 164-169. Em relação à questão da matéria das propostas de iniciativa legislativa popular, vide idem, p. 169. 6 Emmanuel-Joseph SIEYÈS, Qu est-ce que le Tiers Etat?, 2ª ed, Paris, PUF, 1989, capítulo V. 7 Sobre esta concepção, vide Olivier BEAUD, Le Souverain, Pouvoirs º 67, Paris, PUF, 1993, p. 36. 8 Sobre a soberania como conceito limítrofe que permite o estudo conjunto das relações entre o direito e a política, vide Hermann HELLER, Die Souveränität: Ein Beitrag zur Theorie des Staatsund Völkerrechts in Gesammelte Schriften, 2ª ed, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1992, vol. 2, pp. 68-74 e Olivier BEAUD, La Puissance de l'état, Paris, PUF, 1994, pp. 19-22. 9 Hermann HELLER, Die Souveränität cit., pp. 133-140 e Olivier BEAUD, La Puissance de l'état cit., pp. 14-15.
4 Staatsgewalt) 10, cuja unidade não impede a divisão vertical (federalismo) ou horizontal (organização dos poderes) de seu exercício. Ambos os aspectos da soberania, absoluta internamente e relativa externamente, são indissociáveis 11. Como defende Paulo Bonavides, a legitimidade precisa ser repolitizada, a soberania popular deve ser efetiva 12. E, em uma democracia, o ponto fundamental é entender o povo como o sujeito da soberania 13, ou seja, há uma completa identificação entre soberania estatal e soberania popular 14. A iniciativa popular nada mais é que uma das formas de manifestação da soberania popular e da vontade constituinte do povo perante os Poderes constituídos. Não se pode fechar os olhos para a realidade constitucional, absolutizando as soluções constitucionais históricas do liberalismo como atemporais 15. As Constituições são obra do povo, não criaturas de poderes misteriosos, metafísicos. O poder constituinte refere-se ao povo real, não ao idealismo jusnaturalista ou à norma fundamental pressuposta, pois diz respeito à força e autoridade do povo para estabelecer a Constituição com pretensão normativa, para mantê-la e revogá-la. O poder constituinte não se limita a estabelecer a Constituição, mas tem existência permanente, pois dele deriva a própria força normativa da Constituição 16. 10 Cf. Olivier BEAUD, La Puissance de l'état cit., pp. 10-13 e 17-19. 11 Olivier BEAUD, La Puissance de l'état cit., p. 17. Vide também idem, pp. 15-17. 12 Paulo BONAVIDES, Teoria Constitucional da Democracia Participativa: por um Direito Constitucional de Luta e Resistência, Por uma Nova Hermenêutica, Por uma Repolitização da Legitimidade, São Paulo, Malheiros, 2001, pp. 11, 18-21 e, especialmente, 25-65. 13 Vide Hermann HELLER, Die Souveränität cit., pp. 95-99. Vide também Olivier BEAUD, La Puissance de l'ètat cit., pp. 24-25 e 201. 14 "Staats und Volkssouveränität sind identifiziert" in Hermann HELLER, Die Souveränität cit., p. 99. 15 Rogério Guilherme Ehrhardt SOARES, Direito Público e Sociedade Técnica, Coimbra, Atlântida Editorial, 1969, p. 27. 16 Cf. Ernst-Wolfgang BÖCKENFÖRDE, "Demokratie als Verfassungsprinzip" in Staat, Verfassung, Demokratie: Studien zur Verfassungstheorie und zum Verfassungsrecht, 2ª ed, Frankfurt-am-Main, Suhrkamp, 1992, pp. 293-295. Sobre a permanência do poder constituinte do povo, vide Olivier BEAUD, La Puissance de l'état cit., pp. 404-434.
5 A democracia também não pode ser reduzida a um mero princípio constitucional. Como bem afirma Friedrich Müller, o Estado Constitucional foi conquistado no combate contra a falta do Estado de Direito e da democracia e este combate continua, pois a democracia deve ser cumprida no cotidiano para a realização dos direitos fundamentais 17, como o direito à habitação, previsto no artigo 6º da Constituição de 1988 e objeto do presente projeto de iniciativa popular. A democracia e a soberania popular pressupõem a titularidade do poder do Estado, cuja legitimação e decisão surgem do povo 18. A legitimidade da Constituição está vinculada ao povo e o povo é uma realidade concreta 19. RESPOSTA Diante da argumentação exposta, concluímos pela inexistência de vício formal do projeto de iniciativa popular PLC Nº 36/2004, pois a restrição do artigo 61, 1º da Constituição não se aplica aos projetos de iniciativa popular. Este é o nosso parecer. São Paulo, 04 de maio de 2005 Gilberto Bercovici 17 Friedrich MÜLLER, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie: Elemente einer Verfassungstheorie VI, Berlin, Duncker & Humblot, 1997, pp. 43-45 e 56. 18 Contra a redução da soberania a mero princípio constitucional, colocado, portanto, à disposição de parlamentares e juízes, vide a argumentação de Olivier BEAUD, La Puissance de l'état cit., pp. 469-476, 479-482 e 490-491. 19 Ernst-Wolfgang BÖCKENFÖRDE, "Demokratie als Verfassungsprinzip" cit., pp. 297-301 e 311-315 e Friedrich MÜLLER, Wer ist das Volk? Die Grundfrage der Demokratie cit., pp. 59-62.